segunda-feira, 29 de novembro de 2004

Redescobrindo as raízes (João Colimão)

Este é o texto do meu amigo João Colimão, de Lisboa, de origem damanense (Damão, e não Damaia, para os mais distraídos). Nunca esteve na Índia, mas parte hoje à descoberta dela. À descoberta das raízes dele. E talvez das minhas também. Fica o testemunho que acho que espelha bem o que eu também senti das primeiras vezes que cá vinha (e ainda sinto um pouco).

Amigos

Tenho estado atarefado com a minha Viagem ao mundo de Bhárata. Aqui entretido com a roupa e prendas a levar..., liguei o computador e a música... música de cítaras e tablas indianas.

Não sei por que magia, mas todas as exigências do mundo ocidental pareceram ridiculas mesmo ao som de uma citara... tenho mesmo certeza que não é ao acaso... como nada neste mundo é ao acaso.

Poderia ir sem uma única mala, e sinto-me mal de levá-la carregada de coisas inúteis...mas sei q as coisas que levo foram enviadas com amor para entes muito quistos e serão recebidas com mais amor ainda... e isso vale tudo!

Sinto que vou ser recebido como se de um principe se tratasse. Para quem não sabe, a minha familia paterna estava na India havia poucas centenas de anos. De origem portuguesa, decidiram abandonar a India quando Portugal "deixou de ser Goa, Damão e Diu." Em 1961, meu pai vinha com seus 10 irmãos e com o meu avô numa viagem rumo a Portugal que conheciam dos manuais de ensino primário.

Muita familia ficou, alguns desapareceram entretanto, mas tudo está no mesmo sitio desde essa data... em casa de minha bisavó, estão as mesmas talhas de arroz, as mesmas talhas de feijão, a mesmos quadros com o casamento de meus avós... as mesmas orações, rezadas por muita gente desde esse dia.

Eu, em Damão, não serei o João, serei para eles o filho do Bézinho, mas sinto que serei recebido com a mesma felicidade de quem recebe um filho! E eles já me esperam!

Damão é uma aldeia piscatória com pouca gente, onde muitos falam até hoje o português... mesmo as crianças (é a lingua de casa). E os portugueses são convidados a casa por qualquer pessoa, mesmo desconhecida... nas casas mais pobres, senão houver chá (boas vindas indianas) oferecem uma água quente sem açucar! Imaginem...o que Portugal perdeu.

Amanhã vou partir. Sinto que vou estar num local já conhecido, mas que num estado delirante vou viver estes dias como que descobrindo aquele imenso território...

Parece que sinto já os cheiros, as cores, as gentes, o incenso, a comida, enfim... a India.

Interrompi esta preparação e sentei-me... realmente a preparação que necessito situa-se num plano penso eu que mais profundo.

O que vou encontrar é-me desconhecido mas chama-me como a luz, como o oxigénio.

Ali parece estar o bem, a verdade, a vida... numa máxima religiosa..

Quero encontrar-me na India e sei que estou lá.

Gostaria de ter espaço para sentir aquela "Land intoxicated with God", pois não consinto conhecer uma civilização sem respirá-la na sua mais intima particula.

Quero agradecer a todos que têm semeado em mim esta paixão!

Espero poder escrever-vos ao longo destes 15 dias, e se não der prometo passar, logo que chegar, as minhas sensações nesta viagem.

Sinto que vou trazer mais bagagem do que imagino... bens que ninguém verá.. que escapam ao controle das alfandegas, mas que ocuparão todo o espaço em que existo na Verdade.

Saudações

Vosso amigo

João

domingo, 28 de novembro de 2004

Voar para a Índia (ou Kautilya)

Na agência de viagens Tagus (www.viagenstagus.pt) há já a partir de Janeiro 2005 reservas para Mumbai (Bombaim) e Nova Deli a 450 Euros, ida e volta (mais taxas, cerca de 150 Euros). Normalmente, os preços rondam os 600 a 700 Euros para a Índia, tarifa especial para jovens. Na Índia já sabem que tudo é barato. E há quem vos dê tecto e mosquiteiro. E uma visita guiada de borla a Nova Deli ou Goa (choose one only). Volto ao estudo: "Kautilya's Arthasastra", obra escrita algures entre o séc. V e III a.C. no Norte da Índia. Kautilya, também conhecido por Canakya ou Visnugupta, compilou em 15 volumes as bases fundamentais para governar a administração, a economia, a sociedade e as forças armadas de um estado, para além de traçar a política externa mais apropriada. O homem vai ao detalhe de precisar se os muros fortificados da cidade devem ser em madeira ou em pedra e a composição química dos venenos mais poderosos a serem utilizados pelos espiões para assassinar reis rivais e inimigos. É conhecido como "Maquiavel asiático".

sexta-feira, 26 de novembro de 2004

A vizinha

Estou sentado no terraço a ler o jornal. Do apartamento dos vizinhos ecoa uma música rap/pop norte-americana, num volume exageradamente alto, acho que é um cantor chamado Nelly. Ignoro e concentro-me na leitura do Times of India.

