sábado, 31 de dezembro de 2005

Keylong

Passamos quase uma semana no vale, deambulando por entre escadinhas que percorrem os casebres fumegantes encostados à colina e que em tempo albergavam caravanas da Ásia Central, da Índia e da China. Nos primeiros dias ainda sentimos o peso dos olhares curiosos por detrás das minúsculas janelas. Encharcados, munidos de meros parcos metros quadrados de plástico para nos cobrir os corpos gelados, habituamo-nos. E ao fim do segundo dia já ninguém olha.

Alguns dias são passados em passeios, enquanto dura a fugaz luz solar e os seus raios aquecedores. Subimos e descemos montes. Até deixarmos de sentir os pés de tanto frio. Por vezes perdemo-nos por entre a espessa neblina, só para nos reencontrarmos com a ajuda do ruído das manadas de vacas a mugirem ou dos rebanhos de cabras e ovelhas a saltitarem sobre a superfície fria e rochosa.

Outros dias não permites qualquer saída. As ruelas permanecem desertas e o nosso quarto aquece. As janelas embaciam-se, mas não notamos a diferença porque lá fora neva incessantemente. Duas ou três vezes ao dia subimos ao restaurante familiar de tons e gostos tibetanos – só para constatarmos que o telefone continua mudo e que o menu vai diminuindo à medida que escasseiam os ingredientes na cozinha. Ouvimos atenciosamente os rumores que nos são traduzidos em inglês rudimentar. A estrada continua cortada em vários sítios ao longo dos 400 quilómetros seguintes. Parece haver dezenas de estrangeiros isolados mil metros acima. Um grupo de ladaquis anuncia a partida a pé para o dia seguinte. Querem chegar a Leh em menos de duas semanas. Não acreditamos, porque há mulheres e crianças entre eles. Mas voltam a confirmar, adicionado um convite. Recusamos educadamente, inseguros se estamos a ser alvos de chacota local ou se devemos redefinir os nossos critérios mínimos de sobrevivência humana. Ao pequeno-almoço da manhã seguinte as suas camas no dormitório estão feitas e a sua bagagem desapareceu.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Imagens de Deli: Fronteira indo-paquistanesa (Wagah)


Há um ano, ao fim da tarde dirigimo-nos da capital da religião sique (sikh), Amritsar, para a única passagem fronteiriça indo-paquistanesa aberta a trânsito rodoviário e ferroviário. Uma autêntica romaria acompanha-nos, centenas ou mesmo milhares de indianas, ávidos de verem um arrear de bandeira que certamente é dos mais teatralizados no mundo. Todos os dias, ao pôr do sol, os guardas de elites dos dois lados da fronteira ensaiam todo um ritual de passo de ganso acompanhado por ameaçadoras palavras de ordem e marchas militares. Deste lado o indiano, daquele o paquistanês. Mulheres numa bancada, homens noutra. Dos dois lados, bandeiras cortam o ar quente e insultos populares cruzam a linha que é tudo menos imaginada. Ela está ali, para todos verem, demarcada e repintada, reforçada, segura, reconfortante. Eles ali, nós aqui. Para nós os evitarmos a eles aqui e eles nos evitarem a nós ali.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Abu Salem

in EXPRESSO, Edição 1728, 10.12.2005, 1º Caderno

Abu Salem quer voltar a Portugal

A defesa do terrorista indiano extraditado por Portugal luta para o fazer regressar. Diz que está a ser torturado

HÁ um mês, a 11 de Novembro, aterrava em Bombaim um avião proveniente de Lisboa, trazendo Abu Qayoom Ansari, um suposto terrorista, mais conhecido por Abu Salem, e a sua companheira, Monica Bedi, antiga estrela de cinema na Índia. Os dois foram extraditados pela Justiça portuguesa, mas as implicações do complexo processo judicial estão longe de estarem terminadas para Lisboa. «Esperamos poder levar Salem de volta a Portugal», afirmou um dos seus advogados, Ashok Sarogi, ao EXPRESSO.

Sobre Salem recaem mais de 50 acusações, incluindo o envolvimento nos ataques bombistas de radicais islâmicos que em 1993 vitimaram mais de 250 pessoas em Bombaim, o suficiente para poder vir a ser mandado enforcar pela Justiça indiana. Mas disso deverão salvá-lo as condições de extradição impostas por Portugal: não ser condenado à morte nem a pena superior a 25 anos.

Os dois foram detidos pela Polícia Judiciária (PJ), em Setembro de 2002, em pleno Rossio. Tinham chegado a Lisboa em finais de 2001, munidos de seis passaportes indianos e paquistaneses, todos falsos. Casaram com cidadãos portugueses em troca de vários milhares de euros, assim conseguindo autorização de residência, que lhes permitiria obter a desejada nacionalidade portuguesa. Mas um mandado de captura internacional em nome do indiano de 42 anos, enviado pela Interpol à PJ, alterou-lhes os planos. Em Agosto de 2003, o Tribunal da Boa-Hora condenava Salem e Bedi a quatro anos e meio e dois anos de prisão, respectivamente.

Revogar a extradição.

A linha de defesa agora adoptada pela equipa de advogados indianos de Salem, no processo a decorrer em Bombaim, é a de que o acordo de extradição não está a ser honrado. «Ele disse-me que foi torturado pela Divisão Anti-Terrorista (ATS)», afirma Sarogi.

Salem está a ser ouvido por um tribunal criado por uma lei especial antiterrorista (TADA). O seu advogado lembra que, face ao acordo de extradição, «o CBI (polícia de investigação criminal) está a interrogá-lo ilegalmente sobre outros crimes para além dos oito pelos quais Portugal o extraditou». Sarogi pretende, assim, revogar a extradição, prometendo «avançar para os tribunais portugueses para provar que Salem não terá um julgamento justo na Índia». No entanto, o próprio juiz do processo, na semana passada, limitou o número de interrogatórios a Salem e garantiu-lhe livre acesso à Comissão de Direitos do Homem estadual (MHRC). Já Monica Bedi só deverá ser acusada de falsificação de documentos. A imprensa indiana cita-a mesmo, dizendo que «sente falta da prisão em que se encontrava em Portugal (Tires), semelhante a um hotel com várias estrelas».
Respeitar o acordo.

