sábado, 29 de outubro de 2005

Siddarth Singh again

Poucos dias depois voltei a ser multado por Siddarth. Num cruzamento surrealista que se apresenta como um claro atentado a qualquer lógica, rodoviária ou matemática, passei um sinal vermelho. Faço-o sempre que não haja carros em direcção contrária, limitando-me a assimilar os hábitos de condução local.

Mas nesse dias apercebi-me que o meu problema é não ter assimilado outras capacidades locais, como por exemplo a apurada sonda policial. Por isso, quando já ia rapidamente lançado na minha LML, surge por debaixo de uma mangueira, à beira da estrada, Siddarth e o seu superior. Coloca-se no meio da avenida e manda-me parar, não me reconhecendo porque uso capacete.

Quando o retiro vejo Siddarth esboçar uma leve reacção facial de surpresa, mas como que instintivamente, seguindo ainda zelosamente o que aprendeu na escola policial, saca do bloco de autuações. Pergunta-me se estava consciente da infracção – limito-me a registar que não tinha visto e que iria parar certamente da próxima vez. Enquanto preenche o formulário vamos conversando animadamente.

Ao abrir a minha carteira para lhe pagar as 100 Rupias devidas, comenta alguma coisa que não compreendo. Já domesticado, e um pouco desiludido, penso logo que me está a pedir o baksheesh, e que é um oficial tão corrupto como todos os outros e que a minha consideração para com ele era injusta. Peço-lhe para repetir. "Can you show me Euro coins next time we meet? I want to see".

terça-feira, 18 de outubro de 2005

Siddarth Singh

Siddarth, no seu uniforme azul e branco, acena desajeitadamente com a mão. Ainda tento guinar para a direita e escapar-me por detrás de um rick-shaw e para o meio de uma manada de vacas que vem em sentido contrário. Mas, surge então mesmo um segundo vulto por detrás de Siddarth, com uma pose mais respeitável, com mais umas listas douradas no ombro e com um aceno bem mais intimidatório.

Abrando, viro à esquerda com a maior das naturalidades e olho-os aos dois nos olhos. Nenhum de nós tem capacete. A mota comprei-a em segunda mão a um estudante amigo. Os documentos ainda estão em nome dele. Não tenho seguradora. Tenho uma carta de condução internacional, mas só para categoria de veículos ligeiros. E, de toda esta pouca coisa que tenho para me apresentar aos dois que me olham com olhar inquiridor, nada possuo comigo naquele momento. Vamos ver no que isto dá, digo para comigo calmamente.

Siddarth, que nem aprendiz, pergunta-me em Hindi por alguma coisa. Eu sei o que é alguma coisa. Mas como o barulhento motor ainda está ligado, fingo não perceber. Siddarth faz-me sinal para o desligar. Desligo e mando-o repetir. Siddarth repete. No meu rude Hindi, digo-lhe que não falo Hindi. Com isto passaram-se alguns quinze segundos. O suficiente para o chefe de Siddarth se começar a desinteressar de mim e voltar a olhar para a estrada à caça de novo peixe. Está ganha a primeira batalha.

Siddarth vê-se um pouco aflito. As suas bochechas redondas e os seus olhos curiosamente amáveis não lhe permitem desempenhar a sua função autoritária e policial, parece-me. Enfardado num branco que se aproxima perigosamente do cinzento, Siddarth mais parece um daqueles meninos mimados do secundário que saem da escola a correr, pelo caminho empoeirado, em direcção aos balofos braços da mãe e aos rotis e aos lassis.

Mas Siddarth é capaz de muito mais que os seus restantes colegas. Siddarth tem uma capacidade extraordinária que o distingue dos demais milhares de efectivos da Delhi Police que diariamente extorquiam milhares de Euros aos cidadãos delienses. Muda para inglês, que domina surpreendentemente bem, e faz-me umas poucas perguntas para me enquadrar melhor e sondar a melhor maneira de me abordar. Respondo às perguntas de ocupação, morada, nacionalidade, paternidade e breve linha genealógica, nesta ordem, tudo em menos de dois minutos, num tom confidente e respeitoso.

Então, ao terceiro minuto da conversa, Siddarth começa a enumerar pedagogicamente todas as contra-ordenações que cometi. Com ajuda de uma caneta, aponta para uma lista em que são indicados os valores de multa. E, vai apontando e somando todas as que se me aplicam. Que nem aluno atencioso, ainda encostado à mota, assisto silenciosamente. Tanto ele como eu sabemos já como tudo vai acabar. Tanto eu como ele estamos já em sintonia.

Siddarth puxa então uma linha no seu bloco de notas, e chega ao valor total de 6000 Rupias, totalizando vários salários mínimos mensais indianos. Olha para mim, respira, e inicia a segunda fase. Explica pacientemente, ponto por ponto, porque é que devo seguir as regras de tráfego, usar capacete, ter os documentos comigo, ter uma seguradora. Recorre a exemplos e hipóteses. Depois, com um risco todo-poderoso que só uma caneta policial poderia executar, anula todos os valores menos a multa por falta de um capacete. 100 Rupias.

Depois de formalmente me perguntar se quero ir a tribunal amanhã de manhã ou pagar já, preenche o formulário e vai fazendo algumas perguntas mais pessoais para tal. Pago e inicia-se uma conversa amigável, sobre o futebol em Portugal (confessa-se grande adepto de "Figo, Ronaldo e os outros") e sobre a queda de qualidade da equipa nacional indiana de hóquei em campo. Já passam vinte minutos, quando, ainda em amena conversa, Siddarth é chamado pelo seu chefe para tratar de mais um caso. Abandona-nos com um forte aperto de mão e um curioso "hope to see you again soon". Já em andamento, vira-se e aponta sorridente o seu dedo contra a cabeça: "and don't forget, a helmet can save your life!".

