sexta-feira, 31 de março de 2006

Citações de Deli: Stephen P. Cohen

"In the view of some Americans, the Indian negotiating style consists of one stage in which Indian negotiators attempt to establish their moral superiority over their American counterparts. (...) Most American negotiators are so taken aback by what they perceive as Indian arrogance that they find it difficult to engage in lengthy and complicated negotiations with New Delhi. Indeed, the Indian style is a deterrent to negotiations."

Stephen P. Cohen, in "India, Emerging Power", (New Delhi: Oxford University Press, 2001), p. 86

Imagens de Deli: Corbett National Park

Corbett National Park, no estado de Utaranchal Pradexe, perto dos Himalaias. O parque alberga tigres e elefantes selvagens, crocodilos, águias etc. Os tigres em extinção, claro. Os elefantes mais e mais domesticados (estes, na foto, totalmente). Estive lá há um ano e vale a pena. Enquanto dura.

quinta-feira, 30 de março de 2006

Grandes pensadores

Estou a preparar um trabalho sobre a transformação do conceito indiano Swaraj (equivalente a auto-determinação ou independência) ao longo das primeiras décadas do século XX. Cubro o período 1906-1947, desde que foi primeiramente utilizado no discurso político do movimento nacionalista indiano, numa conferência do Partido do Congresso em Calcutá, até à data da independência.

Swami Dayanand, Tilak, Dadabhai Naoroji, Motilal Nehru.

Vagueando por entre as poeirentas prateleiras da minha biblioteca, lendo e folheando as velhas páginas de papel amarelecido, deparo-me com a imensa vastidão, em termos quantitativos e qualitativos, de grandes pensadores indianos. Editores, activistas, oradores, advogados, filósofos, religiosos: Há de tudo, une-os uma excelência devota à independência, uma capacidade crítica tremenda, uma relação franca e íntima com as massas populares.

M. G. Ranade, Tagore, Gandhi, M. A. Kalam Azad.

Há, claro, várias interpretações do conceito (o meu estudo versa justamente sobre essas disparidades) e várias correntes ideológicas. Mas o que mais me tem impressionado é o seu profundo conhecimento da civilização ocidental, a sua versatilidade na língua inglesa, as suas viagens pelo mundo inteiro, do Japão aos Estados Unidos. E, mesmo assim, a sua profunda dedicação e conhecimento da causa indiana, das particularidades do seu próprio contexto, levando-os a passar longos, às vezes infinitos, anos a apodrecer nas prisões.

Savarkar, Gokhale, Lajpat Rai, Bipin Chandra Pal.

E, claro, pus-me a duvidar: teve naquele período (porque depois disso, é óbvio que não) Portugal pensadores e homens deste calibre? Mais: tivemos, ao longo de todo o último milénio, pensadores e homens deste calibre? Sim, Portugal é um país pequeno e a Índia talvez uma civilização. Mesmo assim, às vezes é bom sair do armário e duvidar e questionar um pouquinho.

terça-feira, 28 de março de 2006

Passagem para a Índia

Atlântico, Abril de 2006, p. 33
Correspondentes de Guerra (crónica mensal)

PASSAGEM PARA A ÍNDIA
CONSTANTINO XAVIER EM NOVA DELI

O ATLÂNTICO JÁ CHEGOU À ÍNDIA

"A Índia parece disposta a esquecer a herança não-alinhada, o namoro russo e mesmo a face pacifista, espiritual e oriental com que se apresentou durante quase um século. Esqueçam Brama, Vishnu e Shiva e as centenas de divindades que completam o panteão hindu. A malta agora quer é McDonald's, “outsourcing”, Disney Channel e NATO, de preferência a liderar."

É um excerto do meu texto-estreia na revista Atlântico, uma publicação inovadora e que merece ser seguida (e lida) com muita atenção. Com a "Passagem para a Índia" vou tentar soprar alguns ventos orientais para o panorama jornalístico e de opinião em Portugal. E explicar porque é que (não) é preciso ter medo da Índia. A revista (vejam a capa aqui) está nas bancas a partir desta Quinta-feira, 30 de Março. Como não a costumo encontrar nos quiosques cá da zona, façam-me um favor, e comprem-na por mim!

Imagens de Deli: Cartaz político na JNU

segunda-feira, 27 de março de 2006

Racismo e os africanos em Deli

Há certas regras que me parecem profundamente enraizadas na nossa maneira de pensar, pelo menos entre as pessoas minimamente moderadas e formadas. Uma delas, com que cresci, é a conhecida regra universalista e humanista, que estabelece que todas as pessoas são iguais. Que os seres humanos, independentemente da sua origem étnica, religião, estatuto socio-económio, independentemente de qualquer particularidade, têm as mesmas necessidades, os mesmos sentimentos e as mesmas aspirações. Neste sentido, o momento fracturante é o da nascença, porque, teoricamente, até esse momento, somos todos iguais, e só depois os caminhos e as ideias se divorciam, dependendo do contexto em que crescemos.

