terça-feira, 29 de novembro de 2005

Lembro-me que estou na Índia

Rompe-se, no meio do campus, o cabo de mudanças da minha mota. Estou rodeado de residências, vegetação densa, alguns mini-mercados, departamentos e um ou outro babuíno. Como consertar? Ainda vou a abrandar, já um estudante veterano se aproxima de mim. A poucos metros começa a falar. Demostra já ter identificado o problema mecânico porque me indica prontamente a oficina mais próxima, saindo do campus, 500 metros à direita. "Oficinas de mota" aqui quer dizer "especialistas" acocorados à beira da avenida. Mas não chego lá. Ao tricentésimo metro, conduzindo o meu veículo com muita peripécia pela avenida poeirenta, alguém me puxa pelo braço. Viro-me e um sujeito assobia e indica-me para parar, apontando para o passeio coberto de manchas de óleo. Não tenho tempo sequer para esboçar uma reacção, uma pergunta ou uma resistência. Enquanto ainda balbucio as minhas primeiras palavras, sai dos arbustos um homem com as mãos muito negras e com uma caixinha de ferramentas, deita a minha mota gentilmente no passeio e põe as suas mãos à obra. 45 segundos depois está tudo resolvido, em troca de 45 cêntimos e um apertar de mãos agradecido.

segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Imagens de Deli: Gudu & Ruby


Uma foto do ano passado, no outono. Gudu e Ruby, filhos da nossa empregada de limpeza Sayida. Ele com 14 e ela com 11. Quando em Agosto nos ajudaram a limpar a casa, Sayida, um pouco envergonhada, aproximou-se de mim com um respeitoso "Master-Ji" e indicou-me que gostaria que lhes desse umas explicações.

Assim, durante um ano, vinham ter comigo ao fim da tarde, para lhes ensinar a escrever e ler os caracteres romanos e a falar um inglês básico. Nos dias de calor, ao fim da tarde, depois do sol se pôr, sentávamo-nos à volta da messa no nosso terraço. Nos dias de frio, antecedíamos a aula e tentávamos apanhar os últimos raios quentes de sol pelas 16:00, ou refugiávamo-nos no meu quarto aquecido.

Gudu e Ruby eram muito divertidos. As aulas também. Eu a aprender Hindi e eles o Inglês. Riam-se muito de mim. Como eu não cobrava pelas aulas eles sempre que eu tivesse um problema vinham-me socorrer. Gudu foi perito a montar as ratoeiras (que no entanto nunca tiveram sucesso), inisistia em lavar-me a mota e a Ruby de vez em quando lavava a loiça ou entregava-me - corada - um desenho.

Foram aprendendo. Depois de alguns meses já eram capazes de manter uma conversa básica, de ler e escrever em caracteres romanos. Mas, depois de um ano, ao voltar de Portugal, a Sayida anunciou-me que não era possível mantê-los na escola. O Gudu passou a ajudante de mecânico. A Ruby vai ajudando a mãe nas tarefas de limpeza. Não os vejo há meses.

Há algumas semanas que dou um pequeno curso prático em que dou aos alunos de língua portuguesa umas perspectivas sobre a vida em Portugal, cultura, sociedade, economia etc. e lhes dou pequenas lições práticas (como preencher cnadidaturas a bolsa, como ter uma conversa formal por telefone, como escrever um currículo em português etc.). São já abegões, estudantes de licenciatura e mestrado. Não é a mesma coisa. Sinto falta do Gudu e da Ruby.

Imagens de Deli

Porque não param de me chatear, inicio uma série "Imagens de Deli" em que partilho fotos minhas com alguns comentários. Pode não ser muito regular. Prefiro apostar na escrita. Para ver mais terão que cá vir.

Lembro-me que estou na Índia

Ontem, ao meio da tarde, num restaurante de fast-food (Yo China!), numa zona comercial upper-class, ao sentar-me, e ver ao meu lado, numa mesa comprida, umas 15 ou 20 mulheres de meia-idade, imaculadamente maquilhadas e vestidas com saris, punjabis e demais vestimentas tradicionais, sentadas a jogarem uma espécie de loto ou bingo que dantes só tinha visto na mesa de café da minha avó na Alemanha (e nas mesas de outras avós alemãs), trocando gananciosamente e ao mesmo tempo ociosamente pequenas notas de dinheiro, enquanto que nem abelhas os empregados à volta lhes vão servindo gordurosas entradas e iguarias supostamente chinesas, respondendo elas com arrotos ocasionais e telefonemas a dar indicações aos empregados em casa, e enquanto nos televisores circundantes passa wrestling americano TNA onde o Sonjay Dutt esmaga o Johnny Fairplay.

