sábado, 31 de março de 2007

Só mesmo na Índia


É natural que, nós estrangeiros residindo na Índia, nos queixemos de tudo e mais alguma coisa. Afinal este é um país, uma cultura e uma civilização diferente. Obriga-nos a repensar muitas coisas e, muitas vezes, a baixar os braços em desistência para com a imensidão diferente que se abate sobre nós, todos os dias. Uma dessas coisas, de que eu aliás muito me queixo, é a burocracia. Queixamo-nos sempre de que tudo é complexo e lento na Índia.

Do outro lado da moeda está, no entanto, uma celeridade e rapidez com que nós em Portugal só podemos sonhar. Hoje, entre as 11:30 e as 16:00, incluindo um longo intervalo de almoço, comprei uma motoreta nova (em segunda mão) de um concessionário no Norte da cidade, mandei-a renovar numa garagem (motor, pintura etc.), e ainda vendi a minha anterior (a um mecânico). Tudo em locais diferentes. Em menos de cinco horas ficou tudo resolvido, toda a papelada (pouca) incluída.

Imagens de Deli: De volta a Goa


Serve este post de homenagem, devida e merecida, aos meus pais que conseguiram edificar uma casa em Goa, um sonho e uma aspiração antiga. A localização, para além de ambientalmente perfeita,à beira de um lago e envolto de várzeas, a cinco minutos da praia e no pacato coração de uma típica aldeia, é também simbólica: está a poucas centenas de metros da casa indo-portuguesa em que o meu pai nasceu, há 65 anos.

Descendentes

Agora os goeses e as demais comunidades católicas lusófonas passaram a ser todas "descendentes de portugueses". Segundo o Norte Desportivo, Descendente português treina selecção da Índia (de hóquei em campo, entenda-se). Trata-se de Joaquim Carvalho, que é tão descendente de português como Atal Bihari Vajpayee. Carvalho não é, portanto, algum primo de trigésima geração do nosso ministro Pinho. É, pura e simplesmente, tal e qual quase todos os restantes goeses ou indianos católicos, um convertido que assumiu o nome de um qualquer seu padrinho jesuíta ou aristocrata português.

Em breve, quando o ex- sindicalista e ex-ministro da Defesa indiano George Fernandes (imagem) voltar a ocupar uma pasta ministerial num Governo liderado pelo BJP, estou mesmo a ver a imprensa portuguesa: "Descendente português governa a Índia". E, logo depois, em reacção pavloviana, os nacionalistas hindus a pedirem a demissão imediata do seu próprio aliado.

sexta-feira, 30 de março de 2007

Redescobrindo: Hyderabad / Aiderabad

Aqui, só tenho a baixar os braços e a admitir que é muito difícil transcrever Hyderabad. Portanto, opta-se pelo status quo e deixa-se assim mesmo?

Acho que sim, tendo em conta as opções: Hiderabad, só para nos vermos livre do i grego, mas fica lá ainda o h inaceitável e a tentação de acentuar (erradamente) o i? Já vi por aí Haiderabad, mas continua o h. Formalmente, deveria ser Aiderabad, mas acho demasiado revolucionário. Seria, no entanto, interessante recorrer aos historiadores e descobrir como os nossos lendários cronistas e indólogos escreviam o nome da cidade. Aceitam-se sugestões.

(A mesma questão aplica-se aliás ao estado do Haryana. Hariana? Ariana? e idem para as restantes cidades e localidades que, em inglês, se iniciam de igual forma)

Imagens de Deli: Uma família goesa

Blog Atlântico: O PNR enganou-se

Sobre o sentimento de culpa emigrante e um outdoor "nacionalista" com alguns erros.

quarta-feira, 28 de março de 2007

A condição diaspórica e a sua crítica

É lançada amanhã a volumosa e muito completa obra (mais de 600 pp) de homenagem (Festschrift) à obra do Professor Teotónio de Souza, catedrático e director do Departamento de História da Universidade Lusófona, em Lisboa. Uma obra merecida para quem tanto tem trabalhado, de forma não poucas vezes polémica, o nosso passado, de Goa a Lisboa. Como não tive tempo para enviar um artigo académico, fiquei-me por um ensaio, incluído entre os vários tributos pessoais que constam da primeira parte. Aqui vão uns excertos.

Referência:
METAHISTÓRIA
Autor: Vários (org. Charles J. Borges, S. J. & Michael N. Pearson)
Nova Vega, Lisboa, 2007
Colecção: Documenta Historica/Série Especial


A CONDIÇÃO DIASPÓRICA E A SUA CRÍTICA (pp. 79-82)

Não é habitual um investigador júnior intrometer-se numa homenagem a um reputado académico sénior. À partida, reconheço, portanto, as minhas joviais limitações, agravadas pelo facto de eu me situar numa área disciplinar diferente da da História, que tanto tem merecido a atenção do Professor Teotónio de Souza. Mas é, talvez, justamente esta condição jovem que me faz merecer esta oportunidade, aliada ao facto de ambos partilharmos uma condição diaspórica goesa. O Professor uma de primeira geração e eu uma de segunda. É sobre esta condição diaspórica, e sobre a urgência da sua permanente crítica, que eu pretendo reflectir neste espaço.

(...)