No matter what I do
All I think about is you
Even when I’m with my Boo
Boy, you know I’m crazy over you

Vejo um vulto subir ao telhado dos vizinhos. Não levanto os olhos do jornal porque penso que é a senhora vizinha que vai estender a roupa. O vulto para. Olho para cima. Não é o macaco. É a filha da vizinha, tem uns 19 anos e trabalha como assistente da Air France no aeroporto internacional de Nova Deli. Acena-me repetidamente e com um grande sorriso mais descarado do que envergonhado, mas um pouco dos dois. Aceno de volta e continuo a ler. Ela continua no mesmo sítio e após uns 10 minutos cedo e retiro-me para o meu quarto.

No matter what I do
All I think about is you
Even when I’m with my Boo
Boy, you know I’m crazy over you

Library (II)

Sete andares. Dizem que o sétimo está assombrado desde que uma mulher lá se suicidou. Aliás, há muitas superstições neste país. No campus, numa das zonas mais isoladas na floresta, por onde passa a estrada que leva a uma das saídas menos utilizadas, dizem que nas noites de lua cheia aparece uma mulher. Uma mulher nua, ou de sari branco (depende se é rapaz ou rapariga a contar). Dizem que vem falar às pessoas oferecendo-lhes um cozinhado indiano que se chama "butter chicken". Se o rapaz aceitar será levado para os arbustos onde ela o violará.

Na cave estão os livros mais ligados à minha área de estudo e às ciências sociais e humanas em geral. É uma longa cave – a lembrar as caves de vinho dos restaurantes de Sobral de Monte Agraço – com dois andares. Como não há ar condicionado as narinas são imediatamente invadidas pelo cheiro a papel em decomposição, mofo e humidade.

Penetro pelos apertados corredores entre as estantes em que os livros estão amontoados, deitados, abandonados sem ordem perceptível. Muitas páginas encontram-se rasgadas, muitos livros deitados no chão, abertos, as páginas a serem levadas pelas formigas. Todo este cenário, aliado à imensa rivalidade entre os estudantes universitários na Índia (a competição é brutal), faz com que muitos livros sejam escondidos por alunos em cantinhos de prateleira, ou para os encontrarem ao longo do ano lectivo, ou simplesmente – depois de os terem lido – para nenhum potencial rival poder ler a mesma obra indicada pelo professor.

Há também a prática de rasgar páginas inteiras dos livros e levar para casa. Ou porque o estudante é pobre e não tem dinheiro para fotocopiar, ou pela mesma razão acima indicada – impedindo a partilha da rica informação com outros colegas. Escusado lembrar que o interior da maioria dos livros está mais decorada do que muitas árvores de natal na Europa: sublinha-se e anota-se a caneta e a várias cores a torto e direito. Nos espaços em branco – geralmente primeiras e últimas páginas – encontram-se planos de dissertação inteiros escritos à mão.

Em média, para encontrar um livro cuja referência encontrei na base de dados informatizada, demoro meia até uma hora. Mais de metade não os encontro depois desse tempo todo. Quando pedimos ajuda a um dos bibliotecários que por lá andam a vadiar, ou fingem que não percebem ou indicam-nos vagamente uma prateleira e mandam-nos procurar.

Mas esta biblioteca é a mais interessante que jamais vive no que concerne a originalidade das obras, a heterogeneidade e a sua antiguidade. Há simplesmente de tudo. Aquilo é uma pequena Índia.

"Bahrein Chamber of Commerce and Industry, Directory 1995-1996" está numa das estantes. Um dia foi brilhante, mas capa amarelecida espelha várias décadas de peso. Mas não posso deixar de começar com a literatura socialista que domina todas as estantes. Só a colecção "Karl Marx & Friederich Engels – Collected Works" conta com impressionantes e largos 39 volumes. Ao lado está um gajo chamado Plekhanov.

Presumo que menos de 20% da população indiana saiba onde fica o Butão, mas algum indiano lembrou-se de escrever "Bhutan 2002: A vision of Peace, Prosperity and Hope". Lindo título. Mais adiante está Stalin com "Problems of Leninism" e a original obra "British Trotskyism". Claro que a Caxemira tinha que marcar presença em peso. E que peso: "Documents on Kashmir Problem" em 17 volumes, pensam que com a quantidade conseguem construir a verdade.