A extradição dos dois acusados obrigou o Governo indiano a investir numa longa batalha legal, que se estima ter custado cerca de 10 milhões de euros e se prolongou por sucessivos recursos no Tribunal Constitucional e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Salem exigia asilo político, invocando estar em risco a sua vida nas prisões indianas, apinhadas de antigos inimigos seus de redes criminosas com que rivalizava nos anos 90. Praticante muçulmano, Salem dizia também temer ser alvo de discriminação religiosa, num país maioritariamente hindu, e punha em causa a celeridade e imparcialidade da Justiça indiana. Mas as garantias dadas pelas autoridades indianas convenceram Portugal e a UE.

Alguns juristas indianos têm vindo a público questionar a validade do acordo aprovado pelo executivo indiano e admitem a possibilidade de o sistema judicial seguir o seu próprio caminho, eventualmente condenando Salem à morte. Para Madhu Badhuri, a ex-embaixadora indiana em Portugal que tratou do caso até 2003, não há motivos para alarme. Contactada pelo EXPRESSO, em Nova Deli, acredita que o Governo indiano irá respeitar as condições impostas e salienta a «exemplar cooperação por parte do Governo português».

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

domingo, 4 de dezembro de 2005

Expresso

Não tive por hábito ao longo deste último ano e meio publicar aqui os meus escritos do Expresso. Agora abri um precedente, pondo em linhas as minhas primeiras peças radiofónicas. Por isso, na impossibilidade de este novo hábito ter efeitos retroactivos (publiquei perto de 20 peças, incluindo uma extensa reportagem), fica a promessa que passarei a publicar futuros artigos, na íntegra ou, pelo menos, resumidos. Faço isso porque penso que as minhas peças jornalísticas e radiofónicas, embora menos pessoais e mais formais, também fazem parte da minha vida em Deli e da minha (e vossa) descoberta da Índia.

S. Francisco Xavier

Postal (de R. Navelkar) comemorativo da exposição das relíquias do santo em 1984.

E lá foi para o ar a minha segunda peça radiofónica, já um tanto melhor que a primeira, espero. Pelo que me diz o meu amigo Henrique Mateus, passaram também na RFM. Agora tudo parece estar lançado para corresponder para outras temáticas, políticas, culturais, etc. Ficam os apontamentos que me serviram para a notícia de ontem, dia de festa de S. Francisco Xavier em Goa. Podem ouvir as duas notícias no site da RR:
D. José Policarpo em Cochim
Fátima: Dia do Apóstolo do Oriente

«Celebra-se hoje no pequeno estado de Goa o aniversário da morte de S. Francisco Xavier, apóstolo do Oriente. Na antiga capital do Estado da Índia Portuguesa, a Velha Cidade de Goa, reúnem-se hoje milhares de fiéis venerando as relíquias do santo, que se encontram guardadas na enorme Basílica do Bom Jesus.

Depois de falecer na China, na madrugada de 3 de Dezembro de 1552, o corpo de S. Francisco Xavier viria a ser transferido para Goa, a antiga capital do Padroado Português do Oriente. Desde então, há mais de quatro séculos, os cerca de 450 000 católicos goeses prestam grande devoção ao santo, que na língua local, o Concani, é conhecido por Gõycho Saib, o Rei e protector de Goa.

Nos tempos em que S. Francisco Xavier passou pela Índia dizia-se que "Quem viu Goa não precisa de ver Lisboa". A cidade é hoje considerada património mundial da humanidade e é aqui que se realizam durante todo o dia de hoje dezenas de serviços religiosos, sendo a missa principal celebrada pelo Arcebispo de Goa e Damão, Filipe Neri Ferrão.

A devoção pelo co-fundador da Companhia de Jesus não conhece barreiras religiosas nem distâncias geográficas. Chegaram nestes últimos dias a Goa milhares de fiéis de toda a Índia e do estrangeiro, incluindo muitos hindus e muçulmanos, todos procurando a protecção do santo que a par de Santa Teresinha é o Padroeiro das Missões.

A festa deste ano tem ainda especial importância porque prepara as comemorações do 5º Centenário do Nascimento de S. Francisco Xavier, a realizar oficialmente em 2006 em Espanha, em Portugal e em Goa.»


sexta-feira, 2 de dezembro de 2005

Vaipim, Cochim

Apontamentos que me serviram para a produção da minha primeira peça radiofónica, como correspondente da Rádio Renascença na Índia. Foi a 18 de Novembro e foi surpreendentemente difícil. Nunca imaginei que fosse tão complicado falar para a rádio. "Leia mas não dê a entender que está a ler" disse-me a editora... Amanhã (Festa de S. Francisco Xavier em Goa) volto a tentar...

«D. José Policarpo chegou hoje à cidade de Cochim, no sul da Índia, que esteve sob domínio português entre 1500 e 1663. A ocasião é histórica, comemorando-se o fim do processo de renovação e de restauro da Igreja de Nossa Senhora da Esperança e o quarto centenário da sua consagração, em 1505.

A cerimónia contará também com a presença do Embaixador João de Deus Ramos, em nome da Fundação Oriente que financiou a recuperação da igreja, com dois técnicos de restauro especialmente vindos de Portugal. O Bispo da Diocese de Cochim, John Tattumkal e ministros do governo estadual do Kerala representam o lado indiano. D. José celebrará a missa da parte da tarde e irá depois descerrar uma placa comemorativa, marcando a data.

A igreja está localizada numa pequena península a norte de Cochim, a chamada ilha de Vaipim, separando-a da cidade uma pequena baía, onde no século XVI ancoraram os navios de Pedro Álvares de Cabral, Vasco da Gama e Afonso de Albuquerque.