A importância do trabalho e da carreira do Professor reside no facto de ele nos lembrar que a segunda face, a mais negra, nos acompanha constantemente. E fá-lo por via da crítica. Questionando a celebração, obriga-nos a voltar a pôr os pés em terra e a enfrentar a realidade, por mais que isso nos custe. Recorda-nos que a condição diaspórica que glorificamos é, em larga medida, fruto da nossa imaginação e o espelho dos nossos medos e das nossas ânsias identitárias. E urge-nos a interrogarmo-nos sobre as reais vantagens e desvantagens, bem como as oportunidades e os obstáculos, que rodeiam esta nossa condição.

É justamente aqui que se encontra a explicação pela hostilidade com que alguns sectores da nossa comunidade goesa, mas também da sociedade portuguesa em geral, têm recebido a valiosa obra e as reflexões do Professor. É natural – mas infeliz – que hostilizemos a voz dissidente e crítica, que nos obriga a repensar e a interrogar aquilo que sempre demos por adquirido. Mas, por mais que se tente, é impossível silenciar essa voz que o Professor adoptou para si. Porque essa voz, cheia de interrogações, reside naturalmente e intrinsecamente em toda e qualquer condição diaspórica. O Professor tem-se limitado a activá-la e resgatá-la da passividade a que a procuramos condenar no seio da nossa intimidade – pessoal, associativa ou comunitária. (...)

Imagens de Deli: 1ª Comunhão

Entrada do pároco de Vernã, Goa, para a missa de primeira comunhão do meu primo Carl.

Derrota e críquete

Já se passou há uns dias, mas não pode deixar de ser observado: a Índia foi eliminada do Mundial de críquete, a realizar-se na Jamaica. Perdeu, logo na primeira fase, contra os seus pequeninos e muito mal-amados vizinhos Bangladexe e Sri Lanka. A vitória contra os amadores das Bermudas não evitou o escândalo nacional e provocou dois suicídios. Paixão e a honra nacional obligées.

O mais interessante foi acompanhar a eliminação nos fóruns cibernéticos indianos: repetidas insistências para que o Parlamento indiano legisle a favor da proibição do desporto-rei e repetidos consolos mútuos de que a eliminação só demonstra que "este desporto, de cariz ocidental, não nos está no sangue".

Este último pensamento ataca, de raíz, uma das questões nacionalistas mais centrais da luta anti-colonial em inícios do século XX: "saberemos derrotar os próprios mestres britânicos no desporto em que eles, até recentemente, não nos deixavam sequer participar?". A resposta, obviamente afirmativa, está gravada num dos mais emblemáticos filmes de Bollyood: Lagaan.

O quintal regional (Atlântico)

Excerto da minha Passagem para a Índia, no número de Abril da revista Atlântico, a partir de amanhã nas bancas:

"Para o ministro Pranab Mukherjee, a criação de “um novo paradigma para a vizinhança” é o principal objectivo da política externa indiana, sublinhando ele que “a emergência da Índia como grande potência depende da força, do crescimento e da prosperidade da região”. Embora a orientação não seja nova (lembre-se a doutrina Gujral, nos anos 90), são afirmações que rompem com várias décadas em que o objectivo era diametralmente oposto: os diplomatas indianos procuravam então ignorar o contexto regional e saltar directamente para as luzes da ribalta global. (…) A mensagem é clara. Antes de aspirar a voos mais altos, a Índia quer colocar a sua própria vizinhança em ordem e sob sua alçada."

terça-feira, 27 de março de 2007

Imagens de Deli: Kanyakumari


O em tempos idos nosso e agora muito nacionalista e sagrado Cabo Camorim, de noite (um pouco tremido) e de manhã, ao nascer do sol, com os memoriais em honra do filósofo Vivekananda e do escritor tâmil Tiruvalluvar. É extremo continental Sul da Índia, entre a Baía de Bangala e o Mar Árabe, saudando o imenso Oceano Índico.

Nacionalistas hindus e o Presidente

Com o frenesim da visita presidencial e a minha ida-relâmpago a Goa, acho que me esqueci de mencionar aqui esta notícia exclusiva (publicada no Online do Expresso) que eu "arranjei" para a imprensa portuguesa, quando ninguém sabia ao certo quem eram aqueles miúdos aos berros, insultando o nosso chefe de estado: Nacionalistas dizem ao Expresso que exigem pedido de perdão

sábado, 24 de março de 2007

Citações de Deli: Chetan Bhatt e Parita Mukta

"...within Hindutva discourse, Hinduism is seen primarily as a primordial and perennial civilization; indeed, a civilizational ethos for the whole of humanity, whereas Islam and Christianity are viewed as merely religions or religious ideologies. Hinduism, in this view, is not a religion at all but the primordial way of life revealed for all humanity, the sacred knowledge of which is possessed solely by Hindus."

in "Hindutva in the West: mapping the antinomies of diaspora nationalism", Ethnic and Racial Studies Volume 23 Number 3 May 2000 pp. 407–441

Imagens de Deli: Templo Krishnaswamy (Trivandrum)

Citações de Deli: Sujata Moorti

"The new Indian woman becomes the crucible where the desires and anxieties pertaining to the diaspora are worked through. She is the symbolic and embodied subject who is a repository of an interior, purer and more valuable tradition, and stands opposed to the moral compromises and degradation of the West."

in "Uses of the Diaspora - Indian popular culture and the NRI dilemma", South Asian Popular Culture Vol. 3, No. 1, April 2005, pp. 49–62

sexta-feira, 23 de março de 2007

Uma travessa indiana

A Índia no Século XXI, um livro de Pavan Varma, numa genial recensão de Antunes Ferreira, no seu célebre cantinho blogosférico e muito recomendável Travessa do Ferreira.