Contudo, a regra é moldada pela experiência e faz-nos crer que uns são mais iguais que outros. A historiografia ocidental, portuguesa incluída, confronta-nos com um passado em que, juntando a e b, somos levados a crer que o racismo é algo de predominantemente ocidental. Unilateral, da civilização branca para com as suas congéneres. Não quero dizer que nos ensinam isto nos livros (às vezes sim). Mas, expondo a regra da igualdade ao passado e à experiência do nosso dia-a-dia, acredito que a grande maioria associe o racismo às pessoas ocidentais e conceba o racismo de forma a ser um constituinte identitário, se não exclusivo, das pessoas brancas. Por exemplo, é raro abrirmos o jornal e ler que uma pessoa branca foi discriminada em Lisboa, sendo o caso contrário (um negro ou um asiático, por exemplo) frequente.

Talvez por isso esta minha experiência na Índia me esteja a surpreender. Estou a descobrir essa mesma associação inconsciente que praticava quando me movimentava por Portugal, pela Europa e pelo mundo ocidental. Estou a confirmar a regra básica e fundamental (todos são iguais), e a descobrir que embora a aplicasse em termos teóricos, não a praticava nem em termos analíticos, nem práticos. Não é portanto uma descoberta, mas simplesmente uma redescoberta.

Esta minha redescoberta prende-se com as minhas observações num centro comercial aqui das redondezas, onde passo algum do meu tempo livre. Frequentam-no muitos africanos, na sua maioria nigerianos, mas de muitas outras nacionalidades também. Encontram-se às dezenas em certos locais. Um desses, é o estabelecimento de chamadas telefónicas internacionais a custo reduzido a que recorre grande parte dos estrangeiros que reside na área. Enquanto nas minhas centenas de idas ao local vi eslavos, europeus, americanos e asiáticos utilizarem o serviço normalmente, sem reclamarem, e à saída entregarem a quantia devida ao funcionário, observei mais de meia dezena de episódios profundamente chocantes, exclusivamente com africanos.

O funcionário, que é gerente da loja em regime franchising, é um pequeno, magro e jovem indiano. Nos casos dos utilizadores africanos abusivos que observei, inventam reclamações, mentem e inventam de formas variadas (afirmam que não fizeram chamada nenhuma, que não havia sinal, que a chamada devia ser gratuita, que não trouxeram dinheiro, que ele os anda a enganar, etc.), passam para um tom de voz ameaçador e chegam a empurrá-lo e a abusá-lo com todos a assistirem. São obviamente grandes e fortes e nem o velhinho segurança de carabina na mão intervém nesses momentos, deixando-os sair calmamente sem pagar. Há dois anos que observo estes episódios no mesmo local.

Ontem, no McDonalds, assisti a outro caso similar. Numa loja repleta, rodeados de famílias e crianças, dois africanos exigiam troco de mil rupias do operador de caixa, quando lhe tinham entregue somente quinhentas (embora afirmassem o contrário, eu próprio vi que tinham dado só quinhentas). Empurraram violentamente as pessoas à volta, gritaram que iam partir a loja toda quando voltassem, insultaram os operadores indianos que respondiam com um silêncio amedrontado. E saíram depois, a sorrir.

Outro caso que já observei nas ruas de Deli é a maneira autoritária e mesmo violenta com que muitos africanos tratam os condutores de riquexó. Como já vos escrevi anteriormente, os condutores de riquexós são, na minha opinião, da classe empregada mais discriminada na cidade. Os africanos aprenderam rapidamente. Já assisti a episódios em que esmurraram condutores, entre outros abusos físicos e verbais. Novamente, nunca vi nenhum outro estrangeiro comportar-se de tal forma.

Os três exemplos terão que ser testados. Primeiro, será este comportamento reflexo de uma condição socio-económica marginal? Será possível explicar que os africanos se comportam assim porque têm um estatuto diferente dos restantes estrangeiros em Nova Deli? Não. Vestem-se bem, têm telemóveis topo de gama, e embora alguns estejam envolvidos em redes criminosas (especialmente nigerianos), vivem na sua grande maioria em condições económicas boas, muitos dos casos que observei envolviam mesmo diplomatas ou os seus familiares e estudantes E, para contrastar, escuso de lembrar a pobreza em que vive a grande maioria dos indianos em Nova Deli.

Segundo, será este comportamento reflexo de um sentimento de discriminação? Será que os africanos são igualmente discriminados e violentados na sua integridade? É possível. Os indianos tratam as pessoas negras com um profundo desrespeito e desconsideração, num racismo primitivo que é expandido, até em centros urbanos e em universidades como a minha. Mas isto só vem confirmar a minha perspectivas, de que todo e qualquer ser humano tem potencial igual para discriminar racialmente. Contudo, devo dizer que tenho as minhas dúvidas se o comportamento africano em Nova Deli se deve somente a este estatuto de vítima. Seria desculpabilizar a vítima, coisa que a priori não gosto de fazer. Nunca vi um indiano bater num africano, mas ao contrário sim. E isto numa cidade em que os africanos são uma minoria ínfima.