Cochim, rebaptizada de Ernakulam pelas autoridades, é hoje uma típica cidade indiana, com quase três milhões de habitantes. No seu seio subsiste o centro histórico, com forte influência colonial, portuguesa, holandesa e inglesa. Mas os dois séculos de domínio português deixaram o património mais importante. Para além das belas igrejas, de uma ou outra rua ou estabelecimento comercial com nome português, ou das muralhas portuguesas do seu forte, são os quase 200 000 católicos da Diocese de Cochim a mais forte herança deixada.

As cerca de 50 famílias lusodescendentes na ilha de Vaipim, nas redondezas da Igreja de Nossa Senhora da Esperança, são o testemunho mais vivo da presença histórica portuguesa. Falam num crioulo indo-português que já foi muito estudado por académicos de todo o mundo, mas está mais do que nunca em perigo de extinção.

Originalmente uma comunidade piscatória, os habitantes do bairro de Vaipim têm grande devoção a Nossa Senhora da Esperança, cuja estátua é ladeada no altar da igreja pelas figuras de S. Domingos, S. José, S. Francisco de Assis e Sto. Agostinho. Em estilo maneirista, o altar é do século XVI e estava inicialmente em Cochim. Com a conquista holandesa do forte e a expulsão dos portugueses, os crentes transferiram-no para a ilha de Vaipim, onde foi colocado na Igreja da Esperança, resistindo aos novos tempos protestantes, primeiro com holandeses, depois com ingleses.

Entre os habitantes de Vaipim predominam nomes portugueses como Luís, Joaquim, Domingos ou Rosário e em dias de festa entoam-se orações e cânticos marianos num português antigo mas quase perfeito. É na gastronomia que mais se faz sentir ainda a língua portuguesa, lembrando os mais velhos ao correspondente da Rádio Renascença, ainda em Março deste ano, as várias formas de preparar cozinhados. Temperado, cozido, secado, assado, enumeram, para depois saltarem logo para as sobremesas como o "figo doce" ou o "bôl coco".

E não deixam de apelar a mais apoios de Portugal para que possam manter este património vivo, sendo que os mais novos já pouco sabem do crioulo e desconhecem o passado português. A vinda de D. José é assim um grande motivo de festa para a Diocese local, mas em especial para a comunidade de Vaipim.»

terça-feira, 29 de novembro de 2005

Lembro-me que estou na Índia

Rompe-se, no meio do campus, o cabo de mudanças da minha mota. Estou rodeado de residências, vegetação densa, alguns mini-mercados, departamentos e um ou outro babuíno. Como consertar? Ainda vou a abrandar, já um estudante veterano se aproxima de mim. A poucos metros começa a falar. Demostra já ter identificado o problema mecânico porque me indica prontamente a oficina mais próxima, saindo do campus, 500 metros à direita. "Oficinas de mota" aqui quer dizer "especialistas" acocorados à beira da avenida. Mas não chego lá. Ao tricentésimo metro, conduzindo o meu veículo com muita peripécia pela avenida poeirenta, alguém me puxa pelo braço. Viro-me e um sujeito assobia e indica-me para parar, apontando para o passeio coberto de manchas de óleo. Não tenho tempo sequer para esboçar uma reacção, uma pergunta ou uma resistência. Enquanto ainda balbucio as minhas primeiras palavras, sai dos arbustos um homem com as mãos muito negras e com uma caixinha de ferramentas, deita a minha mota gentilmente no passeio e põe as suas mãos à obra. 45 segundos depois está tudo resolvido, em troca de 45 cêntimos e um apertar de mãos agradecido.

segunda-feira, 28 de novembro de 2005

Imagens de Deli: Gudu & Ruby


Uma foto do ano passado, no outono. Gudu e Ruby, filhos da nossa empregada de limpeza Sayida. Ele com 14 e ela com 11. Quando em Agosto nos ajudaram a limpar a casa, Sayida, um pouco envergonhada, aproximou-se de mim com um respeitoso "Master-Ji" e indicou-me que gostaria que lhes desse umas explicações.

Assim, durante um ano, vinham ter comigo ao fim da tarde, para lhes ensinar a escrever e ler os caracteres romanos e a falar um inglês básico. Nos dias de calor, ao fim da tarde, depois do sol se pôr, sentávamo-nos à volta da messa no nosso terraço. Nos dias de frio, antecedíamos a aula e tentávamos apanhar os últimos raios quentes de sol pelas 16:00, ou refugiávamo-nos no meu quarto aquecido.

Gudu e Ruby eram muito divertidos. As aulas também. Eu a aprender Hindi e eles o Inglês. Riam-se muito de mim. Como eu não cobrava pelas aulas eles sempre que eu tivesse um problema vinham-me socorrer. Gudu foi perito a montar as ratoeiras (que no entanto nunca tiveram sucesso), inisistia em lavar-me a mota e a Ruby de vez em quando lavava a loiça ou entregava-me - corada - um desenho.

Foram aprendendo. Depois de alguns meses já eram capazes de manter uma conversa básica, de ler e escrever em caracteres romanos. Mas, depois de um ano, ao voltar de Portugal, a Sayida anunciou-me que não era possível mantê-los na escola. O Gudu passou a ajudante de mecânico. A Ruby vai ajudando a mãe nas tarefas de limpeza. Não os vejo há meses.

Há algumas semanas que dou um pequeno curso prático em que dou aos alunos de língua portuguesa umas perspectivas sobre a vida em Portugal, cultura, sociedade, economia etc. e lhes dou pequenas lições práticas (como preencher cnadidaturas a bolsa, como ter uma conversa formal por telefone, como escrever um currículo em português etc.). São já abegões, estudantes de licenciatura e mestrado. Não é a mesma coisa. Sinto falta do Gudu e da Ruby.

Imagens de Deli

Porque não param de me chatear, inicio uma série "Imagens de Deli" em que partilho fotos minhas com alguns comentários. Pode não ser muito regular. Prefiro apostar na escrita. Para ver mais terão que cá vir.