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Sexualidade na Índia

De há uma década para cá o sector audiovisual foi liberalizado na Índia e proliferam os canais. Mostra-se o wrestling americano, o último Senhor dos Anéis, a BBC e até canais russos. O domínio do magnata Murdoch e da sua rede STAR é impressionante. Mas dois condicionamentos limitam esta oferta televisiva.

O primeiro é que um comité de cariz censurador visiona todos os filmes e corta a seu bel-prazer qualquer beijo, qualquer palavrão ou qualquer cena violenta e erótica que possa ser mais chocante. É portanto refrescante poder ver anunciados de manhã ao tomar pequeno-almoço o último Kill Bill na HBO, só para depois à noite desistir do filme a meio porque metade das cenas violentas foram recortadas.

O segundo condicionamento (se é que lhe podemos chamar assim) é a falta de sexo, erotismo e quiçá pornografia na televisão indiana. Simplesmente inexistente. Entre os quase 100 canais cabo que se assinam por 3 Euros ao mês, só há um que transmite filmes soft-eróticos, anglófono, com sinal muito fraco, que misteriosamente aparece num ou outro mês, de madrugada, para desaparecer depois durante mais outros meses. Não há dúvida portanto que um dos maiores negócios por esta banda seja a pornografia pirateada em DVD's e CD Roms.

Nos mercados basta tossir e aparecem logo do nada uma meia dúzia de senhores com aspecto circunspecto e filmes na mão. Incluindo todo um sector que trafica MMS e demais vídeos amadores que escaparam à privacidade dos lares e das escolas (sim, do que mais se fala nos jornais é quando escapa para o espaço público e comercial um desses clips de fraca pixelização demonstrando vagamente dois estudantes num acto sexual – faz as delícias da população masculina que tem uma espécie de Big Brother no seu telemóvel).

Voltando à televisão, voltemos também aqui ao campus. O meu amigo francês, que viveu numa residência durante um ano conta-me o que é que substitui o Canal 18 por aqui. Pela meia-noite, em certos dias do mês, os estudantes, a maioria pós-graduandos e portanto acima dos 21 anos de idade, encontram-se na sala de convívio da residência onde há o único televisor público. Logo que as coisas acalmem, alguém, por acaso, sintoniza a abençoada Fashion TV, que por essa hora dá uns clips de modelos em biquini. Deliciados com as belezas ocidentais, são depois por vezes apanhados desprevenidos por um dos seguranças/guardas da residência que se acha no direito de interromper e censurar tal "decadência" e irrompe pela sala aos berros, ameaçando "denunciar à reitoria". Mas os estudantes têm os seus mecanismos de defesa. Está sempre um perto do interruptor da luz e imediatamente a sala fica envolta de escuridão, possibilitando que os jovens se cubram de camisolas ou mantas (no inverno) protegendo a sua identidade e fujam rapidamente para o seio dos seus quartos.

Não resisto a contar mais uma. Nas mesmas residências, aos Domingos, há um grupo de estudantes que se encontra sempre num determinado quarto, que nem uma seita secreta. O líder senta-se então na única cadeira do quarto e saca de um pequeno romance (não-iulstrado) erótico, daquelas porno-chanchadas literárias que hoje em dias talvez seja do que mais lêem as velhinhas alfacinhas. Em voz alta vai lendo e à sua volta todos se sentam e ouvem com atenção. A porta, claro, está fechada por dentro com um cadeado e as cortinas corridas, protegendo-os da moralidade pública.

