sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Telefonemas

Há um lugar aqui perto, em Priya. É uma zona em que se situam as lojas melhores, o McDonalds, um cinema etc. Entre os vários estabelecimentos há um cibercafé que também oferece ligações telefónicas internacionais a preços muito competitivos. Tipo "Call US / UK at Rps. 2 per minute". Chama-se Sify e prima pelo vermelho berrante dos seus painéis publicitários.

Obviamente, estando na Índia, este é um local que atrai todo o tipo de estrangeiros. É isso que torna aquele espaço de poucos metros quadrados fascinante, reflectindo uma impressionante diversidade em termos culturais, económicos e sociais. Aqui cruza-se um emaranhado de indivíduos temporariamente exilados na Índia e que quer comunicar com as suas origens.

Muitos dos quais são os meus colegas na JNU, o que já por si mesmo representa uma enorme diversidade que inclui uzbeques, coreanos, etíopes e demais estudantes internacionais. São pobrezinhos, coitados, que a bolsa indiana não dá para muito. E geralmente também são enviados pelos pais para estudar como bolseiros no estrangeiro porque não há possibilidade de os sustentar no próprio país. Deslocam-se por vezes em pequenos grupos ou comitivas nacionais. Assim, há dias em que encontro lá quase toda a comunidade tailandesa. As conversas são curtas – por óbvios constrangimentos económicos – mas extremamente emocionais. Muitas vezes é a única vez no mês que comunicam com os pais, com as namoradas e namorados ou mesmo com os maridos e filhos. Já assisti a muito chorar e soluçar.

Depois há as enormes comunidades africanas, legais e ilegais, que trabalham na Índia (ainda não percebi bem em que ramo, mas há muitos que são apanhados pela polícia por burla e fraude). Destacam-se os nigerianos. Há um campo de futebol perto de minha casa onde todos os dias se encontram pelo menos 30 para jogarem. Primam pelo estilo e parece que têm feito daquele cibercafé um ponto de encontro. Hoje até vi um deles apertar o nariz do dono do cibercafé, no que, mais do que uma demonstração de carinho, me pareceu uma clara demonstração de força e autoridade. Não me surpreenderia saber um dia que aquilo se tornou na segunda embaixada nigeriana. Os africanos mantém diversos tipos de conversações telefónicas. Há as ruidosas que fazem tremer o edifício todo e há as silenciosas em que provavelmente se acorda uma separação emocional.

Há também os empresários estrangeiros, geralmente brancos, que de passagem que ficam alojados num dos bom hoteis que há nas redondezas. Como não chegam a ser mesmo ricos, mas mais pequenos negociantes forretas à procura de uma fortuna à custa dos emergentes indianos, recorrem muitas vezes a estas ligações mais baratas – certamente também porque os hoteis devem cobrar somas astronómicas.

Finalmente, há os diplomatas. Talvez também para poupar dinheiro, talvez para fugir ao controle paternal ou marital, recorrem a este serviço. Saem dos seus luxuosos carros com matrícula azul CD e entram para os pequenos cubículos telefónicos para ligarem para os mais diversos países imagináveis e conversar sobre as mais diferentes coisas imagináveis. Depois, saem, pagam com notas grandes sem tempo para coligir o troco e desaparecem na carroça.

Em todos os casos, assisti já a muitos episódios originais. Como os cubículos são transparentes e pouco insonorizados, ouve-se bem o que as pessoas falam e percebe-se quando é em inglês. Assim, há momentos constrangedores. Há uns dias assisti a um senhor branco de meia idade que discutiu durante mais de uma hora (eu estava à espera de uma amiga) com alguém. Às vezes acalmava-se, depois agitava-se e insultava a pessoa em inglês bem audível. Dizia coisas como "I took care of you for so long and now you do this to me?", "ok I have to go now, I don't have patience any more, you're a sick person" e "why don't you trust me, why can't you just wait?" etc.

Hoje foi a vez de um jovem repetir uma dezena de vezes, aos berros, "Who are you with? Tell me now, or you'll see! Who are you with, I heard someone. Who is this someone?". Entre outros, também oiço filhos a pedir mais dinheiro aos pais, declarações de amor, declarações de ódio, pedidos de demissão, pedidos de desculpa e tantas mais coisas que se discutem ao telefone quando se está longe, muito longe, de casa.