Terceiro, e é esta a questão fundamental, são os comportamentos acima descritos baseados numa crença racial, ou simplesmente reflexo de uma expressão e forma de viver cultural, diferente da dos indianos e de todos os outros estrangeiros que vivem em Nova Deli? Aqui, igualmente, recuso refugiar-me no relativismo cultural, ainda por cima tendo a experiência da observação do meu lado. É complicado ler o que vai na mente de uma pessoa, mas em todos os casos de abusos e violência africana contra indianos, estava lá o elemento racial, nas palavras, na expressão facial ou nos gestos. Um ódio não para com a pessoa violentada, mas um ódio e um ataque ao indiano, à pele castanha, ao cabelo oleoso, ao corpo frágil e magro, ao despojado e fraco.

Teria tido as minhas dificuldades em escrever este texto em Lisboa. E teria tido medo de estar a minar a própria regra em que acredito – que a raça não predetermina comportamentos – e de estar a legitimar um racismo contra as pessoas negras, contra os africanos. Isto só confirma a minha suposição que seguimos uma regra na teoria, mas só a aplicamos parcialmente na prática, que temos medo de compreender as coisas realmente de forma igual e que sofremos daquilo a que muitos chamam “white man’s burden”. Felizmente a Índia confrontou-me com esta experiência e me ajudou a compreender que, de facto, todos somos, ou podemos ser, igualmente racistas ou vítimas de racismo.

sábado, 25 de março de 2006

Citações de Deli: João Lin Yun

"...sem formação de recursos humanos especializados, sem investigação e inovação, os Estados Unidos e a Europa em geral, e Portugal em particular, arriscam-se a ficar para trás, a perderem a qualidade de vida que actualmente possuem. Nos tempos actuais, já não é impensável que durante o século XXI, o centro de gravidade do mundo se desloque progressivamente da Europa e Estados Unidos para a Ásia, e que um dia, os netos da actual população mundial pensem em ir a Pequim ou Nova Deli para estudarem, para fazerem os negócios mais importantes, ou para procurarem uma vida melhor."

João Lin Yun, in "Século XXI: o século da Ásia?", Expresso (Economia), Sábado, 25 de Março 2006

sexta-feira, 24 de março de 2006

O sagrado é moderno?

Tenho ido a alguns casamentos hindus e tenho no currículo a ida a dezenas de casamentos católicos em Goa. Quanto a cerimónias religiosas em geral, a experiência não abunda, mas chega para eu começar a duvidar: o sagrado não será moderno?

Não há escapatória: em todas as cerimónias religiosas a que assisti neste subcontinente, sempre me pareceu que houvesse uma profunda falta de respeito pelo sagrado, pelo religioso ou pelo formal.

Explico-me: numa festa de casamento hindu, enquanto que os pânditas executam rituais religiosos com os noivos e os seus familiares mais íntimos, as centenas de convidados não se dignam sequer a lançar um olhar para o pequeno pedestal que suporta a cerimónia, continuando a dançar histericamente ou a comer, a beber e a conversar como que se nada se passasse.

Já as dezenas de fotógrafos e operadores de câmara – profissionais contratados para a cobertura ou simplesmente familiares interessados em gravar o momento – também não têm o mínimo pudor, empurrando-se uns aos outros, puxando os pânditas pelos ombros e empurrando os noivos para frente ou para trás, em busca do melhor ângulo possível.

O que me chocou a mim, a falta de respeito pelo momento sagrado, talvez seja simplesmente um conceito moderno. É que o desrespeito a que assisti aqui não é voluntário, consciente. É aceite por todos, é prática e norma. O casamento é uma festa, acima de tudo. Aqui parece que foi sempre assim. Não há mal dançar enquanto que ao lado os noivos recebem uma benção. Não é preciso estar alinhado, de pé, a fingir interesse, respeito e veneração pelo ritual.

Posso estar enganado. A modernidade, o consumismo e o afastamento da tradição estão rapidamente a ganhar terreno na Índia. Nesse caso, os sujeitos que bamboleavam freneticamente os seus corpos na pista de dança enquanto que os pânditas cobriam os noivos de fumos e benções, estariam somente ofuscados pelo entretinimento, olvidados da essência formal e sagrada do momento. Perguntei a uns colegas se sempre foi assim, para resolver a minha dúvida. Ninguém sabia bem. Ou não compreenderam a pergunta: “qual é o mal de estarmos a dançar?”, retorquiu um, afirmando em contra-ataque e esclarecendo as minhas dúvidas: “não é igualmente sagrado festejar e celebrar o casamento do meu amigo dançando?”.

