terça-feira, 31 de agosto de 2004

Jawaharlal Nehru University

A JNU foi fundada nos anos 70 com o objectivo de congregar a elite de estudantes e investigadores indianos em busca do utópico desenvolvimento por via do socialismo não-alinhado. A universidade tem diversas faculdades, e os programas de estudo são exclusivamente de pós-graduação, excluindo-se a School of Languages onde se oferecem cursos de licenciatura e onde estou a aprender Hindi.

Outras faculdades são a School of International Studies, onde estudo como único e primeiro estudante português regular de sempre nesta instituição, a School of Social Sciences, a School for Arts and Aestethics, o Special Centre for Sanskrit Studies, o Centre for Biomolecular Science ou a School of Informatics... Cera de 4500 estudantes vindos de toda a Índia, e mais de 200 estrangeiros, frequentam os programas diversos que a JNU oferece. Há cerca de 500 professores e investigadores o que dá uma simpática proporção de um professor para cada nove estudantes.

O campus estende-se por várias dezenas de hectares de densa floresta e vegetação. Mais do que um mero conjunto de salas de aula, a JNU é uma pequena nação dentro da metrópole deliense. Por exemplo, a maior distância entre duas residências chega a cinco quilómetros. Há as faculdades, grandes edifícios em pedra de tijolo vermelha, há a enorme biblioteca que é uma torre emergente simbolicamente colocada no topo de uma das colinas. Há dezenas de residências espalhadas pelo campus, todas baptizadas com o nome de grandes rios indianos.

Tal como a maioria dos estudantes, a maioria dos professores mora dentro do campus, em bairros residenciais que se assemelham perigosamente aos subúrbios de classe média americana nos anos 50, pequenas casas com pequenos jardins de relva cuidada em que pululam os indefesos filhotes do Professor Doutor que acaba de nos chumbar...

Depois há, num outro extremo do campus para evitar promiscuidades, o bairro dos funcionários, albergando as centenas de anónimas individualidades que mantêm a JNU a funcionar. Vivem com as famílias e as suas crianças vão para a escola secundária localizada no campus, e estou por descobrir se lá se sentam ao lado dos filhos dos professores ou se a retórica do socialismo e da igualdade conta na prática tão pouco como na cantina da minha faculdade onde um rapaz de 11 anos limpa as mesas durante todo o dia.

Há ainda o Stadium, eufemismo para um batatal, onde aos fins de tarde, quando o calor desaperta, os mais belos jogam futebol, criquete ou dão umas voltas a correr. O edifício da Students Union completa o panorama, tal como várias barraquinhas de restauração com as condições higiénicas mais assombrosas possivelmente imagináveis. São pequenas lojitas ou restaurantes que permanecem abertos até de madrugada, reunindo os alunos fartos de estudar e desejosos de socializar um pouco bebendo o tradicional chá.

Pequenos trilhos, para além das estraditas polvilhadas de volumosos speed-breakers, percorrem todo o campus. Um deles vai dar ao Open-Air theater, nada mais do que um buraco numa colina, semelhante a tantas pedreiras abandonadas nos subúrbios de Lisboa.

Mas um pouco mais acima há uma colina com uns rochedos, lugar importantíssimo para a JNU, porque é aqui que de noite se encontram os amantes secretos ao abrigo da escuridão que os protege dos boatos incessantes e do campus minado de preconceitos, normas e condicionantes sociais, embora a JNU seja conhecida no exterior como oasis of freedom and liberal social values.

Presumo com bastante certeza que o meu professor de Indian Political System beijou aqui a sua mulher (também professora) pela primeira vez, quando os dois eram estudantes da JNU nos anos 70. Aqui, não se pergunta se já levaste a gaja ao cinema ou para a cama. Pergunta-se if you have already gone with her to the Rocks. Para olhar para as estrelas, e, se ela estiver de bom humor e for liberal, dar uns beijinhos no canto dos lábios e dizer coisas bonitas.

segunda-feira, 30 de agosto de 2004

Dhoom

Fui ontem ao cinema em Priya, ver o "bollybuster" DHOOM, um filme em hindi, genial. Musicas lindas, cores vivas, accao, comedia. Os espectadores batem palmas, comentam em voz alta, gritam, riem, alguns chegam a levantar-se e a dancar ao som dos sucessos musicais que intervalam o enredo. Paradoxalmente, na India que quase que nao conhece o conceito de auto-estradas com separadores, os bad guys sao quatro motoqueiros criminosos montados em Suzukis de alta cilindrada que atingem velocidades que rondam os 300 km/h. Onde pararam as vacas?

E para grande felicidade minha (e surpresa) quase metade do filme passa-se em Goa. Deliciem-se com esta e outras fotos.

Being Indian (recomendo)

Being Indian, Pavan K. Varma, Penguin Viking, 2004, p.325, Rs. 325.


Pavan K. Varma is a writer and columnist and a member of the Indian Foreign Service. He is currently Director, Nehru Centre, London.

In Being Indian, PAVAN K. VARMA demolishes the generalisations about India and Indians, as he examines what really makes this country tick and what it has to offer in the 21st Century.

Recomendo vivamente este livro a todos os que procuram conhecer a India melhor. Excelente obra de sintese que aborda as principais problematicas que a sociedade indiana atravessa nestes anos. Vejam se encontram na Amazon. Ou leiam os excertos em Power: The unexpected triumph of democracy

sábado, 28 de agosto de 2004

Campo de minas

Sou cobiçado, observado e interrogado. A adoração assume níveis de histeria. Não posso olhar sequer para uma rapariga, arriscando que no dia seguinte circule o rumor pela faculdade inteira de que namoro com ela, que a convidei para jantar em minha casa e que fizemos coisas.

Ontem soube pela Sarita que there are two girls who wanted your phone number to ask you to go out. E que a N., rapariga que faz parte do embrionário grupo de amigos brâmanes, ricos ou influentes e estrangeiros (de que penso fazer parte e de que vos falarei noutra altura), rapariga, dizia eu, com que tenho uma relação amical como com tantas outras, she's crazily in love with you, I know her since I'm little and it's so obvious, e eu como num campo de minas, duvidando se devo poisar o pé aqui ou ali. E a Sarita, que, ao dizer-me isto sorri com os seus olhos brilhantes, eu sei o que ela gostaria de ter, mas não lhe posso dar nada, as minas por todo o lado.