Como sabem, na Índia tudo é verdade, e o oposto também. Há uma Índia que vocês (e em certa medida eu também) nem imaginam, uma Índia que vai mais à frente de qualquer outro suposto Portugal cosmopolita. Em Bombaim as orgias sexuais globais são regulares, e não me surpreenderia se a indústria erótica e pornográfica indiana (filmes per capita) fosse bem maior que a portuguesa. Há toda uma sexualidade que escapa ao tradicional entendimento ocidental e à superficial análise da sociedade indiana. Mas estes episódios narrados fazem parte da realidade e assim permitem-vos pelo menos conhecer um dos extremos. Haverá mais, porque afinal a Índia, ao contrário da Europa, é feita de sexualidade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Lembro-me que estou na Índia

Ao ver, ontem, passar por mim, no meio da avenida, na capital, entre o rebuliço das pessoas, dos feirantes, das vacas, em frente a uma loja da Nokia e ao lado dos menores pedintes, coberto de pó, com o cabelo a escorrer-lhe pelas costas, de bengala na mão esquerda, com pinturas coloridas na testa larga, a barba roçando os mamilos, um homem santo (sadhu). Nu.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Higiene na Índia

Hesito. Entre a ideia de que as coisas na Índia nem são assim tão más e que a higiene e o valor da limpeza é em grande medida construído e altamente subjectivo dependendo do país e da civilização em que nos encontramos. E entre a ideia de que a Índia é verdadeiramente um país higienicamente insustentável, em qualquer termo e perante qualquer caso comparativo. Neste escrito vou explorar esta segunda ideia.

Se nos meses iniciais me inclinei mais para a primeira ideia, passei recentemente a estar mais e mais refém da segunda. Vejamos que bicharada e que experiências me fizeram mudar. No ano passado, a já conhecida experiência símia, acordando num dia de verão com um macaco sentado na minha cama a afagar-me a cabeça. Há uns poucos meses, estava eu pacatamente a escrever aqui ao computador, descalço, claro, um ratinho mordiscou-me o dedo grande do pé direito. Fugiu antes que o pudesse esmagar. E foi sobrevivendo durante semanas no nosso apartamento, movimentando-se na penumbra da noite e escapando a todas as armadilhas e venenos que nos foram recomendados "guaranteed result, sir" no popular mercado aqui ao lado. Á noite, adormecia com o seu ranger de dentes, quando se decidia refugiar no meu quarto. À média de uma vez por semana algum de nós avistava-o, cada vez mais gordo. Ainda me lembro dos gritos estridentes da namorada maurícia do meu amigo francês, quando esta abriu o armário da cozinha e se deparou com uma já obesa ratazana petiscando arroz basmati e corn-flakes kellog's. Finalmente, à quinta semana, desapareceu e nunca mais vimos o bicho.

Mas há mais. No campus. É raro ir lá beber um chá e não ver uma ratazana a passear pelas residências ou pelas esplanadas. Cheguei a ver uma, tão grande, que fiquei a duvidar por dois segundos se era um gato gordo. Ao terceiro segundo comecei a acelerar o passo. Ontem à noite, mas uma vez, foi a vez de um ratinho entrar na cozinha do restaurante tibetano onde comia um bom "roasted lamb chillie" que passou logo a intragável, indo refugir o meu apetite em perigo de extinção num pacote de Lay's. Foi de qualquer maneira melhor do que há dois meses, quando me serviram no mesmo restaurante um "chicken hakka noodles" com uma barata em cima, maior que muitos ratinhos ocidentais.

Vamos lá continuar. Na semana passada o meu flat-mate moçambicano estava com a namorada no mercado à procura daquelas folhas da couve para fazer um bom caldo verde à portuguesa. Entraram numa loja mas só havia mesmo couves sem a folhagem lateral. O lojista, no entanto, pediu para esperarem para ver se encontrava o que pretendiam. Impacientes os meus amigos deixam a loja e deparam-se com um dos assistentes da loja a vasculhar no lixo, ao lado de cães, ratos e gatos, seleccionando as folhas verdes pretendidas. Estendeu-as normalmente e disse "here, I found for you" com um sorriso tímido mas orgulhoso.

Se já no Ocidente reina a máxima que em restaurante chinês é melhor não entrar na cozinha, imaginem aqui. Conheço um cozinheiro tailandês num hotel de cinco estrelas, de topo, que me conta as mais assombrosas histórias que se passam com os seus assistentes nas suas cozinhas e a frustração que sente por ser incapaz de lhes incutir o mínimo sentido de higiene. Voltemos aqui ao campus. Na Avenida de Berna, numa das faculdades da Universidade Nova de Lisboa, já é normal haver um dia por ano em que os estudantes são encaminhados directamente da cantina para o hospital, por terem comido algum arroz doce ou iscas à portuguesa pouco recomendáveis. Mais uma vez, imaginem aqui. São poucos os estudantes que ainda não sofreram de "food posining" nas cantinas das residências. Numa das cantinas principais, quando escolhemos em grupo o que vamos jantar, olhamos para o menu e cada um vai partilhando com os outros os perigos de um ou outro item, recaindo a escolha por fim nos pratos menos suspeitos e com menos historial de gastrenterite. Em muitos locais do campus cheira-se continuamente o odor de substâncias vomitadas. É normal alunos faltarem às aulas por indigestão, tal como talvez em Lisboa, nos frios meses de Dezembro e Janeiro, ser normal faltar por constipação ou gripe.