Mas, naqueles angustiantes momentos em que me vi confrontado com uma cena que no Ocidente seria implacavelmente identificada como escandalosa e desrespeitosa, e em que procurava insistentemente um ponto de referência ou uma explicação lógica, veio-me esta ideia à cabeça (pouco original, em termos académicos, bem sei): não terá sido a modernidade a inventar o sagrado, a salientar a importância dos rituais e a exigir respeito e veneração, especialmente pelo religioso? A cena a que assisti, não será prova disso mesmo, da ausência ou da especificidade da modernidade na Índia?

Devo legitimar esta minha ideia com uma experiência própria, que talvez a possa fundamentar. Não me posso categorizar como um produto da diáspora, porque conhecerão os meus pontos de vista em que ponho em causa a comunidade goesa em Portugal como uma verdadeira diáspora ou minoria étnica. Mas tenho certamente alguma experiência diaspórica. Uma delas diz respeito ao relacionamento com o sagrado.

Explico-me: longe das origens, e perante a confrontação com um novo contexto cultural, as comunidades diaspóricas do século XX enamoraram-se (e o namoro continua) com o moderno. Prova-o a sua íntima ligação ao nacionalismo e à nação. Mas, para além da nação, a sua relação com o moderno levou também a este respeito para com o sagrado. Sempre me foi incutido este respeito por certos rituais e certos símbolos ou instituições, apresentadas como inquestionáveis. Ora, na minha redescoberta de Goa, e da Índia em geral, deparo-me de repente com um mundo diferente, em que sou por vezes o único a venerar de forma tão sagrada e formal esses rituais, símbolos e instituições, enquanto que os autóctones têm uma relação muito mais descomplexada, natural e informal com as mesmas, ou seja, pré-moderna.

No meu caso, por exemplo, é vestir-me de fato e gravata para um baptizado em Goa e andar semanas a tentar decorar as rezas e respostas correctas, em pânico por medo de vir a infringir o ritual e eventualmente vir a ser ostracizado, para depois constatar que o meu primo (pai do bébé) vai à cerimónia de camisa de mangas curtas, depois de beber uma cerveja, e durante o ritual se lembrar de perguntar ao padre “e o que é que eu digo agora?”, e este lhe responder com a maior das naturalidades.

O fenómeno diaspórico é somente um exemplo, o mesmo podendo acontecer em outros contextos. Mas penso que retrata de forma mais clara porquê o sagrado é talvez menos tradicional do que pensamos, e até bastante moderno. E, seguindo a minha lógica, os ocidentais continuam a ser bem mais modernos do que pensam e muito mais modernos ainda do que os indianos, por exemplo. Mas há também casos em que a modernidade ocidental se transpôs com sucesso para o Oriente e cá resiste com mais força do que no Ocidente. Veja-se por exemplo o que fez o colonialismo e a modernidade ocidental de cariz britânica vitoriana à sexualidade na Índia... mas isso fica para outra vez.

quarta-feira, 22 de março de 2006

Citações de Deli: Gail Omvedt

"Admitting the existence of caste - and of the major anti-caste movements - is the first setp towards dealing with it. All societies in the world today have similar problems - race, ethnic conflicts etc. Yet the favoured policy in India today is to revel in the infatuation of 'India Shining', a high rate of economic growth, a surging stockmarket, a new elite 'Generation Me' whose self-confidence, experimentation (sexual and otherwise) is featured in every other issue of national newsmagazines. What goes forgotten in the official dream are the still burgeoning inequalities - regional, caste and class - farmer's suicides in the face of a drought-ridden and technologically backward agricultural sector, superstitions, riots and atrocities against women and dalits."

Gail Omvedt, in Tehelka, edição de 11 de Março 2006, referindo-se à recente obra DeBrahmanising History, de Braj Ranjan Mani.
Um conjunto de afirmações que reflecte bem uma das tendências intelectuais mais em voga no mundo académico indiano. Exagerando (na minha óptica), não deixa de ter mérito, porque aponta para uma outra Índia - menos emergente, mais submergente - e abre os olhos a quem de longe, ou aqui mesmo, se deixa ofuscar por uma Índia supostamente brilhante.

Imagens de Deli: Chá

Em qualquer esquina, na margem de qualquer estrada ou avenida, por debaixo de qualquer telheiro, na Índia basta pouco para fazer e vender chá. Chamam-lhe "chae", e há diversas variantes, sendo a base o chá preto, variando depois a quantia de açúcar ou outras especiarias (o masala picante, por exemplo) a adicionar. Nas manhãs frias do inverno o chae faz aquecer. Nos tórridos dias de verão faz as pessoas transpirar e arrefecer. Depois das refeições picantes, adocica a língua e suaviza a garganta. Nas noites de estudo desperta a mente entorpecida. Por duas, três, quatro ou cinco rupias, ou mesmo de borla se fruto da amizade, o chae é um dos símbolos da Índia, uma das suas imagens de marca e o sustento de uns tantos milhares, servido a ferver nos grossos copos de vidro ou nos finos copitos de papel.

domingo, 19 de março de 2006

Citações de Deli: Lakshmi Mittal


"Europe must continue to look outwards. I have watched the growth of a united Europe - the move away from narrow nationalism - with admiration. (...) The danger, though - and there have been signs of this recently - is that Europe begins to demonstrate a return to more nationalist sentiment".