E, de repente, do nada, emerge num cantinho de uma prateleira "Tratado da Cidade de Portalegre" de Diogo Pereira Sotto Maior, Imprensa Nacional da Casa da Moeda, código V,542'J124M4 e que deu entrada na biblioteca a 9 de Outubro de 1988. Desde então ninguém lhe tocou, o cartão de empréstimo está em branco. Enquanto que a presença portuguesa na JNU se resume a isso (e a mim, talvez), o Brasil marca presença em força com várias obras de Gilberto Freyre e, claro, "The Brazilian Communist Party". Logo ao lado ainda se dá uns centímetros de prateleira indiana ao romeno ditador "Nicolae Ceaucescu" em 15 volumes.

A par de "With Gandhi in Ceylon" e "New Perceptions on Gandhi" (este deixa adivinhar um autor nacionalista hindu) está também "Is India going Islamic" de Baljit Rai, em que alguém (talvez o próprio autor) se esqueceu de adicionar o ponto de interrogação.

A obra mais preciosa que encontrei, no entanto, caiu à minha frente quando vasculhava entre a secção "Indian States" à procura de algo sobre Goa. "Bibliography of Goa and the Portuguese in India" sorriu-me o título de maneira pouco convidativa. Entrou na biblioteca a 30 de Julho de 1982 e desde então também ninguém lhe tocou. Mas lá dentro havia um nome que me tocou a mim.

Xavier, Carlos (1914- )
"Catálogo dos religiosos que professaram no Convento de S. Domingos de Goa nos anos de 1774-17796 e 1814-1834"

O meu avô faleceu em 1987 mas aqui estou eu, a redescobrir as pisadas que ele me deixou, na Índia.

terça-feira, 23 de novembro de 2004

Talvez escreva sobre isso (ou No banco de trás)

Estavam lá muitos, talvez uns 5000. Camelos. Turistas eram mais. Foi um fim-de-semana bem passado, mas um tanto cansativo. Subi a duas montanhas em tempo recorde. Lá em cima um pequeno templo e dois padres rodeados de macacos. Há um macaco que procura piolhos entre os brancos pêlos de peito do padre. Talvez com sucesso.

Camelos são interessantes e exóticos, mas desde que em 2002 cavalguei durante dois dias pelo deserto Thar na Índia e fiquei com o rabo esfolado que desconfio do conceito "Wüstenschiff" (navio do deserto). E são feios e podem morder. Mas havia lá mesmo muitos, espalhados pelas dunas, de várias cores e tamanhos e decorados para turista ver. Que giro.

Gostei de ver cavalos. Acho que os cavalos ficam melhor na Índia. Os camelos são animais parvos e presunçosos e têm mais a ver com o deserto por excelência, lá para o Médio Oriente e as Arábias. Aqui na Índia o cavalo faz mais sentido. Porque a Índia esteve por vários séculos sob domínio mogul, dinastias persas e turqumenos e demais povos da estepe da Ásia Central. É o cavalo muçulmanos e árabe que na arte sacra e militar indiana aparece oposto ao elefante hindu e indiano indígena. O camelo no meio dos dois fica ridículo. Os cavalos que vi, na feira paralela à dos camelos, eram lindos. Verdadeiros animais.

Portanto, excluindo a eventual necessidade de os habitantes do Rajastão precisarem mesmo dos camelos para sobreviver no dia-a-dia (remota, mas pertinente porque vi uns camelos arrastar carroças atrás e dizem que as camelas dão leite), acho que é tudo uma manobra do Department of Tourism, Government of India, para atrair aqueles grupos de turistas brancos de chinelo e meia branca, perdida por um segundo, logo reconfortada quando vê a bandeirinha suiça do guia destoar da multidão um pouco mais à frente.

Mas no fundo também há um lago que é bastante importante na mitologia hindu. Pushkar came into existance when Lord Brahma, the Creator, dropped his lotus flower (pushpa) to earth from his hand (kar) to kill a demon. At the three spots where the petals landed, water magically appeared in the midst of the desert to form three small blue lakes, and it was on the banks of the largest of these that Brahma subsequently convened a gathering of some 900 000 celestial beings – the entire Hindu pantheon. Supostamente há 500 templos à volta. Só vi uns 10 ou 15. O lago propriamente dito é sujo e tem peixes muito grandes lá dentro. Vi umas pessoas a banharem-se e vi muitos estrangeiros.

Acho aliás que começa a deixar de fazer sentido este texto. O que mais me impressionou não foi o misticismo mitológico nem a cambada de camelos. Foi a estranguladora estrangeirada esgueirante a cada esquina. Passei longas horas bebericando um sumo de manga e observando as multidões. Talvez escreva sobre isso.