Lembro-me que estou na Índia

Ontem, ao meio da tarde, num restaurante de fast-food (Yo China!), numa zona comercial upper-class, ao sentar-me, e ver ao meu lado, numa mesa comprida, umas 15 ou 20 mulheres de meia-idade, imaculadamente maquilhadas e vestidas com saris, punjabis e demais vestimentas tradicionais, sentadas a jogarem uma espécie de loto ou bingo que dantes só tinha visto na mesa de café da minha avó na Alemanha (e nas mesas de outras avós alemãs), trocando gananciosamente e ao mesmo tempo ociosamente pequenas notas de dinheiro, enquanto que nem abelhas os empregados à volta lhes vão servindo gordurosas entradas e iguarias supostamente chinesas, respondendo elas com arrotos ocasionais e telefonemas a dar indicações aos empregados em casa, e enquanto nos televisores circundantes passa wrestling americano TNA onde o Sonjay Dutt esmaga o Johnny Fairplay.

segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Sexualidade na Índia

De há uma década para cá o sector audiovisual foi liberalizado na Índia e proliferam os canais. Mostra-se o wrestling americano, o último Senhor dos Anéis, a BBC e até canais russos. O domínio do magnata Murdoch e da sua rede STAR é impressionante. Mas dois condicionamentos limitam esta oferta televisiva.

O primeiro é que um comité de cariz censurador visiona todos os filmes e corta a seu bel-prazer qualquer beijo, qualquer palavrão ou qualquer cena violenta e erótica que possa ser mais chocante. É portanto refrescante poder ver anunciados de manhã ao tomar pequeno-almoço o último Kill Bill na HBO, só para depois à noite desistir do filme a meio porque metade das cenas violentas foram recortadas.

O segundo condicionamento (se é que lhe podemos chamar assim) é a falta de sexo, erotismo e quiçá pornografia na televisão indiana. Simplesmente inexistente. Entre os quase 100 canais cabo que se assinam por 3 Euros ao mês, só há um que transmite filmes soft-eróticos, anglófono, com sinal muito fraco, que misteriosamente aparece num ou outro mês, de madrugada, para desaparecer depois durante mais outros meses. Não há dúvida portanto que um dos maiores negócios por esta banda seja a pornografia pirateada em DVD's e CD Roms.

Nos mercados basta tossir e aparecem logo do nada uma meia dúzia de senhores com aspecto circunspecto e filmes na mão. Incluindo todo um sector que trafica MMS e demais vídeos amadores que escaparam à privacidade dos lares e das escolas (sim, do que mais se fala nos jornais é quando escapa para o espaço público e comercial um desses clips de fraca pixelização demonstrando vagamente dois estudantes num acto sexual – faz as delícias da população masculina que tem uma espécie de Big Brother no seu telemóvel).

Voltando à televisão, voltemos também aqui ao campus. O meu amigo francês, que viveu numa residência durante um ano conta-me o que é que substitui o Canal 18 por aqui. Pela meia-noite, em certos dias do mês, os estudantes, a maioria pós-graduandos e portanto acima dos 21 anos de idade, encontram-se na sala de convívio da residência onde há o único televisor público. Logo que as coisas acalmem, alguém, por acaso, sintoniza a abençoada Fashion TV, que por essa hora dá uns clips de modelos em biquini. Deliciados com as belezas ocidentais, são depois por vezes apanhados desprevenidos por um dos seguranças/guardas da residência que se acha no direito de interromper e censurar tal "decadência" e irrompe pela sala aos berros, ameaçando "denunciar à reitoria". Mas os estudantes têm os seus mecanismos de defesa. Está sempre um perto do interruptor da luz e imediatamente a sala fica envolta de escuridão, possibilitando que os jovens se cubram de camisolas ou mantas (no inverno) protegendo a sua identidade e fujam rapidamente para o seio dos seus quartos.

Não resisto a contar mais uma. Nas mesmas residências, aos Domingos, há um grupo de estudantes que se encontra sempre num determinado quarto, que nem uma seita secreta. O líder senta-se então na única cadeira do quarto e saca de um pequeno romance (não-iulstrado) erótico, daquelas porno-chanchadas literárias que hoje em dias talvez seja do que mais lêem as velhinhas alfacinhas. Em voz alta vai lendo e à sua volta todos se sentam e ouvem com atenção. A porta, claro, está fechada por dentro com um cadeado e as cortinas corridas, protegendo-os da moralidade pública.

Como sabem, na Índia tudo é verdade, e o oposto também. Há uma Índia que vocês (e em certa medida eu também) nem imaginam, uma Índia que vai mais à frente de qualquer outro suposto Portugal cosmopolita. Em Bombaim as orgias sexuais globais são regulares, e não me surpreenderia se a indústria erótica e pornográfica indiana (filmes per capita) fosse bem maior que a portuguesa. Há toda uma sexualidade que escapa ao tradicional entendimento ocidental e à superficial análise da sociedade indiana. Mas estes episódios narrados fazem parte da realidade e assim permitem-vos pelo menos conhecer um dos extremos. Haverá mais, porque afinal a Índia, ao contrário da Europa, é feita de sexualidade.

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

Lembro-me que estou na Índia

Ao ver, ontem, passar por mim, no meio da avenida, na capital, entre o rebuliço das pessoas, dos feirantes, das vacas, em frente a uma loja da Nokia e ao lado dos menores pedintes, coberto de pó, com o cabelo a escorrer-lhe pelas costas, de bengala na mão esquerda, com pinturas coloridas na testa larga, a barba roçando os mamilos, um homem santo (sadhu). Nu.

quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Higiene na Índia

Hesito. Entre a ideia de que as coisas na Índia nem são assim tão más e que a higiene e o valor da limpeza é em grande medida construído e altamente subjectivo dependendo do país e da civilização em que nos encontramos. E entre a ideia de que a Índia é verdadeiramente um país higienicamente insustentável, em qualquer termo e perante qualquer caso comparativo. Neste escrito vou explorar esta segunda ideia.