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Keylong

Confirma-se a sabedoria e a preocupação dos ladaquis. O tempo piora muito. Depois de cruzarmos o passe Roh-tang, a uns 4000 metros de altitude, vamo-nos aproximando dos Greater Himalayas, que se apresentam imponentes no horizonte. Cai neve, chuva fria, granizo. À nossa frente um estrangeiro, mas de olhos em bico. À quarta hora de viagem estabelece-se finalmente uma conversa – é chinês mas estuda no Canadá.

Vamos descendo para o primeiro de centenas de vales que ainda nos separam do mítico Ladaque. A paisagem é verde e branca. O autocarro silencioso. E aproximamo-nos do primeiro check-point em que alguns polícias de cara ensonada e metralhadoras em punho nos esperam. É que a outrora inimiga China é já ali ao lado e o Paquistão sempre em frente. Numa casota os estrangeiros deixam os detalhes de passaporte num livro bolorento. O polícia usa uma caneta azul, mas quando é a vez do chinês pede uma caneta vermelha e não diz nada.

Voltamos a embarcar. Chove incessantemente. De vez em quando o autocarro abranda e salta para dentro um aldeão encharcado que volta a saltar para fora poucas centenas de metros depois. Desfilam-se à nossa frente, pela suja janela embaciada, imensos campos agrícolas, de vez em quando uns casebres com chaminé fumegantes, e acompanha-nos pelo vale um imponente rio espumante. Depois de algumas horas de viagem as condições da estrada pioram. Já só é uma pista enlameada que roça perigosamente as turvas águas ao seu lado.

O sadhu acorda. Olha em volta, parece um pouco confuso. Com dois tabefes faz acordar os meninos. Então, como que inspirado por uma paisagem alpina que contrasta com as áridas paisagens desérticas do seu Bihar ou Uttar Pradesh natal, começa a entoar cânticos. Histórias cantadas. Compreendo pouco, mas são operetas populares, recitações religiosas, contos cómicos. Os outros passageiros, incluindo os ladaquis, ouvem-no com atenção e esboçam um sorriso, de vez em quando.

À sétima hora de viagem, o autocarro vira à direita e sobe por um vale íngreme. Só acordo quando pára. Estamos numa pequena aldeia que se espalha ao longo de uma colina e à margem da estrada. Keylong. À volta do verde e fértil vale apresentam-se orgulhosamente os grandes cumes dos Himalaias. Ao longe, aqui e acolá, pequenos telhados dourados reluzem por entre os campos e a neve; mosteiros lembrando que já estamos em terras budistas.

Passa pouco da hora de almoço. Indicam-nos para passar a noite aqui e que o autocarro seguirá pelas cinco da manhã. Mas se tivesse tido atenção saberia que isso era mentira. Ao contrário dos restantes ruidosos e ignorantes indianos ou estrangeiros passageiros, os ladaquis locais são os únicos a retirar silenciosamente a sua bagagem inteira do autocarro. Só na manhã seguinte perceberíamos porquê.

sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Backpackers (2)

Há outro tema que me fascina na vida dos backpackers que venho observando nas minhas viagens pelo estrangeiro, e especialmente na Índia. É a obsessão pela originalidade e pela eterna busca de um El Dorado. Os meninos ocidentais de mochila à costa que vêm à Índia querem coisas novas. Querem o mais possível seguir aqueles capítulos "off the beaten track" dos guias que vendem milhões. E se possível encontrarem eles mesmo novos locais e novas formas radicais ou originais de explorar o novo.

O problema é que quase todos vivem nesta obsessão. O que leva a que nos tais sítios recônditos que o guia apresenta na parte "dicas secretas" se encontrem muitas vezes já mais turistas do que nos locais tradicionalmente mais turísticos, abandonados para a massa dos turistas indianos.

O mais engraçado é a rivalidade de morte que subsiste por isso entre os backpackers. Logo que chegam a um sítio original, digamos o topo de uma montanha mais isolada nos Himalaias indianos, acham-se no direito de reclamar a propriedade turística daquele local. Se porventura aparecer um outro grupo de ocidentais, passa a reinar um mal-estar dos dois lados e um ódio mútuo.