PS: Na volta testemunhei a mais louca viagem de carro de sempre (menos aquela em que me apontaram uma pistola à testa, em Goa). Os 400 quilómetros foram diabólicos (mais de 9 horas), com a morte a espreitar a cada cem metros. Estradas, pó, caminhos, auto-estradas, rochas, florestas, ribeiras, ruelas. Camiões à frente, ao lado e atrás. Trânsito de uma hora para entrar em Deli às três da manhã. Os franceses histéricos (todos sem carta de condução) aos berros mandões e arrogantes com o humilde e experiente condutor indiano. E eu, claustrofobicamente enlausurado no meu cantinho do banco de trás do jeep diplomático, a jurar que nunca me iria voltar a dar com europeus. Talvez escreva sobre isso.

sábado, 20 de novembro de 2004

Pushkar

Vou sair daqui a uma meia hora - she said she would come and pick us up at 03:45 am - para o Rajastão. É um estado a sul de Deli, conhecido por ser a terra dos marajás que encantam qualquer ocidental turista de classe média, consumista e interessadamente desinteressado. Vamos no carro da Flora, no jeep de matrícula diplomática. Vou com ela e mais dois franceses. Que seca.

Pushkar é uma pequena vila-oásis no meio do deserto do Rajastão. Mas neste fim-de-semana, uma vez por ano, acolhe o mercado de camelos, supostamente um dos maiores no mundo inteiro. A pequena vila acolhe centenas de milhares de mercadores, compradores, feirantes e turistas. E há quase 100 000 camelos que invadem as ruelas e os campos desérticos à volta. Pelo menos é isto o que dizem os sites e guias turísticos que consultei.

Deixo-vos com uma fotografia e prometo comprar um camelo a todos os que deixarem um comentário no meu blog nesta próxima semana.

Library (I)

Uma das minhas experiências mais interessantes no campus da universidade foi descobrir a biblioteca. A JNU library, de fora, parece um grande mealheiro, talvez guardando saberes que ainda não encontrei. É um edifício todo em pedra de tijolo e muito alto, e situado no ponto mais alto de todo o terreno universitário, ali a observar tudo à volta, o saber omnipresente, lembrando-nos da sua existência e da necessidade de ser conhecido.

São mais de sete andares, ligados por um elevador que treme bastante e um dia destes deixará de funcionar ou talvez irá sofrer um acidente e morrerão algumas pessoas. Mas voltemos a entrar. A entrada do edifício, como em toda a Índia e acho que nos Estados Unidos também, tem uns degraus que nos lembram que estamos subir para um templo, a elevar-nos para um local sagrado. Mas parece que este ano se lembraram dos estudantes deficientes (há muitos, crápulas, rastejam pelo chão porque muitas vezes não têm dinheiro para uma cadeira de rodas). Porque há uma pequena rampa de acesso.

Antes de se entrar, duas barragens. A primeira obriga-nos a deixar as nossas malas e objectos volumosos. Mas, em vez de nos darem uma ficha em troca, há só uma mulher – sempre a mesma – sentada numa cadeirinha, a observar tudo e todos. O problema é que parece que está em transe, olha para o vazio, no seu colete azul, e nunca abre a boca. Não recebe malas, não as devolve – são as pessoas que as põem nos cubículos do armário em madeira e as retiram à saída. Simplesmente, ela olha para um lugar incerto. Nunca foi roubado nada. Nunca ninguém levou uma mala que não lhe pertencia.

A segunda barragem é composta por dois velhinhos sentados numa escrivaninha de madeira a apodrecer. Estes, ao contrário da mulher, estão sempre a conversar um com o outro, a escrever alguma coisa num caderno poeirento ou a beber chá. É proibido entrar com livros, mesmo que de propriedade pessoal. Eles supostamente controlam isso. Nunca olham, nunca perguntam, nunca mandam ninguém parar. Mas no primeiro dia em que com a minha esperteza saloia pensei poder enganar os supranaturais e milenares poderes indianos, fui apanhado. O meu livro, fino e ensanduichado por entre dois cadernos, foi prontamente identificado e mandaram-me parar.

Lá dentro, basicamente, é tudo igual a todas as outras bibliotecas universitárias do mundo. Alguns computadores para pesquisa – para as partes da biblioteca já informatizadas. Uma sala com revistas, jornais, publicações periódicas nacionais e internacionais. Várias salas de leituras, as mais tradicionais com ventoinhas e bancos e cadeiras em madeira dura, e as mais modernas com um ar-condicionado ensurdecedor e que gela até a alma estudiosa mais fervorosa. Nesta sala, a maioria dos estudantes – a qualquer hora do dia – dorme. Com a cabeça apoiada nos livros supostamente abertos para leitura, descansam. O que já me levou a teorizar sobre a possibilidade de no sistema de ar condicionado haver um produto sonífero. É bem possível.