Se nos meses iniciais me inclinei mais para a primeira ideia, passei recentemente a estar mais e mais refém da segunda. Vejamos que bicharada e que experiências me fizeram mudar. No ano passado, a já conhecida experiência símia, acordando num dia de verão com um macaco sentado na minha cama a afagar-me a cabeça. Há uns poucos meses, estava eu pacatamente a escrever aqui ao computador, descalço, claro, um ratinho mordiscou-me o dedo grande do pé direito. Fugiu antes que o pudesse esmagar. E foi sobrevivendo durante semanas no nosso apartamento, movimentando-se na penumbra da noite e escapando a todas as armadilhas e venenos que nos foram recomendados "guaranteed result, sir" no popular mercado aqui ao lado. Á noite, adormecia com o seu ranger de dentes, quando se decidia refugiar no meu quarto. À média de uma vez por semana algum de nós avistava-o, cada vez mais gordo. Ainda me lembro dos gritos estridentes da namorada maurícia do meu amigo francês, quando esta abriu o armário da cozinha e se deparou com uma já obesa ratazana petiscando arroz basmati e corn-flakes kellog's. Finalmente, à quinta semana, desapareceu e nunca mais vimos o bicho.

Mas há mais. No campus. É raro ir lá beber um chá e não ver uma ratazana a passear pelas residências ou pelas esplanadas. Cheguei a ver uma, tão grande, que fiquei a duvidar por dois segundos se era um gato gordo. Ao terceiro segundo comecei a acelerar o passo. Ontem à noite, mas uma vez, foi a vez de um ratinho entrar na cozinha do restaurante tibetano onde comia um bom "roasted lamb chillie" que passou logo a intragável, indo refugir o meu apetite em perigo de extinção num pacote de Lay's. Foi de qualquer maneira melhor do que há dois meses, quando me serviram no mesmo restaurante um "chicken hakka noodles" com uma barata em cima, maior que muitos ratinhos ocidentais.

Vamos lá continuar. Na semana passada o meu flat-mate moçambicano estava com a namorada no mercado à procura daquelas folhas da couve para fazer um bom caldo verde à portuguesa. Entraram numa loja mas só havia mesmo couves sem a folhagem lateral. O lojista, no entanto, pediu para esperarem para ver se encontrava o que pretendiam. Impacientes os meus amigos deixam a loja e deparam-se com um dos assistentes da loja a vasculhar no lixo, ao lado de cães, ratos e gatos, seleccionando as folhas verdes pretendidas. Estendeu-as normalmente e disse "here, I found for you" com um sorriso tímido mas orgulhoso.

Se já no Ocidente reina a máxima que em restaurante chinês é melhor não entrar na cozinha, imaginem aqui. Conheço um cozinheiro tailandês num hotel de cinco estrelas, de topo, que me conta as mais assombrosas histórias que se passam com os seus assistentes nas suas cozinhas e a frustração que sente por ser incapaz de lhes incutir o mínimo sentido de higiene. Voltemos aqui ao campus. Na Avenida de Berna, numa das faculdades da Universidade Nova de Lisboa, já é normal haver um dia por ano em que os estudantes são encaminhados directamente da cantina para o hospital, por terem comido algum arroz doce ou iscas à portuguesa pouco recomendáveis. Mais uma vez, imaginem aqui. São poucos os estudantes que ainda não sofreram de "food posining" nas cantinas das residências. Numa das cantinas principais, quando escolhemos em grupo o que vamos jantar, olhamos para o menu e cada um vai partilhando com os outros os perigos de um ou outro item, recaindo a escolha por fim nos pratos menos suspeitos e com menos historial de gastrenterite. Em muitos locais do campus cheira-se continuamente o odor de substâncias vomitadas. É normal alunos faltarem às aulas por indigestão, tal como talvez em Lisboa, nos frios meses de Dezembro e Janeiro, ser normal faltar por constipação ou gripe.

Vamos falar de coisas mais ligeiras. Os indianos comem com as mãos. Mais especificamente a mão direita, somente, estando a esquerda reservada para lavar as partes íntimas depois de defecarem. O problema é que nem sempre lavam as mãos depois de saírem das sujas casas-de-banho, e antes ou depois de comerem. E mesmo que lavem, as longas unhas resistem e por debaixo delas o caril cheio de especiarias e saliva. E tudo é transmitido, de mão em mão. O mesmo perigo de transmissão aplica-se ao cuspir. Por toda a Índia a noz de bétel é muito apreciada e mastigada em grandes quantidades, formando uma pasta avermelhada na boca que depois é cuspida, especialmente em esquinas e escadarias de prédios. Alguns donos ou autoridades inscrevem a letras garrafais encarnadas "DO NOT SPIT PLEASE" mas estas vão desaparecendo rapidamente, à medida que o cuspo vermelho cobre a parede. E o ranho. Esse contribui igualmente. Por todo o lado aspira-se o ranho – como que num aspirar das próprias entranhas – levando a mão o nariz, expirando-o para a palma e atirando-o para o chão. Há versões mais directas, deixando a mucosa fluir directamente do nariz para a superfície.

Não me vou alongar sobre a higiene sexual, cujos hábitos me são ainda em larga medida estranhos neste país. Mas pelas conversas mantidas com colegas, pelo que leio em jornais e publicações diversas, não auguro nada de bom. Talvez baste sublinhar o facto que li numa revista de medicina, relativo à alta percentagem de transmissão de doenças pela via sexual/oral na Índia: pretendendo manter a tão cobiçada virgindade até ao casamento, os jovens limitam-se muitas vezes a praticar sexo oral, ignorando no entanto as paupérrimas condições higiénicas dos seus dentes e da boca em geral, levando à propagação de graves doenças sexualmente transmissíveis. Neste contexto, lembro-me também de visitar o parque de camiões inter-estaduais aqui em Nova Deli, quando preparava uma reportagem sobre a transmissão do vírus da sida na Índia. Os camionistas, enquanto esperam a carga, ficam dias, longe das esposas, em tremenda ociosidade, rodeados de centenas de prostitutas. O espaço não se distingue muito de uma lixeira a céu aberto. Proliferam os preservativos usados deitados no alcatrão.