Estou a conversar com um estudante do estado de Assam sobre a política naquele estado e o excessivamente centralizado sistema federal indiano. Confidencia-me que New Delhi is very far away you know, the Centre has not helped Assam to develop, I want to create a network of like-minded people to make business, penso em AK 47 e em redes bombistas e em mim numa prisão e digo que sim, let's see. Do lado oposto da mesa, interrompe-nos uma rapariga, com um corpo bonito. Não a conheço.
"How's your girl-friend, Tino?"
"Who?"
"Your Nepali girl-friend"
"What? I have no girl-friend. Who told you that?"
"Someone. And back in Portugal, you have?"
"No, how do you know my name?"
"No? Are you sure?"
"Yes, who told you all these rumours?"
"Someone"
"Tell me who"
"I am kidding, was just making fun with you"

Vira-se e continua a falar com a rapariga ao lado. Quero reagir, mas So how is the situation in Goa? Like in Assam? Give me you phone number so we may meet more often and start this network.

E a Priya que ao jantar nos diz que I am going to get married by arrangement, I trust my parents, they are already looking, this takes time. I would like to marry a Professor, someone old and intelligent, because he would make money with his mind. Responde-me com um olhar tranquilo No, I guess I will never be in love in my life e continuamos a conversar sobre História das Ideias Políticas e a concepção de Estado em Platão.

E a Mahmuda (este nome não é fictício, meninos, é filha de um diplomata do Bangladesh) que me confidencia que só ontem já vieram ter com ela três raparigas, duas das quais nem sequer da School of International Studies em que andamos, a dizer que eu era cute e que devia convidá-las a ir ao cinema (uma), jantar (outra) e telelefonar (a terceria).

E o meu telemóvel recebe sms de hora em hora. Sweet dreams. Why didn't you come to class today, missed u. What about having dinner tonight? Do you need the notes of TIR class, I have some very good ones. Let's have a tea and you can tell me more about you. Are you sick? You look like today, I have some orange juice in my room, that is good for you E eu desorientado e tonto, num campo de minas.

Sentado com alguns colegas à mesa da cantina, conversamos sobre as origens europeias da língua hindi. Pelo canto do olho, reparo que me observa uma rapariga enquanto come. Registo o facto com normalidade, porque na Índia ser observado, apalpado, perguntado e roubado é normal.
“What is your name?”
Está colada a mim, a minha face e a dela separados por magros centímetros. Recuo ligeiramente, respondo instantaneamente.
“Tino”
“In which course are you?”
“MA International Relations"
"I think you are very cute"
"What?"
"I just think you are very cute"

Vira-se, pega nas coisas dela e sai da cantina.
Viro-me de volta para a mesa, para os meus colegas, esperando risadas gerais, comentários sarcásticos. Mas não, estão todos à conversa uns com os outros, como que evitando encarar-me a mim e o que se acabou de passar.

E eu abandonado a digerir o que não me lembro de ter engolido. E eu desorientado e tonto, num campo de minas. Porque sei que se me mexer um milímetro e tocar uma única, elas começarão a explodir, todas elas.

quinta-feira, 26 de agosto de 2004

'Witch' paraded naked in Bihar

(in TIMES OF INDIA, http://timesofindia.indiatimes.com/articleshow/828221.cms) PATNA: An old Dalit woman was tonsured and paraded naked in a Bihar village on a charge of practising witchcraft.

Dhaneswari Devi, 60, was tonsured, tortured and paraded naked in Thatha village under Cheriyabariyapur in Begusarai district by villagers for allegedly practising witchcraft that resulted in the death of a youth. Police officials said they were aware of the incident but no arrest has been made.

This is not an isolated case against Dalits in rural Bihar, but most of the cases remain unreported due to the strong prevalence of casteism at the village level. This month alone two similar cases were reported while last month also two such cases were reported in Bihar, one of India's most lawless and backward states.

Top floor, DDA Flats Munirka

Estou sentado à escrivaninha do meu quarto, no top floor do nº14, Street E, DDA Flats Munirka, Nova Deli. Passei um dia belo, um dia de chuvas, o acordar acompanhado pelas grossas gotas que polvilham o nosso terraço em pedra que imita o mármore que ninguém na Índia tem.

Queria escrever sobre as aulas, sobre os alunos e os professores, mas estou pouco inspirado para isso, não sei porquê mas prefiro falar do meu quarto, afinal o ninho que me recebe nas escuras e silenciosas noites delienses.

O chão é de pedra escura, a imitar um mármore, o mármore de Pêro Pinheiro, ou de Pêro Negro ou talvez de S. João das Lampas. Comparado com o quartito no sétimo andar do 16ème que me albergava em Paris, talvez uns oito metros quadrados, este espaço é um palácio. Tenho uns trinta metros quadrados. De um lado, a secção mais pessoal, com a minha cama com lençóis azulados que contrastam com as paredes caiadas de branco. Por cima da cama a minha mítica rede mosquiteira romântica que trouxe de Portugal protege-me a mim e eventualmente a quem me faça companhia – evento que irei obviamente cobrir aqui no blog ao vivo e em directo, não se preocupem.

O outro lado do quarto tem a nossa chamada sala de estar, com um sofá e dois cadeirões em madeira talhados à indiana, bem como uma mesa para poisar os copos de água, os pés ou os jornais diários. Embora seja o nosso único espaço comum, a sua utilização depende sempre da minha autorização, condição que impus desde o início. Mais duas estantes e armários compõem o resto, bem como uma escrivaninha da qual vos escrevo e uma cadeira com rodas que me dá um certo ar de empresário gatuno. De registar também as duas ventoinhas instaladas no tecto (“fans”, utensílio sem o qual a Índia não existira, certamente), as duas janelas e uma porta (convém).

Vamos então ao plano mais geral. Uma grande porta conduz-vos ao terraço onde está a roupa estendida, vários tanques de água e as portas de entrada para os três quartos. É um terraço simpático, sem grande vista, mas dá para umas festas agradáveis com umas 20 pessoas, abrindo os quartos. A vista resume-se aos telhados dos outros prédios, o que tem o seu charme e a sua falta de privacidade. Nos fins de tarde emergem dos telhados os papagaios coloridos e os gritos entusiasmados de centenas de crianças. Até perder de vista vêem-se os pedaços de cartolina, de plástico e de papel invadir o espaço aéreo. No outro dia estava a ler o jornal no terraço e um papagaio rasou a minha cabeça, ficou à minha frente suspenso por dois segundos, como me observando ou pedindo desculpa, e depois voltou a ganhar altitude e desapareceu. Era vermelho e branco.

Os quartos do Chacate (Moçambicano, mas não, não é muçulmano, chama-se Acácio Dinis Chacate e é marxista, mas insistiu em termos empregada todos os dias e logo que chegou foi comprar dois pares de Levi’s) e do Jean-Baptiste (Sciences Po Lille, típico francês que todas as manhãs abre o Times of India em busca da tabela de medalhas olímpicas e lança ou um orgulhoso e prolongado Ahhhh Ouiii! ou um surpreso e indignado Mais non!!, joga ténis e come Chocapic ao almoço que comprou numa loja para diplomatas a 20 km, por 15 Euros) são idênticos ao meu, mas mais pequenos, talvez metade. Depois, há o espaço da cozinha, com um pequeno fogão, um grande frigorífico e um armário que serviriam excelentemente como objecto de estudo de uma tese de doutoramento sobre a alimentação de uma geração globalizada.