Nessa sala está também um colega meu de turma. Sempre. A qualquer dia da semana, a a qualquer hora do dia, vejo-o sempre sentado no mesmo local, rodeado de livros, na mesma posição, lendo. Chama-se Khivraj e vem do Rajastão. Tem óculos de armadura dourada e identifiquei-o imediatamente como o marrão clássico de qualquer filme de categoria B de Hollywood. Descobri no entanto, recentemente, que ele até é capaz de dizer umas coisas interessantes. Talvez eu deva repensar a minha estratégia de categorizar as pessoas a priori – e dar-lhes uma hipótese. Mas isso é tão cansativo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2004

Em busca do passaporte português (Voz do Oriente)

São 2:40 em Nova Deli. Ao navegar pela Internet descobri um texto que escrevi há um ou dois ano na revista Voz do Oriente. Sinto que o devo partilhar, embora se diriga mais aos goeses. Sinto que o momento se aproxima. Sinto que estou com sono.

Todos o sabemos e o repetimos. Goa é bela. Um território único no mundo, em que o Oriente recebeu e bebeu do Ocidente. Uma identidade e uma língua tão singular. Aquelas frescas praias banhadas pelo Índico. A verde vegetação que cobre o interior, escondendo pequenas aldeias com as suas milenares comunidades. Um povo sossegado em que coexistem três das maiores religiões do mundo. Esquinas, paredes e largos que espelham séculos de história. O nobre orgulho dos palacetes indo-portugueses. A fluidez das relações sociais, a harmonia quasi-natural entre o humilde lavandeiro e o abastado bhatkar. O silêncio.

Ao lermos estas linhas, sabemos que estamos a enganar-nos. Estamos a revolver um velho baú que já passou da cabeça daqueles que ainda conheceram essa Goa para a mente dos mais jovens de origem goesa que nunca lá viveram. Sempre preferimos fugir à confrontação com a realidade, tão diferente daquilo descrito no primeiro parágrafo.

A questão é que já não se trata de preferir confrontar-se ou não. Veio o momento da confrontação. Não podemos ignorar a realidade da Goa de hoje. Houve mudança, movimento, barulho. Para bem ou para mal, isso não está em questão. Importante é aliar-se a este movimento, porque ao negá-lo estamos a afastar-nos e a enclausurar-nos. Temos de perceber que a Goa de hoje é diferente e que se quisermos continuar a viver e a respirar a nossa Goa, temos de lidar com essa diferença.

Todos o sabemos, no fundo, e todos o negamos. Goa está diferente. Um território que vai mantendo a sua especificidade e a sua beleza, mas que se abre lentamente ao exterior. A cristalização do que é do Oriente e a dificuldade de lidar com o passado ocidental. O fim das aias e criadas que educam os meninos. Uma língua que é espezinhada pelo inglês, pelo marata e pelo hindi, muitas vezes pelos próprios goeses. Uma identidade crescentemente minoritária no seu próprio espaço. Praias polvilhadas de pedintes e dum cheiro nauseabundo não só a lixo como a toxicodependência e turismo sexual. A progressiva urbanização, a ocupação de terrenos das comunidades por barracas e as aldeias que envelhecem dia a dia. Uma vida agitada, em que já não há tempo para ladainhas ou zatras à beira da estrada, mas em que a preocupação é quase a mesma de um lisboeta ou de um nova-iorquino: trabalhar, produzir e maximizar. Em que sobre a cara do rapaz-paquete goês adormecido à sombra de uma árvore passa a veloz sombra de uma moderna carrinha dos serviços postais expresso.

O fantasma do fundamentalismo hindu que tem vergonha dos cristãos e muçulmanos. A facilidade com que se arrancam pedras, árvores e edifícios históricos para dar lugar a reluzentes centros comerciais. A ruína dos palacetes, em que resistem os velhos acamados morrendo de saudades de um tempo que vai distante. Os modernos apartamentos em que os jovens no seu quarto com televisão sintonizada na MTV India comunicam virtualmente, dominando o espaço e o tempo. A economização das relações sociais, em que o lavandeiro esquece a família que sempre serviu e em que o bhatkar usa e abusa da sua posição, ignorando deveres e responsabilidades. O barulho.

À primeira vista, um discurso saudosista e nostálgico, não tão diferente daquilo que ouvimos da boca de qualquer goês emigrado já há muito. Talvez o seja, também. Mas não podemos ficar por aqui. Repito, a estratégia é de confrontação. Uma confrontação de imagem e percepções, daquilo que costumamos ver nostalgicamente e daquilo que devemos ver realmente.