in The Hindu, 19 de Março 2006

O magnata indiano Lakshmi Mittal, um dos homens mais ricos do mundo, numa palestra no 4th European Business Summit, em Bruxelas. O dono da maior empresa produtora de aço no mundo, a Mittal Steel, refere-se assim à sua controversa oferta de aquisição da Arcelor, uma multinacional produtora de aço do Luxemburgo, França e Espanha. A sua ofensiva foi recebida mais com surpresa do que com hostilidade. Apanhou a Europa desprevenida. E este é só o começo da história. Não deixando de ser pedante e forçada - regra geral quando empresários se põem a falar de política internacional - a afirmação de Mittal tem uma importância mais profunda e simbólica, ainda por cima proferida no centro nevrálgico comunitário europeu: é um claro sinal dos tempos.

sábado, 18 de março de 2006

Imagens de Deli: Cicloriquexó

Estes são os cicloriquexós (cycle-rickshaws) que continuam a ser muito utilizados por toda a cidade. Transportam um pouco de tudo, sempre puxados por musculadas e pobres pernas pedalantes. Uns 2 km, incluindo subidas e descidas e tudo o que couber na caixa, custam menos de um Euro. Neste caso, parecia que a carga ou o cansaço eram demasiados, mesmo com a ajuda dos dois miúdos que pareciam estar mais interessados na minha objectiva. Os objectos são pequenas lamparinas de decoração utilizadas em festas, especialmente casamentos.

quinta-feira, 16 de março de 2006

Disclaimer

Tenho reparado que a maioria dos estrangeiros, e mesmo alguns indianos, começam sempre com um aviso inicial, tipo disclaimer, antes de lançarem alguma opinião geral sobre “a Índia”, acerca “deste país”, ou relativa aos “indianos”. Esse aviso versa quase sempre assim: “Claro que há uma diversidade enorme, mas falando em termos gerais...”. Afinal, a Constituição reconhece oficialmente mais de duas dezenas de línguas, para além de haver perto de um milhar de idiomas e dialectos falados de Norte a Sul, dezenas de religiões que se professam activamente de Leste a Oeste, centenas de divindades que recheiam o panteão hindu (com nomes de A a Z), dezenas de grupos étnicos (dos arianos aos descendentes de zulus) e centenas de castas e subcastas (dos brâmanes aos intocáveis). Mais e mais acredito que na Índia tudo é verdade, e o contrário também.

Imagens de Deli: JNU Library

sábado, 11 de março de 2006

Plástico e a economia indiana

Uma das coisas que mais me intrigava quando visitava Goa na minha infância, era o hábito de as pessoas manterem os plásticos de embalagem à volta dos produtos recém-comprados. A prática, para além de enigmática e misteriosa, provocava em mim uma profunda irritação, porque a achava contrária às regras elementares da usufruição, do consumo, do produto.

O local em que mais vezes me sentia confrontado com esta prática era no interior dos automóveis. O carro do meu primo, por exemplo, tinha todo os bancos e mesmo o manípulo das mudanças coberto por plásticos transparentes. Ruidosos e pegajentos com a humidade das monções, marcavam presença e resistiam quase um ano depois do carro ter sido comprado, mesmo esfarrapados e sujos.

Nos interiores das casas, a prática repetia-se. O comando da televisão continuava naquele santo invólucro plástico, impedindo mesmo a sua correcta utilização, por vezes escorregando os dedos para um botão errado.

Os computadores e demais aparelhos electrónicos, a mobília e mesmo o frigorífico era alvo desta cobertura plástica de embalagem, e achava aquilo um pouco como utilizar presentes de Natal ainda embrulhados. Para mim era um mistério porque é que as pessoas não davam aquele rasgo final, depois de retirarem o produto da cartolina, e libertavam o bem daquele asséptico e asfixiante cerco sintético.

Vários anos depois, em Nova Deli, volta-me tudo à memória quando me sento nas salas de aula e vejo os bancos e as mesas de madeira ainda semi-cobertas de plástico de embalagem. Mesmo nos novos auditórios, que se querem topo de gama, os plásticos mantêm-se renitentes, colados à madeira das mesas e aos estofos das cadeiras e às poltronas, durante e meses após a inauguração oficial. Nas salas de informática os teclados dão-nos iguais boas-vindas, tornando um e-mail numa sinfonia plástica.

Obrigado a confrontar-me com esta prática, um pouco por todo o lado, vejo-me forçado a tentar a lê-la e compreendê-la. Explicam-na, na minha opinião, dois fenómenos. O primeiro, está relacionado ao clima indiano. O plástico, embora não deixe respirar, protege os aparelhos electrónicos e até certo ponto a mobília também. As monções trazem aqui uma humidade avassaladora que penetra tudo e todos. O verão traz temperaturas e um fino pó que cobrem tudo e todos. Neste sentido, a prática de manter os plásticos de cobertura prende-se com a necessidade de proteger o bem.