Vamos falar de coisas mais ligeiras. Os indianos comem com as mãos. Mais especificamente a mão direita, somente, estando a esquerda reservada para lavar as partes íntimas depois de defecarem. O problema é que nem sempre lavam as mãos depois de saírem das sujas casas-de-banho, e antes ou depois de comerem. E mesmo que lavem, as longas unhas resistem e por debaixo delas o caril cheio de especiarias e saliva. E tudo é transmitido, de mão em mão. O mesmo perigo de transmissão aplica-se ao cuspir. Por toda a Índia a noz de bétel é muito apreciada e mastigada em grandes quantidades, formando uma pasta avermelhada na boca que depois é cuspida, especialmente em esquinas e escadarias de prédios. Alguns donos ou autoridades inscrevem a letras garrafais encarnadas "DO NOT SPIT PLEASE" mas estas vão desaparecendo rapidamente, à medida que o cuspo vermelho cobre a parede. E o ranho. Esse contribui igualmente. Por todo o lado aspira-se o ranho – como que num aspirar das próprias entranhas – levando a mão o nariz, expirando-o para a palma e atirando-o para o chão. Há versões mais directas, deixando a mucosa fluir directamente do nariz para a superfície.

Não me vou alongar sobre a higiene sexual, cujos hábitos me são ainda em larga medida estranhos neste país. Mas pelas conversas mantidas com colegas, pelo que leio em jornais e publicações diversas, não auguro nada de bom. Talvez baste sublinhar o facto que li numa revista de medicina, relativo à alta percentagem de transmissão de doenças pela via sexual/oral na Índia: pretendendo manter a tão cobiçada virgindade até ao casamento, os jovens limitam-se muitas vezes a praticar sexo oral, ignorando no entanto as paupérrimas condições higiénicas dos seus dentes e da boca em geral, levando à propagação de graves doenças sexualmente transmissíveis. Neste contexto, lembro-me também de visitar o parque de camiões inter-estaduais aqui em Nova Deli, quando preparava uma reportagem sobre a transmissão do vírus da sida na Índia. Os camionistas, enquanto esperam a carga, ficam dias, longe das esposas, em tremenda ociosidade, rodeados de centenas de prostitutas. O espaço não se distingue muito de uma lixeira a céu aberto. Proliferam os preservativos usados deitados no alcatrão.

Finalmente, o urinar e o defecar. Sinceramente, não me lembro de muitos dias em que, percorrendo os 200 metros que separam o meu prédio da entrada principal da universidade, não tenha visto pelo menos um menino, um rapaz ou um homem a urinar na margem da rua. Lembro que vivo numa das zonas urbanas mais desenvolvidas da Índia, na conhecida "South Delhi" com a sua emergente classe média urbana, e que a maior "favela" da Ásia, em Bombaim, ainda fica bem longe daqui. O mesmo aplica-se à defecação. Nas viagens de autocarro e de comboio, as histórias a contar a este respeito são intermináveis. Por todo o lado amontoam-se as fezes, no centro das cidades, por detrás da farmácia, na periferia das aldeias – como um campo de minas, ao lado do hospital, à margem da estrada nacional, no corredor do comboio, na bagageira do autocarro. Aliás, nunca cometam o erro de procurar as casas de banho públicas para procederem a semelhante acto na Índia. Tudo menos isso, em nome da vossa sanidade física... e mental.

Acho que fica feito um panorama das condições de higiene na Índia. Polémico, certamente. Mas real. Há no entanto que sublinhar "o outro lado da história" e injectar esta análise com um "relativismo" que poderá desculpar, justificar e explicar algumas coisas. E, complementarmente, há que apresentar explicações – sempre diferente de justificações. Farei isso num outro escrito.