Se a Goa de hoje nos oferece um panorama desolador, ou predominantemente negativo, é por nossa culpa. Porque não pudemos abdicar da nossa Goa nostálgica, bela e formosa, mas ultrapassada pela velocidade dos ventos globais que sopram há já muitos anos. Temos de dar um passo atrás e recuperar a distância que nos separa da Goa de hoje. Não combater a mudança que tem transformado não só Goa como o mundo inteiro, mas aliar-nos a ela. Temos de conhecer e domar o movimento. Estar à vontade com ele. Só então, quando formos capazes de lidar com a realidade, pondo parcialmente de lado a mítica Goa que resiste nos nossos empoeirados baús mentais, só então poderemos partir em busca de uma Goa melhor.

Porque, por enquanto, a única busca é a dos goeses que perderam essa esperança de uma vida melhor e que, ofuscados pelo Ocidente brilhante, compõem as filas de espera para o mágico passaporte português.

sábado, 13 de novembro de 2004

Correspondente em Nova Deli

Já tinha escrito umas cartas de leitor no Público etc., e um artigo de análise para o Independente em Maio passado, mas hoje dei mais um passo na concretização da minha fantasia infantil em ser jornalista, que, no entanto, provavelmente nunca se realizará por completo.

Podem encontrar na edição de hoje do Expresso (edição 1672) um artigo meu no caderno Economia & Internacional, com o título "Índia e União Europeia estabelecem parceria estratégica". Claro que amputaram, violaram e baralharam o meu texto na boa tradição editorial de qualquer jornal, mas ficou aceitável, espero.

Para o artigo entrevistei o Embaixador de Portugal aqui na Índia, o director do Departamento de Estudos Europeus da minha universidade e o "Embaixador" da União Europeia para a Ásia do Sul (por acaso um simpático português).

Passo assim a ser o primeiro correspondente de um jornal português na Índia. Já começei a andar de bloco de notas na mão, gravador no bolso e perguntas na cabeça. Ainda não tenho um palito no canto da boca, mas já fui lanchar a uma conferência de imprensa e soube bem.

Divali

Ontem foi feriado na Índia. É o Divali, uma celebração hindu vulgarmente conhecido como festival das luzes. Comemora-se a mitológica vitória do deus Hanuman (deus-macaco) que com a ajuda de Kali (a deusa da morte, encarnação de Durga, deusa-mãe) e um vasto exército de símios desceu para Sul e, supostamente na ilha de Ceilão, derrotou Ravan, o deus-demónio.

Por toda a Índia o festival tem características diferentes. Mas não vou embarcar numa descrição monográfica ocidental desta comemoração, faz mais sentido inserirem "diwali" no google.com

A tal Flora, a filha de diplomata francês que já esteve em mais países do que o Papa, convidou-me a mim, ao Chacate e ao JB (Jean-Baptiste) para passarmos a festividade em conjunto com uma família amiga dela (é curioso como aos 22 anos já podemos ter "famílias amigas"). Ele era diplomata francês, e francês, e ela era diplomata francesa, e indiana. Receberam-nos à porta da luxuosa casa no luxuoso bairro com um grande sorriso e um bienvenus que não me convenceu.

O interior da casa é tal como o imaginam, casa de diplomatas, com peças museológicas de alto valor de todos os continentes, de todas as principais civilizações e com a óbvia preocupação de um correcto equilíbrio entre o histórico vaso inca e o contemporâneo quadro russo.

As crianças brancas correm pela casa, agitadas e deslocadas. Duas empregadas indianas – muito escuras – tiram-nos os casacos e desaparecem na clara cozinha. E começa o martírio das introduções, explicações, conversações, diplomacias, acrobacias no imenso vácuo indiano – e eles não se apercebem da futilidade.

O Divali é a festa das luzes porque se celebra a vitória do divino sobre o demoníaco, a vitória do Bem sobre o Mal, o rachar silencioso da escuridão perante o penetrante brilho da luz. Oferecem-se presentes, assim como no nosso Natal, mas em especial doces e a Índia é um universo de doçuras e açucares. Nas lojas os indianos empurram-se para chegar ao balcão antes que os vastos tabuleiros com guloseimas sejam engolidos pelos milhões de estômagos famintos ou saturados.

Assim pelas nove uma das branquinhas interrompe a conversa que estou a gerir com um chefe de departamento para o desenvolvimento da EU na Índia e pega-me na mão: come and see the firecrackers.

Para afugentar os demónios não só se iluminam as casas, as ruas e os corredores - velas por todo o lado - como tem lugar um fogo de artifício e um festival de foguetes. Quanto mais ruidosos e luminosos melhor. Nas semanas antes vendem-se foguetes por todo o lado. Pequenos, médios, grandes e gigantes, dependendo da capacidade de compra.

Saio para a rua. Estalos, bombas, canhões, fumo. Um amigo iraniano contou-me que há uns anos chegou à Índia por esta altura e que ficou fechado em casa por três dias, porque achava que tinha começado uma guerra civil.