A casa de banho também é simpática, com retrete ocidental (e não o buraco indiano normal) e um chuveiro que de vez em quando nos abençoa com água (senão só de balde).

Fim da visita guiada. Podem deixar as vossas contribuições no cesto com o pano azul. Levem um panfleto e voltem sempre.

sábado, 21 de agosto de 2004

JNU upholds its tradition (The Hindu)

NEW DELHI, AUG. 18. A day after students of Jawaharlal Nehru University upheld its democratic traditions, the campus was still simmering on Wednesday. Even as representatives of various student bodies called for immediate action against those who unsuccessfully attempted to disrupt a public meeting by S.A.R. Geelani -- acquitted by the High Court in connection with the Parliament attack case -- on Tuesday evening, a protest march was taken out on the campus by various student bodies late in the evening today to uphold the principle of freedom of speech.
(Para os que querem saber mais, ou para os que desgostaram da minha escrita ficcionada: artigo completo)

A tribo perdida de Israel

A team of senior Israeli rabbis is due to rule soon on whether thousands of Indians who say they are members of one of the lost tribes of Israel can settle there. Shlomo Amar recently led a delegation of rabbis to the north-eastern Indian states of Manipur and Mizoram where members of the Benei Menashe tribe live and practise Judaism.

"Menashe is the son of Joseph, who was one of the 12 sons of Jacob. So we are the lost tribe of Israel."
Mr Hangshing says for thousands of years they did not know they were lost.

Ler artigo completo:
India's 'lost Jews' wait in hope (BBC News)

quinta-feira, 19 de agosto de 2004

As minhas cadeiras na JNU (Monsoon Semester)

Theory of International Relations
Varun Sahni
University of Oxford, PHD Politics, 1988-1991
An Inlaks Scholar at New College, Oxford, he later was Junior Research Fellow in Politics and Junior Dean at Lincoln College, Oxford.
Member, Executive Committee, Institute of Peace and Conflict Studies, New Delhi.

Publications:
India y Pakistán
The Military in Politics”, in Leslie Bethell
Freezing the Fighting
India as a Global Power

Excelente professor, com formacao internacional, e que se inclui como relaista moderado, nao deixando de dar, por exemplo, a questao do “The individual, gender relations and third world perspectives on TRI” numa das seccoes. Boa pedagogia e excelente material que, embora ja tenha tido 2 semestres de TRI, me esta a abrir novos horizontes.


Political Thought
O. P. Bakshi
Doutorado em Historia, Oxford
Extrovertido, mete-se com os alunos, incentiva o pensamento critico, “words are not important – what you do with words is important”, mas, para quem como eu ja levou com um brainwash de Historia das Ideias Politicas e demais abordagens historicas na FCSH-UNL, torna-se basico e repetitivo. Vamos dar numa terceira parte Kautilya, pensador indiano que antecedeu em muitos seculos o “original” pensamento maquiavelico. (Ler: Arthasastra)

Indian Political System
Kamal A. Mitra Chenoy
Foi militante do Communist Party of India-Marxist, ex-President JNU Students Union quando era estudante nesta mesma faculdade, organizador do World Social Forum-India, da tambem a cadeira de Comparative Political Analysis, e tem um background academico brilhante (embora restrito a universidades indianas). Curiosamente, trata-se de um dos poucos membros da reduzida minoria judia indiana.

Indian Foreign Policy
Savita Pande, o oposto de Kamal Mitra Chenoy, tem uma perspectiva extremamente nacionalista, colocando-a muitos estudantes na esfera de influencia dos nacionalistas hindus do BJP. O curso que da eh razoavel, mas tem grandesc e profundos conhecimentos de seguranca e defesa na Asia do Sul. Escreve para um dos jornais diarios que assino, The Pioneer, proximo do BJP.

quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Campus, sementes, erva daninha

Como vos transmitir a beleza, a pureza e a violência dos acontecimentos que acabo de testemunhar? A entrega, a dedicação, a agitação, a histeria. Os ideais, as ideias, a discussão, a democracia, o grupo e as massas. O suor que escorre pelas costas. A erva daninha que cresce e as coisas parecidas que afinal ninguém viu e depois só restou pedir desculpa pelas sementes atiradas ao vento que todos pensavam iriam morrer porque não haveria vento para as levar, mas por isso mesmo elas crescem aqui mesmo, entre nós, as sementes e a erva daninha, o ódio e a morte e o cheiro a carne assada.

A palavra, o microfone que falha de dez em dez segundos. Os olhos fixos, as pupilas atentas. Os cânticos marxistas, o trabalhador das indústrias, os camponeses we salute you with our red flag, lal salam, lal salam, lal salam. As pernas que tremem de agitação, quanto tempo esperei por isto?

Espera na Avenida de Berna 26C. Vamos ao Docks ou ao Blues? O Pedro vai para a rua, mas ele é tão giro. Não me digas que não viste, fizeram-no só com uma toalhinha a cobrir, não viste? Não vamos falar de matéria. Comissão de estágios, acho que deveria haver mais. Não há condições nenhumas para estudar, livro aberto, sms, Nokia ou Siemens? Lindo, fiz duas directas e safei-me com um 14. Setembro melhoria, o prof curte-me e como há discussão de nota peço-lhe um 17 que ele dá porque me curte. O Portas tem mesmo cara de maricas. Não me digas que não sabes que eles andam todos metido na Casa Pia, não sabes? Aparece em Benidorm e bubas monumentais!

O carro aproxima-se, um jeep azul. São dezenas, talvez cem, impedem a sua progressão. São do ABVP, o movimento indiano dos estudantes ligados ao Bharatiya Janata Party, os nacionalistas hindus radicais e fundamentalistas. O campus da JNU é, como já sabem, dominado pela esquerda há dezenas de anos. Aqui resistiu-se sempre. Aqui construiu-se a frágil democracia indiana. Aqui acredita-se nela, normalmente dentro do quadro ideológico socialista, mas nem sempre.

Acredita-se nos fracos e nos oprimidos. Algo que soa a mofo e bolor na nossa Europa, algo que aqui é tão importante, porque não há pão, há miséria, há um rapaz descalço coberta de bolhas pustulentas deitado na sarjeta e todos passam, os cães também.