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Keylong (3)

Não sairíamos do vale antes do quinto dia. Depois de voltarmos ao Mentokling e pormos o sono em dia aventuramo-nos com os outros cinco estrangeiros pela aldeia, seguindo pela estrada. Poucas centenas de metros depois, apercebemo-nos da gravidade da situação. O que nesta altura veranesca do ano ano deveria ser um pequeno riacho tinha-se transformado num imponente rio. Nos cem metros seguintes que conseguimos avistar a estrada estava cortada por pesados desabamentos e rochedos do tamanho de pequenos camiões.

Estávamos ainda numa zona habitada. A aldeia é capital de distrito. Apercebemo-nos logo que nas regiões mais remotas e altas que a estrada atravessa a caminho de Leh a situação devia ser muito pior. Ao fim da tarde, aconchegados no restaurante e a bebericar chá, recebemos a confirmação do dono. Várias dezenas de estrangeiros encontram-se isolados a 4000 e mais metros de altitude, nos passes cobertos de tempestades de neve. Estamos bem, afinal. Mas a chuva continua, ocasionalmente cai neve. O vale coberto de espessa neblina. Ao segundo dia nem é possível sair do edifício. Deixa de haver água corrente e electricidade na manhã do terceiro dia. Não há ligação possível com o exterior – os telefones estão mudos e os telemóveis não têm rede.

Os aldeões já nos conhecem. Quando deixa de nevar e chove um pouco menos vagueamos pelas ruas semi-desertas. Ao terceiro dia, lembro-me que é o aniversário do meu afilhado, em Goa. Sem nada que fazer, tento a minha sorte no edifício do District Collector, o mais alto funcionário governamental na aldeia, porque nem a polícia tem telefone por satélite. Dizem-me que não há comunicação possível por telefone nos próximos dias, só mesmo enviando um telegrama.

Acho a sugestão um pouco estranha, mas tomo a iniciativa e dirijo-me à estação de telegrafia. O processo de envio demora mais de duas horas, tudo para "HAPPY BIRTHDAY CARL. YOUR PADRINHO, FROM KEYLONG, LADAKH". Já a sair, lembro-me de perguntar, só mesmo para confirmar, auando é que chega. O funcionário, envolto de mantas e já um pouco chateado, responde-me num tom seco: "When the phone lines work again".

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Keylong (2)

Decidimo-nos por um alojamento logo na rua principal, num pequeno restaurante chamado Mentokling que no piso inferior tem uns quartos limpos com casa de banho privativa e água quente. Estamos com o chinês e tentamos negociar. O dono, visivelmente tibetano, parece não estar a gostar muito das pancadinhas amigáveis nas costas do sino sorridente. "Come on, why not 150 Rupees? No difference for you, 50 Rupees. We are students, great difference for us". Talvez por se lembrar da caneta vermelha de que tinha sido alvo há poucas horas e talvez por se lembrar que não é por acaso que o Dalai Lama está exilado na Índia, o chinês interrompe o contacto físico, mas não deixa de insistir.

Quando começa a encerrar os quartos que nos tinham sido dados a ver como amostra, cedemos. E vale a pena. O nosso quarto está virado para sul, para o enorme vale verde que sustenta 5000 metros cobertos de rocha e neve. De dois lados abrem-se grandes janelas com generosas vistas. Há água quente para tomar banho.

Subimos ao fim da tarde para jantar, quando começa a escurecer. O restaurante não é mais do que a sala de estar da numerosa família do dono. Os filhotes correm por entre as cadeiras. Entram aldeões, bebem um chá quente e conversam. Logo por detrás das mesas, há um espaço mais quente, com fogão a lenha, o dormitório em que há uma dezena de confortáveis camas e muitos viajantes autóctones. A mulher e o filho do dono servem-nos comida caseira, uma sopa bem quente que nos prepara para o sono.

Choveria toda a noite. Um verdadeiro dilúvio, em nada comparável ao que jamais tínhamos visto. Durante toda a noite, a água não cessa de cair. Em plena escuridão, e acompanhado do som das grossas gotas caindo no telhado, vestimo-nos, pomos a mochila às costas, cruzamos o dormitório silencioso e saímos à rua. São quatro e meia da manhã. Reina a escuridão e a chuva.

Abrigamo-nos no único local que dá sinal de vida. Uma pequena dhaba, um cafézinho que nada mais é do que uma barraca e um homem que faz chá quente para os viajantes de passagem pela aldeia e que geralmente só aqui param o jeep por pouco minutos. Serve-nos um chá quente. Aparece o chinês. Passa-se o tempo e não há autocarro à vista. A rua, escura e molhada, só nos traz uns poucos viajantes indianos, um casal francês e um inglês, todos ignorando o destino do nosso meio de transporte. Não há sinal dos ladaquis ou de qualquer outro nativo. Não passa um único veículo.

Ao fim de uma hora e meia, por entre rumores e dificuldades de comunicação com os locais, apercebemo-nos daquilo que para os ladaquis tinha sido óbvio desde ontem de manhã. A Manali-Leh Highway encontra-se bloqueada. A chuva provocou uma avalanche ou desabamento e há que aguardar o piquete de emergência liderado pelo Exército indiano, responsável pela manutenção dos 500 quilómetros de estrada. Talvez ao fim da manhã, diz-nos o motorista indiano. Pelo canto do olho, vejo um aldeão esboçar um sorriso lacónico.