Pavan Varma é director-geral do Indian Council for Cultural Relations (Conselho Indiano para as Relações Culturais), o congénere do Instituto Camões na Índia e, por sinal, a minha instituição bolseira.

Henrique Antunes Ferreira, ex-Diário de Notícias, é um bom amigo da minha família. A sua experiência jornalística na Índia (duas vezes, acompanhando delegações oficiais), quando partilhada, como nesta recensão, é soberba. O seu interesse subcontinental é aliás reflexo de uma muito mais ampla e patológica inclinação pelo Oriente: é casado com a goesa Raquel e a sua imensa paixão por Goa (a comida!) leva-o, muitas vezes, a afirmar que é "mais goês do que muitos goeses".

Imagens de Deli: Querala

Para mim, fotógrafo da treta, esta é uma das minhas melhores fotos.

India literária, orientalismo

Hoje, no Diário de Notícias:

A paisagem literária da Índia é tão complexa e paradoxal quanto o seu mapa, reflexo de 28 regiões políticas, 22 línguas, um país multirreligioso, a maior democracia do mundo, com uma diáspora intelectual que levou para fora das suas fronteiras alguns dos nomes mais sonantes

Comentário: Interessante a urgência com que "a Índia" é personalizada e feminizada ao longo de todo o artigo. Não quero aqui lançar uma ofensiva à Isabel Lucas, que não o merece aliás, por esta peça bem conseguida, mas alertar para a persistência da superficialidade orientalista com que ainda abordamos a Índia.

Para além do tradicional "É a Índia dos contrastes", há uma contradição grave. Por um lado, afirma-se que é um país "em que quase só as elites lêem", para depois se constatar que "apesar de apenas 5% da população indiana falar a língua de Shakespeare e de a maioria dos livros indianos serem em línguas vernáculas".
Claro que há elites vernáculas, mas a elite a que a autora se refere são, muito provavelmente, as elites anglófonas. E estas estão longe de serem as únicas a lerem no país, bem pelo contrário: as mais ricas tradições literárias indianas, começando pela poesia bakhti, mas também o rico panorama de romances em hindi e línguas regionais, são consumidas pelas classes médias e baixas.

"São esses, os das línguas locais, em franca maioria na Índia, que só agora começam a ser traduzidos fora dela. Segundo a organização, esses autores irão testemunhar um "frenesim de modernidade" que contrasta e tenta atenuar as enormes desigualdades sociais do país."
Aqui o meu alvo é a própria organização e autores desta citação, suspeito eu indianos, que equiparam o misterioso "frenesim da modernidade" a uma suposta emancipação socio-económica. Se fosse modernidade, talvez até me debruçasse criticamente sobre o assunto. Agora, "frenesim"... deixa antever o que vai na elitista mente orientalista indiana.

Deixemos, então, o Orientalismo e o espírito descobridor Quinhentista acabar em grande:
"Também por isso se fala de uma Índia por descobrir, um país que se vai afirmando além da espiritualidade ancestral conjugada com traços cada vez mais contemporâneos de uma economia em plena expansão".

quinta-feira, 22 de março de 2007

Imagens de Deli: Querala

Supergoa.com

Novidades e actualizações no Supergoa.com:

Turismo de habitação com apoio português

Museu do Oriente abre daqui a um ano

Consultores europeus adoptam Índia

E o sempre agitado Fórum, bem como a actual Agenda.

A vida em Pequim

Da colega correspondente, do outro lado dos Himalaias, um sempre actual blogue sobre o gémeo emergente. A China em Reportagem, de Maria João Belchior, a ler e seguir com atenção.

Imagens de Deli: Trivandrum

Um painel publicitário em Trivandrum, anunciando um empreendimento multimédia:
"u - the arrow
v - the bow
ur - dreams
our - aim"

A moeda de 2 Rupias


Para perceber a mente radical dos que perseguem a ideologia Hindutva, nada melhor do que ler este artigo, em que o autor (um ex-funcionário dos serviços administrativos centrais, IAS) defende que a nova moeda de 2 Rupias é uma tentativa de o Governo propagar a fé cristã na Índia.

An assault on the soul of the nation
V SUNDARAM



Imagens de Deli: Estátua de Indira Gandhi

“Mais vale pagar um aborto que um dote” (Expresso)

Edição 1794, 17 MARÇO 2007

Índia - Desequilíbrio
No país de Gandhi há mais homens que mulheres, porque os pais não querem ter filhas

“Mais vale pagar um aborto que um dote”

Foto
A actriz Karishma Kapoor no dia do casamento. A boa tradição hindu obriga a família da noiva a pagar um valioso dote ao marido SEBASTIAN D´SOUSA/AFP

Não fossem os painéis a anunciar ecografias por menos de 500 rupias (10 euros) e esta rua do sul de Deli - a capital indiana - seria igual a todas as outras do país: barulhenta, movimentada e com vacas a remexer no lixo. É em sítios como este que existem inúmeras clínicas e ginecologistas, onde desaparecem anualmente várias centenas de milhares de crianças do sexo feminino. Para ser mais específico, de fetos do sexo feminino.

É o retrato do lado mais obscuro da classe média indiana. Muitas mães são obrigadas a abortar as filhas que têm no ventre, pressionadas pela tradição social que quase as obriga a preferirem assegurar uma linha de descendência masculina.