E agora há algo de tão parecido. Algo que nunca vivi, mas que me está próximo porque tenho a mania de assinar com Hermanns. Porque a minha mãe nasceu em Heerdt em 1948, com as crateras à volta, tudo castanho, buracos grandes à beira do Reno. Porque o meu avô, que nunca conheci, só foi escrivão und hatte nie eine Waffe in der Hand, nunca disparou um tiro, não, tinha graduação forte e por isso ficava sentado à escrivaninha a fazer trabalho de administração e viajou e voltou, culto e aberto, falava grego e búlgaro, recebeu o meu pai Aurobindo aus Indien, Goa, die Portugiesiesche Kolonie, de braços abertos, mas, pequenina, brilhante, a cruz suástica no peito no uniforme castanho e o cheiro a gás.

A suástica, outra vez aqui, tão parecida, ligeiramente diferente, ao contrário, diferente ligeiramente. Hindutva. Nazionalsozialismus. BJP. NSDAP. ABVP. Hitlerjugend. RSS. Gestapto. VHP. Sturmstaffel. Renascença hinduísta. Neues Deutschland. Greater India. Grossgermanien. Tod den Juden. Die Muslims, die. A Índia nuclear. Panzer & Messserschmidt. Vande Mataram. Jai Hind. Deutschland uber alles.

Motherfucker, Sisterfucker, Out, Out, Out!

Sementes da morte. Pensamento único. Revisionismo histórico. Violência. Violações em grupo e em massa. Mulheres escalpadas. Homens espancados até à morte, partir a nuca com uma catana é mais rápido. Para não deixar provas, petróleo e um fósforo, cheira a carne assada. Muçulmana. Às vezes cristã. Não importa, a carne é a mesma. Das minorias, dos traidores, anti-patriots, anti-Hindu India, Pakistani friends, spies, terrorists, motherfuckers, sisterfuckers, animals, blackies, whores, dirty dirty dirty, we do not want you in pure Hindu India.

Campus, sementes, erva daninha (cont.)

O jeep azul aproxima-se, o ódio cerca a viatura, out out out! Centenas de estudantes agora. Alguns socialistas misturam-se e tentam defender o ocupante, um professor caxemire da Delhi University que no ano passado foi acusado pela polícia de ter colaborado no atentado terrorista de separatistas caxemires ao Parlamento indiano. Tinha sido gravado um telefonema seu for a do contexto e utilizado como prova.

Foi condenado à morte, embora como terrorista seja mais inocente do que muitos de vocês aí em Lisboa. Depois de um ano na prisão, em que o torturaram e ameaçaram fazer coisas terríveis aos seus dois filhos de cinco e dez anos e à sua mulher, continuou a recusar-se a admitir uma mentira. Foi ilibado pelo Supreme Court. Vinha falar-nos da sua experiência e da necessária auto-determinação caxemire que defende. Mas não o querem deixar falar. É um traidor. Vergonha para a origulhosa Mother India, com a sua cabeça estrategicamente colocada em Caxemira.

Motherfucker, Sisterfucker, Out, Out, Out!

Voam pedras, o jeep tem duas janelas estilhaçadas. É obrigado a recuar. Entramos, os outros, os democratas. Os nacionalistas, os olhos transbordam ódio, ficam a gritar em coro. Tensão. Sementes voam pelo ar. Ainda bem que a JNU não é terreno fértil. Mas está vento hoje. Vão certamente cair uns quilómetros mais adiante e a erva daninha crescerá e o cheiro a carne assada não tardará.

Dentro, fala a sua advogada, em seu nome. Let them in, let the ABVP in, they have the right to express themselves. If they want to talk, let them. Mas não entram. Cercam o edifício e continuam aos berros. Sisterfucker, campus chalo, Pakistani!

A sala alberga centenas de estudantes. Ganham entusiasmo com as palavras da advogada. Gritam por sua vez slogans e batem palmas, cantam, ensurdecedor, e o suor escorre pelas faces, pelas costas, pelo peito e pelas pernas. Escorre e cai em pingos no chão.

Let us march peacefully for the democratic freedom of speech and hope he maybe join us later to share his experience with us. Todos saem, em marcha. Somos mais de 500 agora. São onze da noite. A frescura nocturna não arrefece o calor político. A marcha passa por todas as residências no campus universitário. À porta de cada uma, esperam mais algumas dezenas de estudantes que se juntam ao cortejo e engrossam o coro de vozes.

Communalism down down down. Long live Secularism. Long live.

Voltamos ao local de partida. O cortejo passa de raspão pela centena de estudantes nacionalistas. São poucos, mas o seu ódio multiplica a força e o volume e o significado das suas palavras por mil. São impedidos de avançar ao nosso encontro por um cordão de seguranças privados, desarmados.

Voltamos ao local de partida. Volta-se a entrar na sala. Voam algumas pedras. Alguns sangram. Canta-se. Lal Salam, Lal Salam. Lal Salam. Zindabad. Zindabad. Zindabad. De repente, do nada, entra ele, de barba, pele clara, um pai de família e um professor universitário como qualquer um, em Deli ou em Lisboa, mas deram-lhe choques eléctricos, espancaram-no, cela escura, dor. Porquê?

Fala. A multidão ouve com atenção. Não percebo a língua hindi em que fala, mas percebo o que diz. Os olhos piscam. As mãos trémulas, uma segura o microfone com uma firmeza exagerada e a outra meio enfiada no bolso da calça, os dedos mexem-se dentro do bolso. Fala. Oiço e percebo, sei.

Sei porquê, o suor escorre, a mão treme e as palavras ecoam nas paredes bolorentas escaladas por pequenos lagartos castanhos, os olhos piscam e os choques eléctricos e o ódio lá fora, o medo e as sementes de violência crescem como a erva daninha no jardim no Rogel e o meu pai corta a relva, mas ela volta a crescer, porque é preciso ser persistente e acreditar e agir, luta, entrega, dedicação, ideais e ideias, porque a erva daninha ou as coisas ligeiramente diferentes ou diferentes ligeiramente são afinal tão parecidas, o pai de família ou o genocídio.

domingo, 15 de agosto de 2004

Umas linhas de manhã

(texto de Quinta-feira) Estou no apartamento de um diplomata de alto nível da Embaixada francesa em Nova Deli. To cut it short: Só podemos entrar no nosso apartamento amanhã, no pior dos casos só mesmo no Sábado. Embora provavelmente um terço da população desta cidade durma ao ar livre, prefiro ter um tecto sobre a cabeça.

Amavelmente, a Flora (filha do diplomata), membro dessa fauna global deliense de que vos falava anteriormente, ofereceu-me a mim e ao Jean-Baptiste (my future flatmate) o seu rico apartamento numa zona milionária de Deli. É refrescante ter comodidades ocidentais, ar condicionado, espaço, comida doce e uma televisão que fala francês.