Há no entanto uma segundo fenómeno explicativo. O plástico representa um estatuto económico, logo social. O plástico simboliza a novidade, o consumo e, geralmente, o moderno. Quando alguém entra em casa e se senta numa cadeira forrada daquele fino plástico, mesmo que não veja a madeira ou o seu material, sabe imediatamente que é um produto novo.

Mas mais do que novo, estes são bens produzidos em série, isto é, os produtos das novas indústrias da economia de mercado indiana. O plástico é portanto o rótulo de garantia que distingue os novos produtos capitalistas, de marca, dos produtos tradicionais, oriundos da economia tradicional, ou seja, da garagem de artesanato da esquina, do carpinteiro da aldeia ou da pequena indústria pública da região, que vêm embalados em papel de jornal reciclado e protegidos por palha.

O plástico é pois símbolo de status na Índia. Asfixia os produtos, mas protege-os do clima, representa novidade e traduz capacidade de compra e integração do dono na nova economia de mercado.

quinta-feira, 9 de março de 2006

Citações de Deli: Gandhi

"It is necessary that civilization (Eastern) should come in contact with the West, it is necessary that civilization should be quickened with the Western spirit. Immediately that fact is accomplished, I have no doubt that the Eastern civilization will become predominant, because it has a goal. (...) There is no such thing as Western or European civilization, but there is a modern civilization, which is purely material."

Mohandas Gandhi citado em "The Selected Works of Mahatma Gandhi, Vol. VI: The Voice of Truth" (Ahmedabad: Navajivan Trust, 1968), p. 441

Imagens de Deli: Arundhati Roy (ou A Esquerda na Índia)

A senhora em primeiro plano dispensa grandes introduções, creio. Vencedora do Booker Prize com o seu God of Small Things que encantou meio mundo, escolheu a vida Robin Hood. Decidiu abandonar a promissora carreira literária nas luzes da ribalta global (especialmente ocidental) para passar a ser uma das mais célebres activistas sociais e políticas da Índia. Participa e dá voz a uma extensa lista de movimentos pelos direitos humanos, ambientalistas etc., denunciando aquilo o que poucos têm coragem de denunciar (a situação na Caxemira).

Pensam que deixou de escrever, só porque nunca mais ouviram falar dela ou viram o seu nome nas prateleiras da FNAC? Errado. Escreveu mais uma meia dúzia de obras, só que sobre temas mais incisivos, sobre a democracia, movimentos sociais indianos e ao que chama o "imperialismo norte-americano". Neste último ponto tenho obviamente as minhas divergências com a senhora, especialmente sobre a maneira superficial, primitiva e diabólica com a qual caracteriza o Dr. Bush, uma maneira que encontra aliás melhor expressão na caricatura ao fundo da fotografia.

Tirei a foto durante um "anti-Bush meeting" na minha universidade, em que Roy foi também oradora. Na manifestação do dia seguinte, no centro da cidade, que reuniu alguns milhares de pessoas, Roy juntou-se ao que eu identifico - sem hesitações - como a emergência da esquerda radical indiana urbana e chique, que vive em condomínios de luxo estanques à miséria vizinha, que viaja por todo o mundo em executiva para participar em workshops e conferências patrocinadas pelas instituições internacionais que depois critica em público, que envia os filhos para estudarem nos Estados Unidos e que... come caviar ao pequeno-almoço.

Deixem-me moderar esta minha crítica. Este fenómeno é por enquanto reduzido e minoritário - dominando ainda a monolítica esquerda marxista e maoísta em vastas regiões e círculos intelectuais do país. Mas não deixa de ser paradoxal que esta esquerda-chique anda de mãos dadas com aquilo que supostamente mais condena e despreza: a globalização.

Uma nova ordem nuclear mundial (Expresso)

EXPRESSO, Edição 1740, 04.03.2006, Internacional

Uma nova ordem nuclear mundial

Índia assina acordo de cooperação nuclear

«HOJE fizemos história», disse o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, no final da conferência de imprensa conjunta com George W. Bush, na quinta-feira. O acordo de cooperação para a energia nuclear estabelecido entre a Índia e os Estados Unidos, no decurso da visita de três dias do Presidente americano, concede àquela um novo estatuto nuclear, convida-a a participar no reactor experimental de fusão termonuclear (ITER) e aproxima-a mais do que nunca aos Estados Unidos. Razões de sobra para comemoração.

Sexto maior consumidor mundial de petróleo, importando 70% das suas necessidades, a Índia procura alternativas para o sector energético e quer garantir o crescimento económico anual de 8%. O seu programa nuclear foi iniciado nos anos 60, com ênfase no sector militar, tendo o civil permanecido sub-aproveitado e contribuindo em menos de 2% para a produção energética.

Mas o facto de a Índia nunca ter assinado o Tratado de Não-Proliferação Nuclear e de ter sido alvo de sanções internacionais depois de ter realizado testes atómicos em 1998, conferiu-lhe um papel de pária, que agora deverá cessar.