É numa dessas clínicas que trabalha a ginecologista Neena Singh (nome fictício). “Quando elas começam a queixar-se de que já têm uma ou duas filhas, eu percebo logo o que querem e corro-as daqui”, diz, adiantando que, na Índia, o aborto é legal até às 20 semanas. Só que a dr.ª Singh diz respeitar a lei de 1994, que proíbe os médicos de comunicarem o sexo do feto à grávida. “Logo depois do parto, ao verem que tiveram uma filha, é frequente as mães chorarem ou entrarem em choque, ameaçando cometer suicídio”, confidencia.

Ao lado da clínica de Bhagat encontrámos uma jovem grávida de 15 semanas que aguarda o resultado de uma ecografia: “Se for mais uma filha, expulsam-me de casa”, diz sob anonimato. A conversa é prontamente interrompida por uma mulher, talvez a mãe ou a sogra.

O drama do feticídio feminino tem números. Segundo o censo de 2001, por cada mil nascimentos masculinos, nascem, em média, 927 crianças do sexo feminino, um dos rácios mais baixos do mundo. Recordando o ditado “educar uma filha é igual a regar o jardim do vizinho”, a médica Sharda Jain, da Comissão Nacional para as Mulheres, lembra que “as filhas são vistas como um peso financeiro e um estigma social”.

A pressão começa na cerimónia do casamento, quando os sacerdotes pedem que a noiva seja “abençoada com oito filhos”, e repete-se nas cerimónias pós-concepção, em que os religiosos procuram converter um feto feminino num masculino.

A preferência pelos rapazes explica-se pela tradição do dote matrimonial, em que os pais são obrigados a desembolsar quantias em dinheiro e bens (no valor de centenas ou até dezenas de milhares de euros) para encontrarem um noivo para as suas filhas.

Há registo de cartazes, em Bombaim, anunciando que “mais vale pagar 500 rupias agora (por uma ecografia) do que 50 mil (de dote) daqui a uns anos”. Outra razão é o facto de, à luz da lei hindu, só um filho homem poder herdar os bens familiares e realizar os ritos funerários do pai.

O que ainda há dez anos era negligenciado, assume hoje contornos dramáticos. O sexo do feto só pode ser determinado com alguma segurança a partir da 12ª semana de gravidez, altura em que o risco de morte para a mãe é sete a dez vezes superior que num aborto realizado no primeiro trimestre. “Elas vão abortando até terem um rapaz”, explica Bhagat, sublinhando os custos para a saúde pública.

Em termos sociais, o impacto também se faz sentir. Nas zonas rurais mais pobres, em que a prática do aborto é reduzida por dificuldades financeiras, as filhas são vendidas por famílias endividadas que querem escapar ao dote.

As jovens são depois revendidas, por redes criminosas, em distritos onde há menos de 800 raparigas por cada mil rapazes e a procura de mulheres em idade de casamento é grande.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli


DIMENSÃO DO FETICÍDIO

- Vinte milhões é o número de abortos de fetos femininos praticados na Índia nos últimos 20 anos. Dados da revista médica ‘The Lancet’

- No estado do Punjab, no distrito de Fatehgarh Sahib, existem menos de 750 raparigas por cada mil rapazes

- O preço de uma esposa varia entre os 100 e os 600 euros, consoante a casta a que esta pertence, grau de educação e características físicas


Má sorte nascer mulher

Nos anos 70 o Governo indiano encorajou o aborto e as esterilizações para controlar o crescimento demográfico. Hoje, o panorama é o oposto. Em 2006 registou-se a primeira condenação de uma médica por executar abortos selectivos.

Renuka Chowdhury, ministra para o Desenvolvimento da Mulher e da Criança, disse recentemente: “É uma vergonha o nosso país crescer a nove por cento, mas continuar a matar as suas filhas”. Por isso, anunciou a abertura de orfanatos públicos para as filhas indesejadas. “Se não as quiserem, pelo menos deixem-nas nascer e entreguem-nas ao Estado”, apelou, esperando desta forma vir a minorar o desequilibrado rácio entre os géneros.

Para Sharda Jain as medidas são bem-vindas, embora os mecanismos para violar a lei sejam imensos. Nota, por exemplo, que a cor com que o médico preenche o relatório, ou o dia da semana em que este é entregue, serve para comunicar o sexo do feto à grávida.

Jain defende a necessidade de, além da fiscalização, consciencializar os médicos para o que chama de ‘doença social’ e de valorizar o papel da mulher na sociedade. “Um exemplo vale por mil panfletos”, afirma, recordando que o próprio primeiro-ministro Manmohan Singh tem três filhas e nenhum filho.

terça-feira, 20 de março de 2007

Imagens de Deli: Viajando

Paradise, in contract

Para quem quer saber mais, para além da minha última reportagem Goa Bachao, ler este excelente artigo da Somini Sengupta, a igualmente excelente correspondente do NYT em Deli.

...

segunda-feira, 19 de março de 2007

Redescobrindo: Jamu, Caxemira e Ladaque

O estado de Jammu and Kashmir, pelo menos a parte indiana, tem três distritos que, em bom português e na minha opinião, se escrevem assim: Jamu (Jammu, com a capital de mesmo nome), Caxemira (Kashmir, o vale, com a capital em Srinagar) e Ladaque (Ladakh, de maioria budista, com a capital em / Leh ).

Imagens de Deli: Templo em Trivandrum


Europa em vias de extinção?