E é extremamente interessante ver Nova Deli da perspectiva dessa fauna global, neste caso diplomática, quanto mais da janela de um jeep azul com matrícula diplomática e motorista, veículo que me tem guiado a toda a hora.

Ontem ainda, o nosso motorista fez inversão de marcha numa via rápida (tipo segunda circular) e de repente deparamo-nos de frente com um jeep da polícia (que ia no sentido correcto, claro). O nosso motorista ofuscou os polícias com diversos sinais de luz e ensurdeceu-os com buzinadelas, passando a autoridade de raspão, sem parar nem dirigir uma palavra ao polícia que a certa altura estava a um metro de distância.

Este olhou, limitou-se a olhar. Imunidade diplomática para três putos ocidentais à procura de jantar em Nova Deli num carro grande com matrícula azul CD. Se acho isso bem ou não é outra questão. Aconteceu. Na Índia.

domingo, 8 de agosto de 2004

A fauna global deliense

Quando parti de Lisboa, fruto das reacções da maioria das pessoas em relação aos meus planos, sentia que estava à beira de cometer uma loucura singularmente louca, sentia-me um Fernão Mendes Pinto do século XXI. Mas, só mesmo o pequenino Portugal para me dar essa impressão errada.

Poucos dias depois de ter chegado aqui e me ter inserido na complexidade que me rodeia, percebo que eu não passo de um caso bastante ordinário quando comparado com a japonesa que tirou aqui o mestrado, trabalhou um ano, depois outro no Egipto e acaba de regressar do Irão onde I had a fight with my boyfriend. Ou a Flora que é francesa e viveu em Hong-Kong e Moscovo, fala fluentemente cinco línguas, tem um namorado indiano que é actor em Bollywood e tem um castelo medieval em Lucknow, que tem um alfaiate e três criadas só para ela, mas não se importa de entrar connosco para as porcas ruas de Old Delhi e fazer compras ou andar de cycle-rick-shaw.

Já não estamos no século XIX em que as distâncias ainda eram um obstáculo ao relacionamento humano. Já não há aventureiros que partem para terras distantes e exóticas, arriscando a vida ou a nunca mais voltarem. Nova Deli fica algumas horas de vôo de Lisboa e a alguns Euros acessíveis, e não a 7 meses de viagem de caravela.

Nova Deli é uma capital globalizada cuja fauna global de investidores, negociantes, políticos, diplomatas, estudiosos e viajantes cresce diariamente, chegando e partindo tanta gente, num constante fluxo de come and go, arrival and departures, business or economy class, window seat? Nova Deli tem todas as comodidades ocidentais, tem Internet, tem electricidade, tem telemóveis e pelo que vi tem estradas alcatroadas. Tem hospitais que são dos melhores do mundo e até tem centros comerciais que se assemelham assustadoramente ao Colombo. Tem encantadores de serpentes e tem uma das bolsas económicas mais vibrantes do mundo. Tem também pessoas, muitas mesmo.

E eu, aqui no meio, delicio-me com a novidade e o desconhecido que afinal é tão familiar. Tenho um McDonalds a dez minutos e o Spiderman a quinze. Tenho a vaca com o peito perfurado à frente da minha janela e o pedinte leproso à porta. Acho que a vou abrir.

Microchoques culturais (II)

“So, you like JNU?”
“Yes, it’s a great campus, I’m loving it”
“So where do you stay only?”
“I’m getting a flat outside, in Munirka DDA Residential Area, with two friends”
“So you’re not staying in hostel? They have not give you room on the campus?”
“I would get a room, but I chose something outside, nearby the campus”
“Why?” (silêncio macabro)
“Because I want to have more space, and my friends are coming to visit me from Goa and Europe.” (sei que estou tramado)
“But they can stay in hotel, or your family is poor?”
“No, but I would like to be with them as much as possible when they come down to Delhi”
“But this is veeeeriii bad for you, you will loose the campus life and not integrate properly, you know”
“Yes, but that’s why I am staying very nearby, just five minutes walking from the main gate and I will have a bicycle”
“Dat is nod de same ding. You will not participate in the campus life. And how much you paying. It is not expensive?”
“Its is 3000 Rupees each (salário mensal para maioria da população indiana), but I get back 2500 from my scholarship, as House Rent Allowance”
“Ohhh, I see, so Indian Government is paying you to stay in private room, I see, because you don’t like hostel conditions. Ok, as you like. I see.”

Legitimação (ou Afinal porque é que eu estou na Índia)

Afinal, o que é que o Tino está a fazer em Nova Deli? Como sabem, tirei a minha licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa, incluindo um ano de intercâmbio Erasmus na Sciences Po Paris. Fruto do meu interesse por Goa, fui abrindo os meus olhos para o enorme potencial que a Índia, o subcontinente indiano e o continente asiático apresentam na esfera internacional económica e política.

A Índia tem um crescimento anual que ronda os 8% e estima-se que daqui a 20 anos será a segunda maior economia à face da terra. O subcontinente asiático alberga um terço da população mundial e conhece alguns dos conflitos internacionais mais complexos e menos estudados, casos da Caxemira, das revoltas maoístas nepalesas, dos conflitos étnico-religiosos internos indianos, do Sri Lanka ou mesmo a rivalidade sino-indiana.

Recentemente o Council for Foreign Relations, um dos mais prestigiados think-tanks norte-americanos, publicou um relatório em que define a zona da Ásia do Sul como prioritária na política externa norte-americana nas próximas décadas. Os indianos, muito embora ainda limitados por inúmeros constrangimentos internos, caso da iletracia e da pobreza em massa, bem como de conflitos religiosos e étnicos, começaram já a alargar os horizontes e assumem-se como empreendedores no xadrez internacional.

No plano económico, basta dizer que 75% dos técnicos e programadores em Sillicon Valley são de origem indiana, ou que posições de topo em multinacionais americanas e europeias (menos, no entanto) são ocupadas sistematicamente por pessoas indianas ou de origem indiana. Há já casos de multinacionais alemãs e inglesas que na falência foram compradas por magnatas indianos e recuperadas.

No plano político, a Índia move-se habilmente e – sem esquecer a sua aspiração utópica de se afirmar como potência global – vai marcando pontos construindo pontes entre o crescente fosso que se estabelece entre os países pequenos em desenvolvimento e as potências ocidentais. Sinal disso é certamente a entente tripartida com o Brasil e a África do Sul, um fórum em que os três países têm já acertado políticas alfandegárias (relativas às batalhas na OMC) com sucesso, obrigando a União Europeia ou os EUA a recuar perante este emergente bloco.