Finalmente, o urinar e o defecar. Sinceramente, não me lembro de muitos dias em que, percorrendo os 200 metros que separam o meu prédio da entrada principal da universidade, não tenha visto pelo menos um menino, um rapaz ou um homem a urinar na margem da rua. Lembro que vivo numa das zonas urbanas mais desenvolvidas da Índia, na conhecida "South Delhi" com a sua emergente classe média urbana, e que a maior "favela" da Ásia, em Bombaim, ainda fica bem longe daqui. O mesmo aplica-se à defecação. Nas viagens de autocarro e de comboio, as histórias a contar a este respeito são intermináveis. Por todo o lado amontoam-se as fezes, no centro das cidades, por detrás da farmácia, na periferia das aldeias – como um campo de minas, ao lado do hospital, à margem da estrada nacional, no corredor do comboio, na bagageira do autocarro. Aliás, nunca cometam o erro de procurar as casas de banho públicas para procederem a semelhante acto na Índia. Tudo menos isso, em nome da vossa sanidade física... e mental.

Acho que fica feito um panorama das condições de higiene na Índia. Polémico, certamente. Mas real. Há no entanto que sublinhar "o outro lado da história" e injectar esta análise com um "relativismo" que poderá desculpar, justificar e explicar algumas coisas. E, complementarmente, há que apresentar explicações – sempre diferente de justificações. Farei isso num outro escrito.

sábado, 29 de outubro de 2005

Siddarth Singh again

Poucos dias depois voltei a ser multado por Siddarth. Num cruzamento surrealista que se apresenta como um claro atentado a qualquer lógica, rodoviária ou matemática, passei um sinal vermelho. Faço-o sempre que não haja carros em direcção contrária, limitando-me a assimilar os hábitos de condução local.

Mas nesse dias apercebi-me que o meu problema é não ter assimilado outras capacidades locais, como por exemplo a apurada sonda policial. Por isso, quando já ia rapidamente lançado na minha LML, surge por debaixo de uma mangueira, à beira da estrada, Siddarth e o seu superior. Coloca-se no meio da avenida e manda-me parar, não me reconhecendo porque uso capacete.

Quando o retiro vejo Siddarth esboçar uma leve reacção facial de surpresa, mas como que instintivamente, seguindo ainda zelosamente o que aprendeu na escola policial, saca do bloco de autuações. Pergunta-me se estava consciente da infracção – limito-me a registar que não tinha visto e que iria parar certamente da próxima vez. Enquanto preenche o formulário vamos conversando animadamente.

Ao abrir a minha carteira para lhe pagar as 100 Rupias devidas, comenta alguma coisa que não compreendo. Já domesticado, e um pouco desiludido, penso logo que me está a pedir o baksheesh, e que é um oficial tão corrupto como todos os outros e que a minha consideração para com ele era injusta. Peço-lhe para repetir. "Can you show me Euro coins next time we meet? I want to see".

terça-feira, 18 de outubro de 2005

Siddarth Singh

Siddarth, no seu uniforme azul e branco, acena desajeitadamente com a mão. Ainda tento guinar para a direita e escapar-me por detrás de um rick-shaw e para o meio de uma manada de vacas que vem em sentido contrário. Mas, surge então mesmo um segundo vulto por detrás de Siddarth, com uma pose mais respeitável, com mais umas listas douradas no ombro e com um aceno bem mais intimidatório.

Abrando, viro à esquerda com a maior das naturalidades e olho-os aos dois nos olhos. Nenhum de nós tem capacete. A mota comprei-a em segunda mão a um estudante amigo. Os documentos ainda estão em nome dele. Não tenho seguradora. Tenho uma carta de condução internacional, mas só para categoria de veículos ligeiros. E, de toda esta pouca coisa que tenho para me apresentar aos dois que me olham com olhar inquiridor, nada possuo comigo naquele momento. Vamos ver no que isto dá, digo para comigo calmamente.

Siddarth, que nem aprendiz, pergunta-me em Hindi por alguma coisa. Eu sei o que é alguma coisa. Mas como o barulhento motor ainda está ligado, fingo não perceber. Siddarth faz-me sinal para o desligar. Desligo e mando-o repetir. Siddarth repete. No meu rude Hindi, digo-lhe que não falo Hindi. Com isto passaram-se alguns quinze segundos. O suficiente para o chefe de Siddarth se começar a desinteressar de mim e voltar a olhar para a estrada à caça de novo peixe. Está ganha a primeira batalha.

Siddarth vê-se um pouco aflito. As suas bochechas redondas e os seus olhos curiosamente amáveis não lhe permitem desempenhar a sua função autoritária e policial, parece-me. Enfardado num branco que se aproxima perigosamente do cinzento, Siddarth mais parece um daqueles meninos mimados do secundário que saem da escola a correr, pelo caminho empoeirado, em direcção aos balofos braços da mãe e aos rotis e aos lassis.

Mas Siddarth é capaz de muito mais que os seus restantes colegas. Siddarth tem uma capacidade extraordinária que o distingue dos demais milhares de efectivos da Delhi Police que diariamente extorquiam milhares de Euros aos cidadãos delienses. Muda para inglês, que domina surpreendentemente bem, e faz-me umas poucas perguntas para me enquadrar melhor e sondar a melhor maneira de me abordar. Respondo às perguntas de ocupação, morada, nacionalidade, paternidade e breve linha genealógica, nesta ordem, tudo em menos de dois minutos, num tom confidente e respeitoso.

Então, ao terceiro minuto da conversa, Siddarth começa a enumerar pedagogicamente todas as contra-ordenações que cometi. Com ajuda de uma caneta, aponta para uma lista em que são indicados os valores de multa. E, vai apontando e somando todas as que se me aplicam. Que nem aluno atencioso, ainda encostado à mota, assisto silenciosamente. Tanto ele como eu sabemos já como tudo vai acabar. Tanto eu como ele estamos já em sintonia.