"Mas os grandes desafios da História que decidem o futuro estão a ser enfrentados, com grandes dificuldades, pela China, Índia, Islão, EUA, África, América Latina. Entretanto a Europa perde relevância e entra em vias de extinção. Porque, achando-se inovadora e progressiva, gasta o seu tempo a promover aborto, homossexualidade, eutanásia, pedofilia, divórcio. Perante isto, a História ri (ou chora?), encolhe os ombros e passa ao lado."

Não sei o que leva o Professor João César das Neves (hoje no DN) pensar que aqui o aborto, a homossexualidade, a eutanásia, a pedofilia e o divórcio sejam non-issues. Nem percebo porque é que afirma, com tanta convicção, que a Europa "entra em vias de extinção". Lá porque agora se fala e sabe um pouco mais do resto do mundo ("China, Índia, Islão, EUA, África, América Latina), não é preciso entrarmos todos em pânico e acharmos que é o fim do mundo. É de louvar que na Europa possamos estar a debater (e não necessariamente só a "promover") questões muito pertinentes, reflectindo espaços de pluralidade que são de uma riqueza insubstituível.

Talvez uma citação, da minha coluna de Fevereiro na revista Atlântico, venha a propósito para esfriar os ânimos de quem acha que vem aí o fim do mundo e de quem gosta muito de falar numa era pós-ocidental ou pós-europeia:

(Passagem para a Índia, Revista Atlântico Fev/07: Reality Check):
"Não há dúvida que algo se passa a Oriente e, no caso indiano, é impossível negar o relativo sucesso do seu sistema democrático ou negligenciar o seu crescimento económico e a sua ruidosa voz no panorama internacional. Mas ao abrirmos os olhos para a Índia, e para esse admirável mundo novo que, na realidade, tem idade para ser o nosso tataravô, convêm que o façamos de forma moderada. Sair da escuridão do armário para enfrentar a luminosidade do mundo, pré-, pós-, ante-, sub-, ou o que quer que ele seja, é um processo doloroso porque nos cega. A solução estará algures entre o defensivo oito dos conservadores do Restelo e o histérico oitenta dos catastrofistas que anunciam o fim do nosso mundo e o início de um novo, o dos Outros. "

Chegou o calor

Agora é definitivo. Foi-se a frescura do Inverno e da Primavera e chegou o bafo do Verão. É quase um momento preciso, sem qualquer transição. Uma pessoa deita-se na cama numa noite, envolta em cobertores e, na manhã seguinte, acorda transpirada e picada por mosquitos. É assim, repentinamente, que se anuncia o mortífero Verão deliense.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Imagens de Deli: Ganexa em Trivandrum

Diáspora feminina indiana

Numa conferência sobre literatura e diáspora, uma senhora comenta: afinal, se formos pelos critérios gerais de quem faz, ou não, parte de uma diáspora, quase todas as mulheres indianas vivem na diáspora, forçadas a cruzarem terras, serras, rios e mares para se unirem ao seus maridos e suas respectivas famílias.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Jashn-e-Azadi

Ontem, no Habitat Centre, tive o prazer de assistir à primeira exibição pública do novo e polémico documentário de Sanjay Kak, Jashn-e-Azadi. É sobre o movimento Azadi e os sentimentos separatistas entre os caxemires, com excelente material recolhido ao longo de três anos no valley. Entre a ilustre audiência, o sempre carismático Yasin Malik, da Jammu and Kashmir Liberation Front, e Arundathi Roy, a agora polémica escritora e activista. No final, grande tensão, com violentos protestos verbais de caxemires pânditas hindus, exilados em campos de refugiados em Jamu, desde o início da violência, em 1989.

Imagens de Deli: Ambulância do Shiv Sena

Irónico? Uma ambulância do partido radical marata Shiv Sena, de Bombaim, em Trivandrum (Querala). O Shiv Sena tem recorrido à violência para alcançar alguns dos seus objectivos, como por exemplo o de estancar a imigração de trabalhadores de outros estados da Índia para o Marástra.

Biblioteca (3)

Às vezes, não há nada melhor do que olhar por cima de um ombro para compreender certas coisas. Como por exemplo quando aguardo a minha vez de aceder ao catálogo informático da biblioteca.

Há estudantes que colocam isto no campo de pesquisa geral, à procura de informação sobre um tópico que lhes foi dado a investigar pelo professor: "European integration policy in the 50s and its impact on french civil society". É óbvio que lhes aparecem 0 resultados. Mas aqui insiste-se. A estudante coloca então: "European integration policy in the 40s and its impact on french civil society".

Biblioteca (2)

No terceiro andar da biblioteca está o Senhor Malik. Chamam-lhe de Sir Malik. Já se encontra reformado, mas continua a vir trabalhar todos os dias. Velhinho, com a face esquerda paralisada, é um autêntico sábio: parece conhecer os títulos e a localização exacta de quase todos os livros da biblioteca. Muitas vezes, os estudantes não encontram um livro no catálogo manual ou informático, mas Sir Malik indica-lhes imediatamente onde é que ele se encontra disponível.

Esse é o mito, pelo menos. Na realidade, o Sir Malik só é útil porque o catálogo é péssimo e está cheio de erros. Na realidade, o Sir Malik não deve conhecer a localização exacta de mais de 90% dos títulos da biblioteca. Mas a adoração de que Malik é alvo representa o crónico desconforto com que os indianos abordam as certezas da modernidade, isto é, os catálogos.