Perante este contexto, como poderia eu perder a oportunidade de ligar o meu interesse pessoal pelas raízes indianas a uma área de estudo que promete? E querendo-me especializar no objecto de estudo regional que é a Ásia do Sul, no domínio científico da Ciência Política e das Relações Internacionais, o que de melhor senão embrenhar-me pessoalmente e directamente na complexidade do objecto a estudar? Vou passar dois anos na Índia, ainda por cima na vibrante capital deste enorme país, na melhor universidade e no melhor departamento de estudos políticos (School of International Studies, Jawaharlal Nehru University) do qual saíram os mais brilhantes governantes e pensadores indianos.

Vou ter cadeiras teóricas de uma perspectiva indiana e vou ter diversas cadeiras opcionais e práticas relativas à especificidade indiana e asiática (p. Ex. Indian Foreign Policy, Indian Political System, Political Economy of South Asia, Indian Global Diaspora, Security in South Asia etc.). Vou comunicar com outros estudantes, investigadores, diplomatas, correspondents e políticos ocidentais que se movem nesta área de estudo e que estão em Nova Deli regularmente. Vou ser exposto à dimensão social da Índia, acompanhando a actualidade nacional diariamente pela comunicação social, comunicando com as pessoas, seja na rua, no campus ou nas embaixadas. Enfim, vou aprender, pelo menos basicamente, uma nova língua e um novo alfabeto, o hindi em devanagárico.

Certamente, espero, que agora me concedem a legitimidade para estar aqui, em Nova Deli.

sexta-feira, 6 de agosto de 2004

Ontem vi

Ontem vi um homem sem pernas que se arrastava pelo centro de uma avenida com a ajuda de uma muleta que era um tronco seco de uma árvore.

Ontem fui acordado às 06:35 por um rapaz que bateu à minha porta do quarto do hotel em que estou, oferecendo-me uma chávena de chá. Recusei e voltei a adormecer.

Vi uma carrinha azul TATA Matador, muito velha, parada e avariada à berma da estrada. O dono tinha espetado um ramito de uma árvore na matrícula, sinalizando assim a avaria.

Pela hora de almoço, passando de carro, vi cerca de 400 crianças, todas vestidas de azul e branco, a saírem da escola. Um único rapaz, assim dos seus 5 anos de idade, vestia gravata. Cuspiu para cima de um gato.

Depois passou por mim um rick-shaw com mais de dez crianças enfiadas lá dentro e as malas todas penduradas atrás. Quando passou por um speedbraker quase que capotou. Mas não capotou.

Também vi ao meu lado, no semáfaro, um Mercedes SLK com vidros fumados e matrícula diplomática. Vislumbrei, no banco de trás, uma grossa mão branca agarrada a uma coxa feminina.

Cruzei-me com um cão preto que deve ter partido a perna a meio e por isso esta tinha voltado a crescer em forma de L. Conseguia correr mas foi apanhado por um cão maior que lhe mordeu violentamente a orelha.

Vi uma rapariga autóctone tão bela e achei por bem só olhar uma vez. Tinha olhos verdes e também só olhou uma vez para mim, sorriu e continuou o seu caminho sem se voltar para trás.

A seguir vi uma vaca que mastigava um saco de plástico enquanto uma costela lhe perfurava o peito, jorrando algum sangue da ferida, bem como um líquido amarelado.

Ontem também me vi a mim, algumas vezes.

Na cantina Toflas

É uma delas, no campus, porque há várias. As cantinas das residências. Onde a comida pode ser deliciosa, porque acima de tudo é um acto social em que todos comem ao longo de longas mesas de madeira e se servem das grandes tigelas de arroz branco e de caris e molhos picantes. Come-se com as mãos, com uma habilidade que o Ocidente há muito desaprendeu, com uma veneração contínua pela comida, amaciada, misturada, amassada, desfiada manualmente. Mãos que depois são lavadas rigorosamente (e não antes) numa bacia em que o cano entupido da bacia faz elevar a água e o ranho e o cuspo e as coisas amarelas e vermelhas e os restos de comida até tudo se espalhar pelo chão e ser arrastado pelos chinelos azuis e brancos para os corredores e os quartos.

Há outras cantinas, dizia. Uma chama-se Toflas. Ninguém sabe bem o porquê deste nome. Tal como a avenida pela qual passei ontem, com o singular nome de August Kranti Marg. Belo nome. Provavelmente um bolchevique do século XIX russo.

A cantina é na vizinhança da JNU Students Union e fica por debaixo da poeirenta Foreign Students Association que vos descrevi anteriormente. Uma grande sala. Uma frente tem diversas aberturas que hipoteticamente poderiamos chamar de janelas. A outra frente é fechada, uma parede que talvez um dia foi branca, mas hoje é comida pela humidade e pelo musgo. Esta parede fica por cima do balcão em que nos entregam a comida, depois de, claro, termos prepaid. Por vezes, certamente, bocadinhos de parede caem e misturam-se com o mixed dal, caril ou chicken tikka.

Todas as restantes paredes estão cobertas por largos cartazes de propaganda política. As pessoas, em especial os alunos acabados de chegar, olham para eles enquanto esperam pela comida. Também eu olho e delicio-me.

The IMPERIALISM of today aggressively seeks to suborn the nation-state to reinforce its policies rather than to allow the state to act on the priorities of the domestic classes and the people. Loss of SOVEREIGNITY of the nation translates directly into loss of sovereignity of the people and their rights. The EROSION of sovereignty is not in economic terms alone, it determines political institutions and democracy and affects people’s rights in public education, health and social security. – SFI

À minha frente, um grupo de 10 miúdos adolescentes no auge da puberdade monopolizam todo o potencial sonoro possível da sala. Há uma escola secundária para os filhos das centenas de funcionários do campus. Certamente estão a gozar o intervalo de almoço e vieram ter à cantina dos grandes para se divertirem. Vestem todos calças azuis e camisas brancas. As golas, não só do lado interior, estão castanhas de sujidade corporal. Mas aposto que tomam banho duas vezes por dia. O líder do grupo, um pequeno rufia, vai contando piadas e imitando a voz dos colegas, os seus gestos ou outra coisa qualquer, desde que faça os outros rir e afirme a sua posição dominante.

If I die today, every drop of my blood will inaugurate the nation great. Indira Gandhi - NSUI

Há um pequeno rapaz que passeia por entre as dezenas de mesas, com um pano na mão. A sua tarefa consiste em levar a loiça suja e passar o pano húmido pelas mesas sujas. Fá-lo com extrema dedicação. Logo que vê alguém levantar-se, corre para a mesa respectiva e leva os restos e passa o pano pela superfície. Ninguém lhe fala. Não comunica. Só quando alguém está ainda a comer e ele se aproxima para levar algum prato já vazio, pede autorização com um grunhido humilde e submisso, correspondido com um leve acenar de cabeça ou simplesmente ignorado. Vejo que olha com os olhos brilhantes para os rapazes barulhentos à volta da mesa à minha frente, que agora trocam cartas Magic. Não se aproxima uma única vez. Mas cada segundo livre que tem é utilizado para lançar os seus olhos brilhantes para aquela mesa alegre e ruidosa.