Siddarth puxa então uma linha no seu bloco de notas, e chega ao valor total de 6000 Rupias, totalizando vários salários mínimos mensais indianos. Olha para mim, respira, e inicia a segunda fase. Explica pacientemente, ponto por ponto, porque é que devo seguir as regras de tráfego, usar capacete, ter os documentos comigo, ter uma seguradora. Recorre a exemplos e hipóteses. Depois, com um risco todo-poderoso que só uma caneta policial poderia executar, anula todos os valores menos a multa por falta de um capacete. 100 Rupias.

Depois de formalmente me perguntar se quero ir a tribunal amanhã de manhã ou pagar já, preenche o formulário e vai fazendo algumas perguntas mais pessoais para tal. Pago e inicia-se uma conversa amigável, sobre o futebol em Portugal (confessa-se grande adepto de "Figo, Ronaldo e os outros") e sobre a queda de qualidade da equipa nacional indiana de hóquei em campo. Já passam vinte minutos, quando, ainda em amena conversa, Siddarth é chamado pelo seu chefe para tratar de mais um caso. Abandona-nos com um forte aperto de mão e um curioso "hope to see you again soon". Já em andamento, vira-se e aponta sorridente o seu dedo contra a cabeça: "and don't forget, a helmet can save your life!".

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Keylong (3)

Não sairíamos do vale antes do quinto dia. Depois de voltarmos ao Mentokling e pormos o sono em dia aventuramo-nos com os outros cinco estrangeiros pela aldeia, seguindo pela estrada. Poucas centenas de metros depois, apercebemo-nos da gravidade da situação. O que nesta altura veranesca do ano ano deveria ser um pequeno riacho tinha-se transformado num imponente rio. Nos cem metros seguintes que conseguimos avistar a estrada estava cortada por pesados desabamentos e rochedos do tamanho de pequenos camiões.

Estávamos ainda numa zona habitada. A aldeia é capital de distrito. Apercebemo-nos logo que nas regiões mais remotas e altas que a estrada atravessa a caminho de Leh a situação devia ser muito pior. Ao fim da tarde, aconchegados no restaurante e a bebericar chá, recebemos a confirmação do dono. Várias dezenas de estrangeiros encontram-se isolados a 4000 e mais metros de altitude, nos passes cobertos de tempestades de neve. Estamos bem, afinal. Mas a chuva continua, ocasionalmente cai neve. O vale coberto de espessa neblina. Ao segundo dia nem é possível sair do edifício. Deixa de haver água corrente e electricidade na manhã do terceiro dia. Não há ligação possível com o exterior – os telefones estão mudos e os telemóveis não têm rede.

Os aldeões já nos conhecem. Quando deixa de nevar e chove um pouco menos vagueamos pelas ruas semi-desertas. Ao terceiro dia, lembro-me que é o aniversário do meu afilhado, em Goa. Sem nada que fazer, tento a minha sorte no edifício do District Collector, o mais alto funcionário governamental na aldeia, porque nem a polícia tem telefone por satélite. Dizem-me que não há comunicação possível por telefone nos próximos dias, só mesmo enviando um telegrama.

Acho a sugestão um pouco estranha, mas tomo a iniciativa e dirijo-me à estação de telegrafia. O processo de envio demora mais de duas horas, tudo para "HAPPY BIRTHDAY CARL. YOUR PADRINHO, FROM KEYLONG, LADAKH". Já a sair, lembro-me de perguntar, só mesmo para confirmar, auando é que chega. O funcionário, envolto de mantas e já um pouco chateado, responde-me num tom seco: "When the phone lines work again".

segunda-feira, 3 de outubro de 2005

Keylong (2)

Decidimo-nos por um alojamento logo na rua principal, num pequeno restaurante chamado Mentokling que no piso inferior tem uns quartos limpos com casa de banho privativa e água quente. Estamos com o chinês e tentamos negociar. O dono, visivelmente tibetano, parece não estar a gostar muito das pancadinhas amigáveis nas costas do sino sorridente. "Come on, why not 150 Rupees? No difference for you, 50 Rupees. We are students, great difference for us". Talvez por se lembrar da caneta vermelha de que tinha sido alvo há poucas horas e talvez por se lembrar que não é por acaso que o Dalai Lama está exilado na Índia, o chinês interrompe o contacto físico, mas não deixa de insistir.

Quando começa a encerrar os quartos que nos tinham sido dados a ver como amostra, cedemos. E vale a pena. O nosso quarto está virado para sul, para o enorme vale verde que sustenta 5000 metros cobertos de rocha e neve. De dois lados abrem-se grandes janelas com generosas vistas. Há água quente para tomar banho.

Subimos ao fim da tarde para jantar, quando começa a escurecer. O restaurante não é mais do que a sala de estar da numerosa família do dono. Os filhotes correm por entre as cadeiras. Entram aldeões, bebem um chá quente e conversam. Logo por detrás das mesas, há um espaço mais quente, com fogão a lenha, o dormitório em que há uma dezena de confortáveis camas e muitos viajantes autóctones. A mulher e o filho do dono servem-nos comida caseira, uma sopa bem quente que nos prepara para o sono.

Choveria toda a noite. Um verdadeiro dilúvio, em nada comparável ao que jamais tínhamos visto. Durante toda a noite, a água não cessa de cair. Em plena escuridão, e acompanhado do som das grossas gotas caindo no telhado, vestimo-nos, pomos a mochila às costas, cruzamos o dormitório silencioso e saímos à rua. São quatro e meia da manhã. Reina a escuridão e a chuva.

Abrigamo-nos no único local que dá sinal de vida. Uma pequena dhaba, um cafézinho que nada mais é do que uma barraca e um homem que faz chá quente para os viajantes de passagem pela aldeia e que geralmente só aqui param o jeep por pouco minutos. Serve-nos um chá quente. Aparece o chinês. Passa-se o tempo e não há autocarro à vista. A rua, escura e molhada, só nos traz uns poucos viajantes indianos, um casal francês e um inglês, todos ignorando o destino do nosso meio de transporte. Não há sinal dos ladaquis ou de qualquer outro nativo. Não passa um único veículo.