Biblioteca (1)

Na biblioteca há uma secção chamada Textbook Section, em que um funcionário nos entrega um livro em troca de uma ficha pessoal. Normalmente, o estudante pesquisa o catálogo e indica-lhe o código do livro a requerer. Ele procura nas estantes e, uma vez encontrado, entrega-o contra a dita ficha.

Ontem, no entanto, enquanto que eu passava por esse processo e requeria um livro, reparei numa das estantes num outro livro de que eu precisava e que eu procurava há muito tempo. Indiquei-lhe que gostava de requerer aquele livro também. Como o funcionário não fala inglês bem, era escusado eu indicar o título. Apontei então com o dedo, referindo que era the green one, a menos de dois metros dele.

A secção estava deserta e o funcionário não tinha mais nada que fazer, do que ler o jornal do dia. Mesmo assim, sentou-se e recusou-se a dar-me o livro, comunicando que eu precisava de ter o código. "Mas é esse o livro que eu quero, tenho a certeza", referi, timidamente. Nada feito. Para ele o procedimento (inventado por ele mesmo) é sagrado: ver no catálogo e indicar-lhe o código. Outra coisa era inovadora, logo impossível.

terça-feira, 13 de março de 2007

O Orientalismo está vivo!

"Era preciso resolver esta contradição. No mundo ocidental as pessoas são extremamente activas, mas queixam-se de stress. Perdem a paz de espírito. Se formos ao Oriente, a lugares como a Índia, encontramos paz, mas na inacção. Numa parte do mundo há acção e não há paz, na outra há paz mas não há acção."

Ramachandran Bhaskar, mestre da Vedanta Academy que ensina "filosofia oriental" a gestores europeus e norte-americanos, no Público de ontem.

Imagens de Deli: Templo em Trivandrum

Um pai estrangeiro coloca um lungi no filho, enquanto a senhora indiana discute com o condutor do riquexó.

Sofisticação

O instituto de investigação CDS, onde estive em Fevereiro, por uma semana, tem instalações simples e básicas, mas confortáveis e limpas, envoltas da típica vegetação luxuriante do Querala. Foi por isso com espanto que me confrontei com as reacções dos restantes 14 investigadores indianos que participavam no mesmo curso que eu, o único estrangeiro.

Queixavam-se eles constantemente de que era tudo muito rudimentar e que não era tão sofisticado como as instalações dos seus respectivos institutos em Bangalore, Bombaim ou Deli. Ao princípio ainda pensei que estivessem a brincar. Mas não, aquilo não era mesmo suficientemente sofisticado para eles, jovens indianos de uma vintena de anos, preocupados com um bichinho no quarto e com um macaco saltitando entre as bananeiras lá fora.

segunda-feira, 12 de março de 2007

"Adoro" estes e-mails

Para o meu endereço info@supergoa.com:

Exmo senhor,
Preciso de fazer um trabalho sobre a influencia da cultura portuguesa em goa. Será que me pode dar pistas para eu poder desenvover melhor o meu trabalho.
Atenciosamente

...

Imagens de Deli: Família e balões

Logo em frente a minha casa, uma família desfaz balões, utilizados na inauguração de um novo jardim infantil, para reutilizar ou vender o seu plástico.

Zelo ferroviário

Na estação de comboios, há uma placa indicando o atraso aproximado de cada comboio por chegar. A sua organização é, no entanto, peculiar, demonstrativa do iletrado zelo do funcionário ferroviário responsável pela sua actualização: 56 horas.

Zelo bibliotecário

Na biblioteca, há uma estante com uma enciclopédia de vários volumes anuais. Mais precisamente, estão lá dez, de 1996 a 2005. A sua organização é, no entanto, peculiar, demonstrativa do iletrado zelo do bibliotecário responsável pela estante: 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 1996, 1997, 1998, 1999.

Vegetarianismo

Hitler e Gandhi queriam mudar o mundo através do consumo de vegetais. E os portugueses na Índia acreditavam que perderiam a virilidade se se tornassem vegetarianos.

quinta-feira, 8 de março de 2007

O bibliotecário-chefe

Na Biblioteca da JNU há uma sala de leitura para várias dezenas de estudantes poderem estudar em silêncio. Todos respeitam esta urgência silenciosa. Todos? Não. Os funcionários da biblioteca e os raros professores que por aqui se aventuram, teimam em fazer ouvir a sua voz quando a atravessam.

Tenho observado um fenómeno interessante: quanto mais alto/importante fôr o funcionário, ou mais ilustre o académico, mais barulho faz. O bibliotecário-chefe é o pior: fazendo-se acompanhar pela sua côrte privada, conversa sempre a alto e bom som, soltando ruidosas gargalhadas.

Isto leva-me a deduzir a seguinte afirmação: aqui, nesta biblioteca da JNU (e ao que me parece, na restante Índia também) a autoridade é simbolicamente conquistada por via do desrespeito (e não respeito) pelas leis democráticas e de civismo. O bibliotecário-chefe demonstra a sua superioridade justamente por via do desrespeito pela lei geral. Logo, só os fracos e os comuns devem respeitar a lei.

Como nunca ninguém protesta, ainda por cima entre estudantes tão politicamente activos como estes na JNU, presumo também o seguinte: o bibliotecário-chefe tem o direito de falar e rir, e assim perturbar o estudo de uma centena de estudantes. Se ele passasse mudo e silencioso, não seria reconhecido como bibliotecário-chefe.