Por exemplo, quase todos os backpackers que eu conheço usam os guias conhecidos como o Lonely Planet ou o Rough Guides. Mas é interessante notar que esses livros só raramente se vêem em público. Só percebi porquê quando uma inglesa com que viajava me disse que se limitava a lê-los no quarto, às escondidas, para não parecer uma backpacker bimba aos olhos de outros backpackers. Porque supostamente só os bimbos consultam guias. E supostamente todos viajam um pouco ao acaso, sem ajuda de ninguém, ao sabor do vento, que nem neo-hippies.

É esse de facto o objectivo dos backpackers. Mas fruto de constrangimentos vários (tempo, dinheiro, mas também segurança e conforto e a necessidade ocidental de ter tudo bem planeado) sacam sempre do guia, nem que às escondidas.

Vou deixar de fora os verdadeiros neo-hippies e aqueles que eu considero serem os verdadeiros backpackers, aqueles que por exemplo vivem um ano a viajar pela Índia com um punhado de dólares, fazem retiros em isolados mosteiros budistas, se deslocam principalmente a pé e de boleia, e vivem em casa de habitantes locais etc. Esses primam pela cooperação, ajudando os seus congéneres, porque nada têm a esconder ou a temer. Sabem que a genuidade encontra-se pela cooperação e não pelo conflito.

Há outra forma de assinalar a originalidade. Os backpackers mainstream têm um rol de formas diversas para sublinharem a sua originalidade para com os seus conterrâneos. Por exemplo, lembro-me de um grupo de australianos que viajou os 500 quilómetros na mais rude estrada indiana, a Manali-Leh highway (sem um metro de alcatrão, passando por altitudes superiores a 5000 metros), de patins. Já nem falo de bicicleta ou a pé, porque até isso já se tornou rotina.

Todos estes fenómenos eu também os tenho observado em Goa. De cada vez que lá vou havia sempre um local novo na moda. No sul, por exemplo, havia uma praia que sempre atraiu gente (até local) por um certo misticismo e beleza. A praia de Palolem, no entanto, atraía em inícios dos anos 90 pouco mais de uma dezena de turistas mais corajosos por dia. Hoje são centenas e a praia encontra-se cercada por empreendimentos turísticos, comida italiana e israelita, yoga, bugigangas caxemires e demais parolices. E enquanto muitos ainda lá vão convencidos que encontraram algo similar a The Beach (de Alex Garland), poucos se apercebem que os verdadeiros backpackers hippies já deixaram este local há muito para as consumistas e efémeras hordas ocidentais.

O mesmo se passa com o chamado Goa-Trance. É um mito que vai subsistindo. Mas os verdadeiros artistas e amigos do trance psicadélico sabem que há já muito que Goa deixou de ser a capital deste estilo de música. Passou há mais de uma década para Gokarna e depois aviou as malas para fora da Índia. Hoje, quando as dezenas de bares comerciais na orla costeira de Calangute aumentam ao fim da tarde um pouco o volume de um som que tem alguma batida mais intensa, saltam imediatamente para a praia uma centena de turistas indianos em busca de ver um pedaço de carne nua branca e uma dezena de backpackers convencidos que estão a reviver a atmosfera dos hippies e a viver uma experiência transcendental.

domingo, 4 de setembro de 2005

Coffee-breaks

Não haverá coisa que marcou mais a minha experiência académica em Portugal do que os "coffee-breaks". Estes são o símbolo do estado actual da produção de saberes no país mais pobre da União Europeia. Lembrei-me disto ao assistir a uma palestra do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros indianos, Yaswant Sinha, na minha universidade, a JNU.

Sinha foi o ministro do governo anterior, liderado por Atal B. Vajpayee. Uma aliança de dezenas de partidos, com com os fundamentalistas do BJP à cabeça. É um homem que conheçe as lides internacionais. Que discursou nas Nações Unidas. Que viajou por meio mundo. Que tem capacidade para influenciar a decisão de a Índia carregar no botão nuclear ou não. Que deve tratar Kofi Annan e uma série de chefe de estados de primeira linha por "tu". Basicamente, um estadista de renome a nível internacional, com todas as regalias e luxos possíveis.

Agora imaginem, este Sinha, sentado numa cadeira negra de tantos salpicos de caril acumulados ao longo de dezenas de anos. Num refeitório ainda mais negro, que nada mais é do que uma grande sala com uns bancos corridos e umas mesas que ainda ostentam pequenos bagos de arroz do jantar. Rodam umas ventoinhas no tecto para refrescar o que é impossível refrescar, chego a ver uma ratazana a passear-se por detrás dele, entrando na cozinha. Dezenas de estudantes ouvem com atenção. Estamos no refeitório de uma das residências da JNU, e discursa o ex-ministro, sobre o estado actual das relações Índia-EUA. À sua frente um copo com água. Não lhe chega a tocar.