Cada metro quadrado é ocupado por um mestre artilheiro, de meninos com 3 anos até velhos com 78, todos com fósforo ou vela na mão a iniciar uma variedade de utensílios pirotécnicos. Como o bairro é rico, há uma rivalidade novo-rica.

Qual passagem de ano na Praça do Comércio ou Parque das Nações. Num caos envolto de espessa neblina que em segundos invade a cidade rebenta um festival pirotécnico ensurdecedor, foguetes que sobem várias dezenas de metros capazes de abater o mais avançado jacto norte-americano. Milhões de foguetes e bombinhas em poucos segundos. Há bandas que passeiam pelas ruas e que preenchem os poucos segundos de intervalos de silêncio com os ritmos que ecoam dos seus largos tambores.

Se ainda havia demónios em Deli ontem à noite, eles a esta hora devem estar lá para o Paquistão.

terça-feira, 9 de novembro de 2004

Menino com frio

Fomos ontem fazer compras em Lajpat Nagar. É um dos locais mais indianos que jamais vi. Cruzam-se vacas, come-se um McMarajá, pisa-se o pó espalhado por cima do mármore preto, limpam-te os sapatos com um trapo humedecido com cuspo, choca-se com leprosos, passa uma sonora ambulância Mercedes, há uns cães raivosos e sardentos a vasculhar no lixo, passas pelo pet-shop com novo lote recém-chegado de bulldogs, por detrás de nós uma velha de sari compra doces para oferecer à divindade no templo à nossa frente, à nossa frente uma rapariga em Levi's apertadas atende o telemóvel com toque de Britney Spears e vira-se para trás para dar um estalo num mendigo que lhe toca as nádegas, à direita dela uma carroça tenta desesperadamente enfiar-se por um beco apertado enquanto que à esquerda dela se aproxima um Lexus de côr metálica com vidros fumados, o homem olha-me nos olhos e eu compro uma camisa interior por muito dinheiro. Na volta, no frio gélido, estou sentado a tremer no rick-shaw. Pela abertura do lado direito aproxima-se um menino, sem roupas, só tem umas cuecas. Toca-me no braço. Fica ali, e o semáfaro continua vermelho. Passam-se muitos segundos. Muitos mais passarão. Muitos. Não lhe olho nos olhos.

domingo, 7 de novembro de 2004

Goa e Timor

Na minha coluna semanal no Goan Observer escrevi desta vez sobre Timor e Goa (incluído na série lusófona que trato há já algumas semanas). Para além do meu artigo, entrevistei dois colegas meus (nossos) da FCSH e talvez vos interesse dar uma vista de olhos. "Timor re-emerging from the ashes". Em geral, podem sempre ler a coluna aos Sábados na edição on-line. Na próxima semana escrevo sobre Macau.

Eleições

E achava eu que a minha experiência eleitoral para a Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Socias e Humanas da Universidade Nova de Lisboa em Portugal tinha sido o testemunho mais agudo da agitada vida política. Enganei-me.

Nos últimos dias testemunhei a vida política por excelência, a agitação eleitoral, o empenhamento e a violência que tomaram conta do campus da JNU para as elieções anuais para a Students Union. Cada estudante tem o direito de votar para cinco delegados na sua faculdade e expressar quatro votos para o que é a Direcção da Students Union propriamente dito, o central panel, como o chamam aqui.

Já devem ter ficado com a impressão que a universidade é altamente politizada. Classicamente foi sempre um bastião da esquerda e das correntes socialistas. Diz-se que a participação indiana no movimento dos não-alinhados teve início aqui, na minha School of International Studies. Ainda hoje, aquando de qualquer evento internacional, é para aqui que vêm os jornalistas entrevistar. É daqui que saem aqueles que detêm a chave para a capacidade nuclear indiana, que lideram os serviços secretos e toda a panóplia estratégica que orienta o Estado. Há muitos que escrevem nos jornais diários que recebo aqui em casa. O ideólogo da insurreição maoísta no Nepal tirou o doutoramento na minha faculdade e foi colega do meu professor de Indian Political System.

Portanto, imaginem a agitação quando há eleições e todos os movimentos concorrem para os diversos postos. Embora em Portugal haja uma partidarização do movimento estudantil, aqui isso é ainda mais óbvio, havendo partidos estudantis, informalmente ou formalmente ligados a partidos políticos indianos ou correntes ideológicas nacionais. Dois dias antes da eleição há o "presidential debate" em que à frente de uma multidão de centenas de pessoas (senão milhares) os candidatos trocam ideias e insultos até de manhã cedo. Ninguém arreda pé.

Todos os movimentos têm apuradas máquinas de campanha eleitoral. Mas, curiosamente, na tradição esquerdista do campus só são permitidos cartazes eleitorais pintados à mão, o que dá uma beleza colorida acrescida ao campus. Panfletos podem ser em formato impresso e são massivamente distribuídos por centenas de "campaign workers" 24 horas sobre 24 horas. Sucedem-se os comícios por todo o campus que afinal é do tamanho de uma pequena cidade. Sucedem-se também os rumores, estratégias eleitorais, alianças, desistências, independentes misteriosos, tudo o que caracteriza qualquer eleição política por excelência.