Corte de cabelo Deli/Paris

Ontem fui cortar o cabelo. Custou-me 30 cêntimos e, ainda por cima, tive uma aula gratuita de hindi. Enquanto estudava em Paris, em 2002, lembro-me de ter pago quase 20 Euros pelo mesmo serviço, mas o cabelereiro não abriu a boca.

O gato preto

Ontem, ao início da noite, uma palestra sobre Caxemira e as leis internacionais, no refeitório de uma residência. Bancos alinhados, dezenas de estudantes escutando três ilustres oradores.

Uma advogada, senhora-rebelde e anti-poder, defensora da causa de Geelani e Afzal, dois dos caxemires acusados de envolvimento no ataque terrorista ao Parlamento indiano, em 2001. Filha de um dos burocratas mais poderosos das últimas décadas, ela pega em causas em quem ninguém mais quer pegar, que todos receiam. E isso significa vir falar em espaços como a JNU.

Um professor comunista e um outro advogado no Supremo Tribunal completam a tribuna oratória. Está frio e escuro. Numa mesa ao lado dos oradores ainda estão amontoados dezenas de tabuleiros sujos, com restos do jantar. Um gato preto entra e serve-se. Ninguém repara. O debate continua, até depois da meia-noite, aquecido por pequenas chávenas de chá.

Imagens de Deli: Talho e inflação

É deste talho, com este senhor, que eu costumo comprar frango. Há dois anos e meio, custava 65 Rupias/kg. Ontem estava a 100.

Citações de Deli: Estratégica Birmânia

What's the secret to the generals' staying power? Thank the neighbors. The junta has deftly played them off one another, notably China and India, as they compete for regional influence and natural resources, including Myanmar's natural gas reserves, the world's 10th largest.

terça-feira, 6 de março de 2007

Compra de legumes

Enquanto escolhia uns tomates e uns limões, na margem da ruela, uma vaca ao meu lado penetrava um minúsculo templo com o seu foçinho esfomeado.

Preços

Quanto mais entro adentro, pelas magras e sujas ruelas da aldeia, mais os preços dos legumes baixam.

Imagens de Deli: Vendedores de fruta

É aqui, com um rapazinho de uma dezena de anos de idade, que eu costumo comprar fruta. Engana-me muitas vezes, mas não deixa de sorrir (porque sabe que eu sei) e a lembrar-me que eu sou "special customer" e que devo comprar fruta só com ele.

Mediano vs. Extremo, na Índia e no Ocidente

Tenho dado por mim, em contraste com os meus demais colegas universitários e mundo académico e político indiano, a defender repetidamente opções intermédias, moderadas e centrais numa variedade de debates, mas também em escolhas simples como a de uma caminho, num entroncamento rodoviários com três saídas.

Tenho observado o mesmo entre os restantes europeus e ocidentais que por cá andam. Sem chegar a ser uma lei, observa-se, no entanto, uma tendência muito premente para a moderação, uma necessidade quase pavloviana de respondermos 2 quando somos intimidados a escolher entre o 1, o 2 e o 3. Os indianos, ao contrário, tendem a preferir o 1 e o 3. Reitero que esta minha observação se aplica a uma variedade de casos, desde a ideologia política à escolha de um legume no mercado.

No meio académico ocidental, por exemplo, é frequente um autor começar o seu artigo explanando que há três escolas de pensamento, três aproximações possíveis a um objecto de estudo ou três teorias acerca de um fenómeno. Há muito que venho a reparar que, em muitos - talvez a maioria - dos casos, é natural que ele defenda a segunda escola/aproximação/teoria, justificando a sua escolha por se tratar da escola/aproximação/teoria mais "conciliatória", "abrangente", "moderada" ou "de compromisso". Uma estrutura introdutória deste tipo não é, no entanto, frequente na Índia. E, quando veiculada, não é apreendida da mesma forma lógica com que nós a apreendemos na Europa, por exemplo.

Reitero: nós, à partida, revemo-nos nessa escolha da escola/aproximação/teoria intermédia que o autor nos apresenta. Isto é, o 1, 2, 3 não é uma mera organização ao acaso. O 2 perde a sua essência se colocado em primeirou ou terceiro lugar, os extremos do continuum. A sua situação intermédia dá-lhe, desde já, uma mais-valia e legitimidade que, embora limitada e depedente do restante artigo e de demais considerações prévias que o leitor possa fazer, advém do seu mero posicionamento antagónico aos extremos.

Por mais que o mundo académico indiano esteja ocidentalizado - e é-o, em grande medida - não vejo os indianos a extraírem igual legitimidade de uma estrutura destas. Isto é, a mera situação intermédia, em segundo lugar de três, de uma escola/aproximação/teoria, não lhe dá nenhuma mais-valia nem qualquer particularidade em comparação com as outras.

Arriscaria mesmo a afirmar que se observa o contrário. A escola/aproximação/teoria intermédia tende a ser abordada com fortes suspeitas, o seu carácter incerto, híbrido, amorfo ou mediano (qualidades positivas no contexto ocidental) assumindo uma dimensão negativa e indesejada, porque fraca. O mediano é, portanto, eternamente medíocre aos olhos indianos.

Holi

Ontem celebrou-se o Holi, o chamado festival das cores sobre o qual já escrevi aqui, em anos passados. Depois da orgia de cores de ontem, numa espécie de Carnaval em que vale tudo e as pessoas se cobrem de pós coloridos, água e demais substâncias, hoje reparei em duas coisas: quase todas as pessoas com o cabelo bem lavadinho (coisa rara) e muitas ainda com marcas de cor à volta ou por trás das orelhas, nas mãos ou na nuca.