Reject communism and divisive forces. Reject the alliance between Islamic terrorism and communist betrayal. Support the Israeli-US world alliance. – ABVP

Ao meu lado duas estudantes discutem sobre uma terceira estudante ausente. Vestem jeans, têm as unhas pintadas e o cabelo atado em forma de rabo de cavalo. A cara não esconde a maquilhagem. I hate her. Not for what she does. But I hate her as a person. Enquanto os dedos amassam o arroz. Toca o telemóvel. Ok, let’s have some beers tonight. Is he coming? I heard he has a car. Is he rich? Cool.

When one makes Revolution, one can’t mark time, one must always go forward. The repression of bourgeois state by proletarian state is impossible without a revolution. Lenin – AISF

À minha frente os rapazes saem a correr, empurrando-se mutuamente. O mais pequeno cai estatelado no chão e fica para trás. Não perde um segundo, levanta-se e regressa ao grupo que já vai a sair da porta. Vejo-o a ganhar balanço para tentar empurrar um colega mais forte. Deve ter caído outra vez lá fora, mas desta vez no pó. Este levantar-se-á e cobrirá as paredes e as frases e as pessoas e será difícil distinguir as coisas umas das outras.

quinta-feira, 5 de agosto de 2004

Microchoques culturais (I)

“Hello, this is Tino, my friend from Portugal”
“Hi”
(silêncio)
“So where are you from?”
“I’m from Portugal, but my father is Indian”
“Oh, I see, because you look like Indian only”
(sorrisos)
“Yes, my father is from Goa, but I have always lived abroad”
(gesto vago com a mão)
“Ohhh, Gowa! Very nice.” (os olhos desviam-se do meu olhar) “You have come to study?”
“MA Politics, at SIS.” (contra-ataque) “And you are from where?”
“From where? What do you mean? I am from India only”
(desespero; continuação) “Ok, but you are originally from where in India?”
“I am from Bengal”

Clima

E mais umas linhas de Deli. O clima piorou. Depois de uns três primeiros dias em que me adaptei surpreendentemente bem aos trinta e tal graus centígrados, vieram enfim as monções. Os jornais já preconizavam mais um desastre nacional, com mais uma época de chuvas falhada e mais alguns milhões de indianos na miséria. Aumentou-se o preço da água e fizeram-se campanhas para poupar esse bem precioso, com mil e um conselhos use your bathing water again by washing fruits and vegetables. Os pés delgados do carro com as jantes de diamantes descansam no jacuzzi. Os pés da pequena dona de casa ganharam crostas.

E então veio do céu indiano a rendição divina. No Domingo as nuvens e os deuses hindus aliaram-se e provocaram uma tempestade que inundou todas as ruelas delienses e as lojas dos comerciantes no rés-do-chão, os becos onde as crianças rebolam nuas no pó e até as formosas avenidas dos ricos bairros residenciais onde em média há dois carros à frente de cada entrada.

O dilúvio foi monumental. Pessoas na rua a cantar e a dançar. Homens aos saltos, como crianças, as sandálias azuis e brancas pisando a terra que bebe ardentemente. As mulheres, separadas, claro, também dançam e cantam – mais timidamente no entanto - vestindo saris e punjabis de cores berrantes que com cada gota se colam mais ao corpo fino e formoso, pele morena que transparece ocasionalmente.

Depois das gotas do tamanho de nozes terem inundado a planície, volta o sol, e fiquei a conhecer um dos estados climáticos mais terríveis. A temperatura mantém-se nos 35 ou 38ºC, mas agora é o sol que bebe, dando lugar a uma evaporação em massa. A humidade é estonteante, tanta que se poderia confundir com neblina matinal. É difícil respirar. A roupa cola-se ao corpo. E o sol, incansável, reivindica o que as nuvens ofereceram à terra.

É este o clima actual em Deli. Agradável enquanto a refrescante chuva inunda a terra, e infernal nos períodos imediatos, quando o sol volta ao trabalho. Embora continue e movimentar-me em calças compridas e botas Timberland, devo dizer que me tenho adaptado bastante bem. É tudo uma questão de hábito e assimilação.

quarta-feira, 4 de agosto de 2004

A pequena dona de casa

Subimos por uma íngreme escada. Na Índia, nas cidades, há sempre escadas em todo o lado. Só os hóteis de luxo têm rampas de acesso para as brilhantes jantes às vezes encrustadas de diamantes, e, depois de o homem com o turbante e pena abrir a porta, os delgados pés só precisam de caminhar para o elevador.

Aqui, em Karel Bagh, temos que subir uma escada íngreme em que cada degrau tem a sua particularidade, seja uma mancha vermelha da pasta que os indianos mastigam, seja um montinho de esterco de vaca, seja uma ratazana ou seja só um recém-nascido com barriga insuflada.

Recebe-nos um senhor escuro (isto do tom da pele tem uma importância extrema aqui... ou em todo o lado?), de boxer-shorts e camisa interior, como a maioria dos homens que nos atendem nesta procura de habitação. Em baixo, na rua, continuam os sons das trotinetes, do vendedor de bebidas, de amendoins ou de carne fresca de galinha que ainda ontem foi injectada com 150 miligramas de proteínas.

Vemos o quarto e não interessa, porque o Suhail já está em animada conversa com o senhor, e eu só percebo que ele já anda a negociar o preço, embora eu nem lhe tenha dito ainda que nem que me pagassem iria ficar ali. Viro o meu olhar à volta. É um andar com imensas portas, todas dando para um pequeno mundo. De um dos quartos, o odor intenso a pó de pimenta a fritar numa frigideira. Quase que não consigo respirar. Da janela vem uma salvadora brisa, morna, directamente do monte de esterco em que os cães rebolam e procuram restos.

Oiço gritos. Crianças, provavelmente os filhos. O quarto ao lado tem uma cama, um sofá e uma televisão, sintonizada no Cartoon Network que está a dar “The Mask”, aquela grotesca figura verde, a falar fluentemente hindi.