Voltemos ao coffe-break luso. É a essência das 1001 conferências académicas (supostamente académicas) que se realizem mensalmente em Portugal. Qualquer departamento, qualquer fundação, qualquer núcleo e qualquer partido, juventude partidária, associação de estudos, instituto de investigação e demais agrupamentos institutucionalizados ou não, organizam uma conferência, um congresso, um debate, uma palestra ou uma tertúlia etc. em que normalmente o momento central é o do coffee-break.

Os oradores respiram de alívio quando este se inicia, libertos da responsabilidade de dizerem banalidades e preencherem o tempo que lhes foi reservado. A audiência igualmente, liberta da carga de fingir ouvir com atenção e interesse ou acordando da soneca. Então, todos se reúnem com uma bica numa mão e um pastel na outra, e, mastigando e galhofando, trocam galhardetes e cartões de visita para preparar o próximo evento. Há vários coffe-breaks. Os mais humildes são oferecidos pelos serviços sociais das universidades. Os mais requintados por empresas especializadas de catering cujo dono é primo ou amigo dos copos de um dos organizadores.

Para além da questão académica e científica e do que pode ser uma estagnação de saberes, o que mais noto é uma crescente preocupação com a forma, em Portugal. Poderiam jamais imaginar um ex-ministro e deputado, ou até um presidente de partido, um secretário de estado, a falar nas condições em que vi Yaswant Sinha falar? A obsessão pela forma lembra-me a história de uma amiga minha que estava a estudar em Salzburgo e cujos trabalhos tinham que ser obrigatoriamente entregues em formato digital para no caso de as margens não estarem alinhadas, ou haver um espaço a mais entre duas palavras, ser devolvido e devidamente penalizado na avaliação final.

Yaswant Sinha, depois de um franco e caloroso debate com os estudantes, voltou já tarde para casa, passava da meia-noite. Com ele, iam talvez umas pulgas agarradas à imaculada camisa branca e uns salpicos de caril na cara calça. Mas, com ele, iam também uma riqueza e uma abertura de espírito, e uma simplicidade essencial que podem ser coisa rara na Índia, mas são coisa desconhecida em Portugal, cegado pela matéria e forma.

Primeira paragem

Separam-nos ainda de Leh, capital do Ladaque que queremos visitar, mais de 400 quilómetros. Dois dias de viagem. Muitas peripécias. Mas o motorista não poderia deixar de parar ao vigésimo quilómetro, pouco menos de uma hora depois de termos partido, para o tradicional chá indiano. À vista das primeiras barraquinhas fumegantes, o autocarro desacelera e os passageiros saem para a chuva, o frio e o vento.

Ainda ontem tínhamos feito este percurso e os cafés à beira da estrada estavam repletos de ruidosos turistas indianos da emergente classe média de Deli, Bombaim e Bangalore. Especialmente casais em lua-de-mel. Elas em busca de um pouquinho de neve e liberdade antes de começarem a parir filhos e eles em busca de uns esquis, uma pose masculina e uma foto ao lado de uma turista loira para mostrar lá na em casa, na rua.

Hoje reina a montanha. Os ventos gélidos cobrem as esplanadas de neve. Os passageiros que se aventuraram para fora foram bebericar chá quente num pequeno abrigo. Nós ficamos na carroça. De repente, do nosso lado esquerdo, vemos dois pequenos vultos. São os dois rapazes, filhos do sadhu. De pés descalços e cabeça descoberta tiram de um dos seus recipientes um pouco de arroz e caril, ainda quente, trazem o prato ao sadhu que se encontra confortavelmente sentado no autocarro, e depois voltam a sair para o relento para lavar o prato e o copo usado na branca neve.

Só entram outra vez quando o motorista já buzina insistentemente. Tremendo e com os lábios azulados, abrigam-se por debaixo de uma grande manta. Quando um deles se vira, tomo coragem e ofereço-lhe um pouco do meu sortido de passas, nozes e amêndoas. Aceita com um sorriso e partilha com o irmão, às escondidas do sadhu que já ressona.