Imagens de Deli: Carregando lenha

Contra-mão

Nos corredores, e nos locais de passagem pedonal mais apertados, é frequente eu provocar microchoques culturais: à portuguesa (ou continental europeia), coloco-me automaticamente do lado direito e chego a chocar quase de frente com o outro transeunte. Logo que noto o meu erro, passo para a esquerda, só para me deparar de novo frente ao mesmo transeunte, que, de igual forma educada, obedeu à mesma lógica não-confrontacional e passou para o lado igual. Quando se trata de um homem, tudo bem, lá se resolve com um sorriso ou comentário. Quando se trata de uma mulher, porém, vejo a minha vida a andar para trás.

domingo, 4 de março de 2007

Paradigmas (Atlântico)

Mais uma minha Passagem para a Índia, na Atlântico deste mês (nº24), nas bancas esta semana. Essencialmente, sobre a medíocre cobertura que a imprensa portuguesa fez da excelente visita presidencial a este país. Aqui segue um suculento excerto:

"Tentar perceber um país com mil milhões de habitantes, 28 estados e 23 línguas oficias em poucas horas, talvez com a leitura apressada de um guia turístico no avião, obriga à escolha da via fácil que é a da rendição perante os clichés e paradigmas que continuam a dominar o imaginário português da Índia. Em vez de inovarem e refrescarem imagens, os jornalistas limitam-se assim a perpetuá-las e a cristalizá-las, mantendo o público refém de repetidas coberturas superficiais e vesgas. (...) há o inescapável paradigma dos contrastes. A Índia da diversidade das cores, dos cheiros, das religiões e das disparidades. Confrontado com o desconhecido, aflito por se saber incapaz de aprofundamento sem a devida preparação e dedicação, o jornalismo português refugia-se no facilitismo relativista. Os contrastes indianos são a chapa ideal, servindo de linha de fundo a tudo, sem excepção."

Imagens de Deli: Alfaiate

sexta-feira, 2 de março de 2007

Naxalitas

Lendo este bom artigo sobre o fenómeno da resistência naxalita no interior e leste do país, lembro-me da transformação semântica de que a palavra "affected" tem sido alvo na Índia, nos jornais e até nos debates universitários da JNU que primam pelo politicamente correcto. Já não se fala em Naxal-affected districts, mas em Naxal-infested districts ou Naxal-infected districts. Subtil e simbólico.

Imagens de Deli: Menino pedinte

Explicaram-me tudo há já várias semanas, por isso já não me lembro bem. Mas a ideia geral fica: meninos como este à esquerda só se vêem aos Sábados, especialmente de manhã. Para afastar os azares, é suposto colocar algumas moedas no pote fumegante com óleo. Perguntei a vários amigos meus a origem desta tradição. Ninguém me soube dar explicações exactas. "É assim, há muito tempo", repetiam. O menino ao lado, é claro, vende jornais todos os dias.

5 paisés

Uma Rupia indiana é composta por cem paisés. Como a Índia emerge, e a inflação também, hoje já ninguém quer ouvir falar em paisés. Mas hoje, no banco, vi uma circular do Reserve Bank of India anunciando a retirada de circulação de várias moedas de paisés. As únicas que eu tenho visto são as de 50 paisés. Abaixo disso, nunca me passou nada pelas mãos.

Mas que elas existem, existem, e a circular que eu vi é prova disso. A moeda de menos valor a retirar da circulação são 5 paisés, uma bela moeda que, reconheci pela foto ao lado, já tinha visto há uns quinze anos em casa da minha avó, em Goa. Ora, para ficarem com uma ideia, 1 Rupia indiana equivale sensivelmente a 2 cêntimos de Euro. Logo, a linda moeda que está a ser retirada das bolsas indianas tem um valor aproximado de 0,1 cêntimos.

Se me chegar uma destas moedas à mão e se eu conseguir comprar alguma coisa com ela, eu depois aviso aqui.

Thursday Forum (again)

O Thursday Forum, a tertúlia semanal que ajudei a fundar, há dois anos, na Foreign Students' Association da JNU, continua vivo. Prova disso foi a sessão de ontem. O actual coordenador convidou-me para falar sobre migrações e "porque é que somos todos migrantes".

Na presença de mais de uma vintena de estudantes, o debate foi, como sempre, tórrido e culturamente polifónico, estendendo-se para além da meia-noite: creio que estavam representadas, pelo menos, quinze nacionalidades, para além de um grupo de palestinianos apátridas, refugiados em Nova Deli depois de terem abandonado o seu Iraque adoptivo (desde 1948).

Para além dos estudantes estrangeiros mono-nacionais, imigrantes temporários, havia ainda os casos interessantes de um sudanês de nacionalidade canadiana ou o de uma peruana licenciada nos Estados Unidos, inscrita num mestrado na Alemanha e actualmente de intercâmbio na Índia. Ou o caso da paquistanesa com residência na África do Sul. Um investigador indiano a trabalhar sobre a diáspora afegã em Nova Deli. Um sudanês a viver há 12 anos na Índia. O norte-americano de origem indiana, do Querala. Imigrantes internos: um caxemire e uma bengali. Etc. Resumindo, foi mais um excelente fórum nocturno, essencialmente diaspórico.