Estão três crianças. De uma só vejo os pés, está deitada de costas para mim, encoberta pela parede. O outro é um pequerrucho, tipo três anos, mas já com aquele olhar de quem diz que se vai safar muito bem em Nova Deli. Depois, uma menina, aí dos seus seis anos. Cinco, talvez. Só passados uns minutos reparo que toda a actividade dela está condicionada pela minha presença, um ser estranho, mas certamente cativante pelo claro tom de pele, pela roupa limpa que visto e pelos sapatos grandes e com linhas amarelas que atraem qualquer olhar infantil.
Começa por trazer maternalmente a comida aos irmãos mais novos. O mais novo mete a mão à papa e ela dá-lhe prontamente um estalo na mão. Começa a chorar. Ignora-o e, quando olho de volta, já está a varrer freneticamente o chão, várias vezes seguidas, com aquela infantil preocupação de teatralizar um movimento que normalmente é tão natural. Varre três vezes os poucos metros quadrados. O mais novo continua aos berros. Vira-se e com a autoridade tão típica de um adulto, retira o telecomando ao mais velho e muda de canal, simplesmente vai mudando de canal, até que o rapaz reage e protesta, já em tom choroso. Satisfeita a sua necessidade de autoridade maternal, passa outra vez pelo programa Cartoon Network, mas muda outra vez, e só com o último berro do rapaz é que deixa A Mascára falar finalmente hindi.

Os gestos e as acções da menina são tão calculados como o de um actor profissional num teatro. Mas o mais belo é que a sua representação é feita com tanta entrega e com tanta dedicação a uma imagem de mãe com que foi confrontada desde os primeiros dias de nascença. Obviamente que isso também pode ser visto como um condicionamento à liberdade e desenvolvimento pessoal, mas isso, na Índia, pouco importa. O que conta, afinal, é posicionamento de cada um em relação ao outro, como no início de um baile renascentista, em que cada par se coloca numa complexa hierarquia e representa, exprime e reivindica constantemente o seu papel com toda a entrega possível – condição vital para a sua manutenção.

domingo, 1 de agosto de 2004

Room to let?

Duvido que haja melhor maneira de conhecer a cidade de Nova Deli, as suas tradições e as suas pessoas, do que galgando de mota as ruelas, becos e esgotos desta metrópole de 12 milhões de habitantes, à procura de um quarto para aluguer.

Beep beep. Pomp pomp. Buzinas à esquerda, à direita, por cima e por baixo. Nem uma impaciência ou um palavrão por parte dos condutores. A hierarquia está mais do que estabelecida. O maior passa primeiro. Os outros que se amanhem (talvez no cemitério).

Primeiro dilema ocidental. Como explicar educadamente e sem ferir susceptibilidades proto-nacionalistas indianas, que eu prefiro alugar um quarto ou um apartamento fora do campus e não usufruir from our nice hostels where you can find sooooo many new people and you will luuuuse this by being outside, do yu have something aginstd our conditions? You should dthink bedder. Chuuuse as you like.

Valem-me (ou não, hei-de descobrir em breve) as minhas anteriores experiências pelo subcontinente indiano. Assim, como legitimação para não ficar enclausurado num cubículo partilhado com outro colega escolhido à sorte, argumento que vou ter constantemente amigos do estrangeiro que me quererão visitar (vejam se não me deixam ficar mal visto), o facto de querer cozinhar comida portuguesa de vez em quando e que vou precisar de ligação telefónica para aceder à Internet. No fim, depois de alguns momentos de tensão (lembrem-se, este grupo com que ando a lidar é composto maioritariamente por ferrenhos marxistas-leninistas), normalmente acabam por me dar razão, alguns com aquele ar de complacência para o coitadinho-do-ocidental que nos veio colonizar há 500 anos mas agora até dos mosquitos tem medo.

Bem, as viagens ao fim da tarde têm sido agradáveis, dizia eu, especialmente para conhecer a cidade, ou pelo menos as redondezas do campus, porque não quero viver demasiadamente longe. Primeiro, ontem, Katwaria Sarai, um bairro enlameado (de momento pó) onde as ruelas têm em média três metros de largura, e cerca de 4 estabelecimentos comerciais em cada rés do chão B. As primeiras visitas foram aterradoras, com pequenos cubículos onde estudantes se amontoavam para dormir, ar abafado, casas de banho com canos de esgoto onde só mais uma banana (ou outra coisa qualquer) bastaria para entupir o sistema de saneamento do bairro inteiro.

Fiquei mais descansado em Bihr Sarai. Aqui vimos um quarto simpático, com casa-de-banho e cozinha anexa (tipo studio em Paris), grande janela (sim, vimos quartos sem janela) e frente a um terraço simpático que dá para uma ruela calma. Mas era um pouco caro. Toda esta procura não é brincadeira. Há que abordar as pessoas com imenso tacto, e o Suhail tem sido excelente ao acompanhar-me. Há que ter o cuidado de não lidar com aldrabões e gatunos, e tentar negociar quando todos cheiram a milhas que eu sou estrangeiro, de nada valendo a minha camisa para dentro das calças.

Ontem negociámos e conversámos com uma velha que não tinha dentes, com um migrante do Querala que fez logo amizade com o Suhail (os dois da mesma cidade, e por isso quase que fui obrigado a ficar com uma espelunca), com um comerciante de farinhas que afugentava galinhas enquanto falava connosco, com um grupo de seis jovens sob efeito de ópio que jogavam às cartas no topo de um prédio, com um lavandeiro de roupa que passava camisas com o seu ferro aquecido a carvão, com um grupo de três barrigudos terratenentes (proprietários de prédios neste caso) que recomendaram uma agência imobiliária ao Suhail, o que, tendo em conta a resposta negativa de inclinação marxista que este deu “we do not go for that because we are against this type of exploitation”, deu logo azo a uma longa discussão política da qual eu obviamente percebi peanuts.

Têm que perceber que cada contacto destes chegava a demorar entre 20 e 30 minutos, às vezes só para perceber que não havia quarto nenhum nas redondezas. A comunicação à indiana, já por si pacientemente lenta, é abrandada (para não dizer interrompida) pelos parcos conhecimentos de hindi do Suhail que só há três anos aqui estuda, mas que mesmo assim tem sido incansavelmente amável.

Hoje encontrei já uns estudantes estrangeiros e soube logo de lugares bons bem como de estudantes que procuram room-mates. Ainda vimos o quarto de um austríaco, alto e loiro, claro, mas não tinha ventilação alguma (o quarto). Ao lado, um quarto no primeiro andar com uma família simples indiana, mas tão atenciosa e amorosa que me custou imenso a dizer que iria dar uma resposta amanhã (porque não existe um não definitivo na Índia). Se o quarto fosse maior, tivesse um acesso que não o de lama e vacas e esterco e lixo, talvez pensasse duas vezes.

Veremos o que o dia de Sábado nos traz em termos de habitação em Nova Deli. (texto escrito na sexta-feira)