Como resumir em menos de uma página uma questão tão complexa como o sistema de castas hindu, o martírio dos seus excluídos dálitas ("intocáveis") e a actual polémica das coversões na Índia? E tudo isto, para leitores de um semanário no país com a mais baixa taxa de leitura de jornais na Europa e em que a maioria confunde a religião (hindu) com a língua (hindi) é terá dificuldades em apontar a capital do país em questão. Mas, afinal, o que interessa é trazer a Índia e a sua actualidade para a agenda portuguesa. Nota: a frase introdutória (de autoria editorial) afirma obviamente uma inverdade: os dálitas não são a "mais baixa das castas indianas", porque estão *fora* do sistema de castas.
Expresso, 22 de Outubro 2006
Conversões em massa entre os ‘intocáveis’Os dálitas, ou ‘intocáveis’, a mais baixa das castas indianas, estão a abandonar o hinduísmo para se converterem ao cristianismo e ao budismo
Por toda a Índia, milhões de ‘intocáveis’ celebram este mês o 50º aniversário da conversão do seu falecido líder histórico, o jurista B. R. Ambedkar, ao budismo. Marginalizados há séculos pela hierarquia hindu, procuram afirmação política e social convertendo-se em massa a outras religiões - cristianismo e budismo - provocando a ira dos nacionalistas hindus.
Especialmente no mundo rural, são frequentes os casos em que os dálitas (como preferem ser chamados) são impedidos de aceder a poços de água comuns, proibidos de entrar em espaços públicos e assassinados por casarem com parceiros de castas superiores. Segundo a tradição hindu, as castas evoluíram a partir do corpo divino - os sacerdotes brâmanes da cabeça, os guerreiros xátrias dos braços, os comerciantes vaixás das coxas e, finalmente, os trabalhadores sudras dos pés. Só os ‘intocáveis’ ficaram de fora, impedidos de aspirar à reincarnação.
Mas com a independência e a adopção de um sistema democrático, em 1947, centenas de milhares de dálitas optaram pela conversão. O movimento ganhou novo vigor nos últimos anos e, no sábado passado, converteram-se mais de dois mil ao budismo e ao cristianismo na cidade de Nagpur, no centro do país.
O encontro realizou-se sob fortes medidas de segurança, porque as conversões são condenadas pelos nacionalistas hindus, cujas organizações mais radicais acusam os líderes dálitas, missionários cristãos e monges budistas de interesses dúbios. Nos Estados onde o partido nacionalista do Bharatiya Janata Party forma governo (Rajastão, Guzerate e Madia Pradexe), já foram adoptadas leis que proíbem ou limitam as conversões, impondo, por exemplo, autorização policial prévia.
A Igreja Católica, com uma extensa rede de educação e de apoio social no país, já fez ouvir o seu protesto. Para Henry D’Souza, da Conferência Episcopal Católica da Índia, as conversões são “um sinal positivo de que os dálitas se estão a afirmar, abraçando o direito fundamental da liberdade religiosa num país laico e democrático”. Ao Expresso, o padre recordou que religiosos católicos têm sido alvo de diversos ataques e perseguições, mas afirmam que “nada nos poderá demover de realizar a nossa responsabilidade para com os dálitas”.
correspondente em Nova Deli
Constantino XavierOS FACTOS
- Os dálitas (ou intocáveis) são 167 milhões, cerca de 16% da população indiana
- A maioria (60%) vive em cinco dos 29 Estados da Índia
- Vivem de actividades consideradas ‘impuras’, como a recolha do lixo, limpeza de latrinas, abate de animais e transporte de cadáveres
- O seu líder histórico, B.R. Ambedkar, doutorou-se em 1916 pela Universidade de Columbia (EUA) e é considerado o ‘arquitecto’ da Constituição Indiana
- A Constituição concede-lhes uma quota de 15% na administração pública, educação e em todas as eleições
TRÊS PERGUNTAS A
Udit Raj, presidente do Partido Indiano da Justiça
P Por que é que os dálitas se estão a converter?
R Queremos libertar-nos da discriminação imposta pelo sistema de castas. Abandonar o hinduísmo representa a libertação de um sistema que nos sufoca. A conversão é a via mais importante para atingirmos o desenvolvimento sócio-económico.
P Quais as vantagens do budismo e do cristianismo?
R Os dálitas são livres de escolher e exprimir as suas preferências religiosas. Mas o objectivo final é escapar ao estigma da intocabilidade e ser aceite numa comunidade que não nos discrimina por causa do nosso estatuto social e profissional. Ao contrário do hinduísmo, o budismo e o cristianismo oferecem-nos condições de afirmação e libertação.
P Há possibilidade de reforma interna ao hinduísmo?
R Ambedkar, o líder histórico dos dálitas, acreditou em reformas pela via constitucional e legal, mas sem sucesso. Hoje, é óbvio que a maioria dos hindus nunca soube respeitar e compreender as reivindicações das secções mais desfavorecidas e exploradas. Não aprenderam a lição e estão a pagar um preço por isso. O nosso movimento é sobretudo social e, por isso, é natural que tenha impacto político e afecte os principais partidos.