Índia nuclear.

O acordo permite também a Nova Deli afirmar-se no plano internacional. No Parlamento, Singh disse mesmo que ele «criará espaço para a Índia emergir como membro pleno de uma nova ordem mundial nuclear». Estima-se que a Índia mantenha várias dezenas de ogivas nucleares e mísseis balísticos com alcance superior a dois mil quilómetros.

O Governo conta, porém, com forte oposição interna. Cientistas indianos receiam que as condições impostas pelo acordo (separação do programa civil do militar e inspecções internacionais) venham a pôr em causa a independência de um sector estratégico que se encontra em franca expansão (ver infografia).

Nas várias manifestações de protesto organizadas durante a visita de três dias de Bush, Singh era acusado de «sucumbir ao imperialismo americano» e de «esquecer a tradição não-alinhada do país».

Para Manosh Joshi, membro do Conselho Consultivo para a Segurança Nacional, a nova orientação é menos dramática. «A diplomacia indiana está a adaptar-se há já vários anos às novas realidades», declarou ao EXPRESSO, lembrando que «relações mais positivas com Washington irão cimentar a sua emergência e satisfazer também o desejo americano de conter a China na Ásia».

O ex-diplomata minimiza os receios da Índia fazer proliferar tecnologia nuclear, apontando para o seu passado «responsável, em contraste» com o vizinho Paquistão.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

terça-feira, 7 de março de 2006

Black market

Estou a viver um dos momentos mais angustiantes da minha experiência académica por terras asiáticas e já receava isto há muito tempo. Enquanto eu revejo regras elementares que nos foram ensinadas à pressa e de forma um tanto desleixada, num primeiro ano de licenciatura em Relações Internacionais na Nova, os meus colegas indianos, como que por milagre, parecem que nasceram com elas no sangue. Em Principles of Economic Organization começo a compreender, in situ, a capacidade e o potencial económico da Índia. Só resta deliciar-me com as ingénuas presunções de economistas: "It is unlikely that all of the output will be sold on the black market - both because there are some honest people in every society and because the central authorities usually have some power to enforce their price laws" (Introduction to Positive Economics, p. 103, Lipsey; negritos meus). Porque é que fico com a sensação de que isto assim não se aplica de todo à Índia?

A Vida em Deli no Acidental

Seguimos o alfabeto. Depois do Abrupto, agora o Acidental a dar voz à Vida em Deli (o próximo blog a recomendar-nos: talvez o Ad Limina Apostolorum?). Porque há quem saiba reconhecer que a Oriente há algo de novo. Não se trata de uma recomendação acidental a esta vida (a atenção dada à Índia é reincidente). Porque nada é acidental no Acidental. Bem pelo contrário, algo delineado a longo-termo, com tronco, cabeça e membros, muitos membros. A não perder, se um dia não se quiserem deixar surpreender.

Goa desmoronando-se

Several hundred Hindu protesters stormed a police station in a town in the coastal state of Goa on Saturday, demanding the release of 37 men arrested during violent Hindu-Muslim clashes in the area. The protesters defied a police curfew imposed after three days of clashes, sparked when suspected Hindu extremists destroyed a mosque in the town of Sanvodem.

Quem diria? 451 anos de colonialismo português empalidecem em relação ao que se passa em Goa nestes dias. Quem adivinharia? O violento vírus fundamentalista hindu, o caos migratório e o vácuo identitário goês, enraizando-se na terra vermelha, por entre cajueiros e mangueiras, zatras e ladainhas, paz e tolerância.

Quem arrisca a interpretar? Eu: 45 anos de Goa indiana destruíram aquilo o que os "colonialistas, sanguinários, inquisidores, violadores, piratas e missionários" não conseguiram destruir em 451 anos de Goa portuguesa. Que tristes dias estes, em que os próprios goeses assistem impávidos, passivos e mesmo compreensivos ao desmoronar da sua sociedade.

Em nome de nada e de ninguém. Contra o passado e o contra futuro.

Imagens de Deli: Músicos de casamento


Grandes bandas de músicos animam os casamentos indianos, acompanhando a noiva, o noivo e outros cortejos familiares das residências até ao local da festa. Há várias empresas que fornecem este tipo de serviços. As mais baratas limitam-se a juntar uns homens pagos à hora e em cima da hora, enfiá-los nuns fatiotes de papel ou cartolina e a pô-los a fazer o máximo ruído possível, munidos de tambores e cornetas. Já as mais profissionais presenteiam a audiência com autênticos espectáculos, atraindo multidões às ruas, para os ver e ouvir.

O negócio, nestes meses de Fevereiro e Março, é da China. Dependendo dos conselhos dos astrólogos, há dois ou dias marcados em cada ano em que as condições cósmicas são as mais favoráveis à união (mas as datas variam, é claro, mediante vários outros critérios, especialmente a disponibilidade do espaço). Há portanto datas (normalmente em finais de Fevereiro) em que se festejam só em Nova Deli quase um milhar de casamentos, ao mesmo tempo, na mesma noite.