Não me vou alongar em testemunhos. Basta talvez referir que estavam à volta da minha faculdade 4 carros de exterior de televisões nacionais a cobrir em directos tudo ligado às eleições. Para além disso várias câmaras móveis e jornalistas iam interagindo com estudantes, professores etc. Eu mesmo fui entrevistado duas vezes. Todos os jornais nacionais dedicaram aos resultados um grande espaço na primeira página. Diz-se que os resultados na JNU servem para perceber as tendências a nível nacional. Houve confrontos entre dois movimentos rivais que fizeram um ferido grave (hospitalizado por algumas semanas) e vários feridos ligeiros (escoriações etc.). Uma das mesas eleitorais foi encerrada à força por estudantes que acusaram a comissão eleitoral de fraude. Estiveram a impedir confrontos e a patrulhar o campus várias dezenas de polícias com diversas viaturas de choque. A entrada na universidade chegou a estar encerrada aquando dos confrontos mais graves.

Depois, para a contagem dos resultados, ao ar livre, abrem-se várias esplanadas ao ar livre que servem comida quente e o tradicional chá. Lado a lado, muitas vezes as feridas ainda por sarar, os movimentos vão rivalizando, cantando, dançando, gritando slogans, agitando bandeiras, numa competição ferrenha, mas aqui pelo menos pacífica. Há tendas montadas para os activistas e estudantes pacientes dormirem. No topo das escadarias vão aparecendo candidatos, activistas, anónimos que, levantando a voz, atraem a atenção da massa e iniciam longos discursos políticos. Uns são apupados depois de poucos minutos e forçados a fugir. Outros, geralmente independentes, são ouvidos com atenção. Há também um maluco, dos seus 45 anos e ex-aluno, que faz o discurso mais surreal que alguma vez ouvi na minha vida, num tom poético, misturando inglês e hindi, declara as eleições inválidas, exige a presença do reitor, proclama a fundação do seu movimento New School of Radicalism & Renaissance arranca gargalhadas, aplausos, palavras de ordem em apoio.

Os resultados? No meio da controvérsia, foram só proclamados quase 48 horas depois do fecho das urnas. Com pesada escolta policial, todos os movimentos precipitaram-se a fazer grandes cortejos com centenas de participantes, gritando palavras de ordem e reivindicando vitória, embora haja vencedores e derrotados, como em todas as eleições. Afinal, estamos na Índia. O jovem estudante indiano que trabalhou durante uns anos no sector informático no Japão e preparou belos e informativos gráficos de análise eleitoral, distinguindo os vencedores dos derrotados, por menos clara que a distinção em alguns casos seja, foi ignorado na caótica sala da comissão eleitoral e ridicularizado (para além de atropelado) pela turba lá fora. Há pouco espaço para a modernidade, ainda, aqui no campus.

quarta-feira, 3 de novembro de 2004

Três da manhã

São três da manhã. Acordei eram oito. Escrevi um exame em Indian Political System ("The decline of the Congress Party system"). Percorri as ruas e avenidas de Deli em triciclos que podem ser românticos mas dão cabo das costas. Devo ter feito uns 20 quilómetros. Entrevistei dois embaixadores e um director de departamento da minha universidade. Não tive sequer tempo para almoçar. Assim pelas 5 da tarde estava em casa, e pus-me logo em frente ao computador. Entre outros trabalhos urgentes, escrevi um artigo sobre a próxima cimeira União Europeia-Índia que se realiza no dia 8. Espero que um jornal português se lembre de publicar. Depois aviso. São três da manhã. Jantei um "chicken spring roll" que cheirava a mofo. Bebi muita água. Supostamente tenho que enviar ainda hoje a minha coluna semanal para o Goan Observer, sobre Goa e Timor, relações históricas, e perspectivas para o futuro. Já tenho o material, incluindo uma entrevista com um ex-colega meu timorense, Aviano Faria e uma outra activista timorense Célia Cardoso. Esperam por mim na minha Inbox. Lá fora o barulho. Hoje é dia de "presidential debate" na JNU. As várias listas debatem os seus programas e tentam arrancar os últimos votos. É ao ar livre. Há horas que oiço a ensurdecedora multidão aos berros, assobios, uma turba. Intervalados pelas sirenes da polícia. São centenas de vozes em coro. Acompanhar-me-ão quando o sono me levar. E eu vomito estas últimas batidelas nas teclas que supostamente se transformam aí em palavras que vocês lerão. São três da manhã. Boa noite.