Em cima, uma recepção à porta de casa de um noivo, em frente ao meu antigo prédio. Em baixo, três músicos já um tanto exaustos, ao final da noite, à espera de pagamento.

quinta-feira, 2 de março de 2006

Sempre a abrir

Hoje a Índia foi sempre a abrir. De repente conquistou as linhas de topo da actualidade jornalística, os editores lembraram-se que têm correspondente na Índia ou procuraram urgentemente comentadores especialistas na matéria para comentários. É assim, quando o imperador, ditador, libertador, aliado, inimigo, amigo ou simplesmente Presidente dos Estados Unidos da América decide vir visitar o maior país do sub-continente asiático. Ainda por cima quando a questão principal da conferência de imprensa mete a palavra "nuclear", isso é a cereja em cima do bolo mediático.

Portanto, o dia foi igualmente diabólico para mim, embora tenho tido menos sorte do que quando pude entrevistar o Zé Manel. Fiquei cá em casa, ouvindo sirenes e manifestações lá fora, montando o meu quartel-geral jornalístico lusófono em terras indianas. Logo de manhã liga-me a simpática jornalista Gisela Heymann de Paris, da Radio France International - Emissão Brasil/Lusofonia, a pedir comentário meu ao acordo nuclear que tinha acabado de anunciar. Se forem a este link ainda hoje, e ouvirem a segunda notícia, ouvirão uma amostra da entrevista mais longa, que, ao que parece, também foi transmitida na Rádio Paris-Lisboa (RPL) aí em Portugal.

Depois de lhes enviar um lembrete de que se passava algo nuclear pelas Índias, também me pediram uma peça da Rádio Renascença que podem ouvir neste link (uma parte só, claro) e que foi para o ar no jornal das nove da manhã e, presumo, em noticiários subsequentes. É a minha terceira peça radiofónica, calma, vou melhorando!

E claro, para o maior semanário luso, seguiu um artigo especial de análise, que deverá ser publicado no Sábado (Internacional) e que poderão ler se decidirem comprar o saco de plástico que foi do Saraiva.

Tudo isto custou-me um dia inteiro de trabalho, embora até seja uma matéria com que estou familiarizado e em que já tinha a entrevista feita. Um dia inteiro de estudo, também, porque amanhã há exame a "Indian Electoral Systems and Processes".

Imagens de Deli: Tyler Walker Williams

Apresento-vos um dos meus dois companheiros de apartamento, o Tyler. Norte-americano de gema, formado em Berkeley, Califórnia, é um verdadeiro especialista em hindi. Vive há já vários anos na Índia e depois do seu M.A. está a tirar agora o M.Phil. em Hindi na JNU, School of Languages. Isso é como um chinês vir a Portugal e fazer o mestrado em Estudos Portugueses / Linguística aí numa universidade. É aliás o meu professor no curso hindi intermediate para estrangeiros.

Mas a faceta mais peculiar é a sua afiliação política. É membro de um dos movimentos estudantis mais radicais, chamado AISA (All-India Students Association), braço académico de um dos partidos comunistas mais ferrenhos na Índia e que mantém uma posição muito ambígua perante a democracia parlamentar de cariz liberal. Tyler conseguiu um feito inédito nas eleições para a Associação de Estudantes (Student's Union, JNUSU). Cada faculdade tem os seus representantes e ele foi eleito, como estrangeiro e ainda por cima americano, para um desses postos.

Para terem uma ideia da importância destas eleições, na noite de contagem de votos há vários carros de exterior das principais estações de televisão a transmitir em directo, e os resultados chegam mesmo a fazer capa nos jornais nacionais do dia seguinte. No ano passado Tyler foi obviamente dos assuntos mais discutidos e os movimentos estudantis mais radicais (afiliados aos nacionalistas hindus do BJP) ameaçaram mesmo apresentar queixa-crime na esquadra da zona (porque isto de estrangeiros candidatarem-se em eleições internas e assumirem cargos é assunto delicado, vide o caso da italiana Sonia Gandhi).

Tyler é desde então uma das faces políticas mais conhecidas do campus universitário. Trabalha até à exaustão, dá o curso aos estrangeiros, explicações a mais meia dúzia de estrangeiros pela cidade fora, é Vice-Presidente da Foreign Students' Assocation, toca baixo numa banda de jazz, entre outros. E embora cá em casa, desde o início, se tenha imposto um acordo de cavalheiros para não falarmos de política e evitar conflitos maiores, Tyler é alguém com que me tenho entendido supreendentemente bem, discutindo e debatendo saudavelmente qualquer tema e eu aprendendo bastante, muito embora a sua inclinação ideológica me tenha criado um calafrio a priori. Mas o melhor é mesmo vê-lo chegar nestes agitados dias rouco a casa depois ter passado o dia a gritar palavras de ordem e a entoar cânticos contra... Bush e os Estados Unidos.