Ao fim de uma hora e meia, por entre rumores e dificuldades de comunicação com os locais, apercebemo-nos daquilo que para os ladaquis tinha sido óbvio desde ontem de manhã. A Manali-Leh Highway encontra-se bloqueada. A chuva provocou uma avalanche ou desabamento e há que aguardar o piquete de emergência liderado pelo Exército indiano, responsável pela manutenção dos 500 quilómetros de estrada. Talvez ao fim da manhã, diz-nos o motorista indiano. Pelo canto do olho, vejo um aldeão esboçar um sorriso lacónico.

sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Telefonemas

Há um lugar aqui perto, em Priya. É uma zona em que se situam as lojas melhores, o McDonalds, um cinema etc. Entre os vários estabelecimentos há um cibercafé que também oferece ligações telefónicas internacionais a preços muito competitivos. Tipo "Call US / UK at Rps. 2 per minute". Chama-se Sify e prima pelo vermelho berrante dos seus painéis publicitários.

Obviamente, estando na Índia, este é um local que atrai todo o tipo de estrangeiros. É isso que torna aquele espaço de poucos metros quadrados fascinante, reflectindo uma impressionante diversidade em termos culturais, económicos e sociais. Aqui cruza-se um emaranhado de indivíduos temporariamente exilados na Índia e que quer comunicar com as suas origens.

Muitos dos quais são os meus colegas na JNU, o que já por si mesmo representa uma enorme diversidade que inclui uzbeques, coreanos, etíopes e demais estudantes internacionais. São pobrezinhos, coitados, que a bolsa indiana não dá para muito. E geralmente também são enviados pelos pais para estudar como bolseiros no estrangeiro porque não há possibilidade de os sustentar no próprio país. Deslocam-se por vezes em pequenos grupos ou comitivas nacionais. Assim, há dias em que encontro lá quase toda a comunidade tailandesa. As conversas são curtas – por óbvios constrangimentos económicos – mas extremamente emocionais. Muitas vezes é a única vez no mês que comunicam com os pais, com as namoradas e namorados ou mesmo com os maridos e filhos. Já assisti a muito chorar e soluçar.

Depois há as enormes comunidades africanas, legais e ilegais, que trabalham na Índia (ainda não percebi bem em que ramo, mas há muitos que são apanhados pela polícia por burla e fraude). Destacam-se os nigerianos. Há um campo de futebol perto de minha casa onde todos os dias se encontram pelo menos 30 para jogarem. Primam pelo estilo e parece que têm feito daquele cibercafé um ponto de encontro. Hoje até vi um deles apertar o nariz do dono do cibercafé, no que, mais do que uma demonstração de carinho, me pareceu uma clara demonstração de força e autoridade. Não me surpreenderia saber um dia que aquilo se tornou na segunda embaixada nigeriana. Os africanos mantém diversos tipos de conversações telefónicas. Há as ruidosas que fazem tremer o edifício todo e há as silenciosas em que provavelmente se acorda uma separação emocional.

Há também os empresários estrangeiros, geralmente brancos, que de passagem que ficam alojados num dos bom hoteis que há nas redondezas. Como não chegam a ser mesmo ricos, mas mais pequenos negociantes forretas à procura de uma fortuna à custa dos emergentes indianos, recorrem muitas vezes a estas ligações mais baratas – certamente também porque os hoteis devem cobrar somas astronómicas.

Finalmente, há os diplomatas. Talvez também para poupar dinheiro, talvez para fugir ao controle paternal ou marital, recorrem a este serviço. Saem dos seus luxuosos carros com matrícula azul CD e entram para os pequenos cubículos telefónicos para ligarem para os mais diversos países imagináveis e conversar sobre as mais diferentes coisas imagináveis. Depois, saem, pagam com notas grandes sem tempo para coligir o troco e desaparecem na carroça.

Em todos os casos, assisti já a muitos episódios originais. Como os cubículos são transparentes e pouco insonorizados, ouve-se bem o que as pessoas falam e percebe-se quando é em inglês. Assim, há momentos constrangedores. Há uns dias assisti a um senhor branco de meia idade que discutiu durante mais de uma hora (eu estava à espera de uma amiga) com alguém. Às vezes acalmava-se, depois agitava-se e insultava a pessoa em inglês bem audível. Dizia coisas como "I took care of you for so long and now you do this to me?", "ok I have to go now, I don't have patience any more, you're a sick person" e "why don't you trust me, why can't you just wait?" etc.

Hoje foi a vez de um jovem repetir uma dezena de vezes, aos berros, "Who are you with? Tell me now, or you'll see! Who are you with, I heard someone. Who is this someone?". Entre outros, também oiço filhos a pedir mais dinheiro aos pais, declarações de amor, declarações de ódio, pedidos de demissão, pedidos de desculpa e tantas mais coisas que se discutem ao telefone quando se está longe, muito longe, de casa.

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Keylong

Confirma-se a sabedoria e a preocupação dos ladaquis. O tempo piora muito. Depois de cruzarmos o passe Roh-tang, a uns 4000 metros de altitude, vamo-nos aproximando dos Greater Himalayas, que se apresentam imponentes no horizonte. Cai neve, chuva fria, granizo. À nossa frente um estrangeiro, mas de olhos em bico. À quarta hora de viagem estabelece-se finalmente uma conversa – é chinês mas estuda no Canadá.

Vamos descendo para o primeiro de centenas de vales que ainda nos separam do mítico Ladaque. A paisagem é verde e branca. O autocarro silencioso. E aproximamo-nos do primeiro check-point em que alguns polícias de cara ensonada e metralhadoras em punho nos esperam. É que a outrora inimiga China é já ali ao lado e o Paquistão sempre em frente. Numa casota os estrangeiros deixam os detalhes de passaporte num livro bolorento. O polícia usa uma caneta azul, mas quando é a vez do chinês pede uma caneta vermelha e não diz nada.

Voltamos a embarcar. Chove incessantemente. De vez em quando o autocarro abranda e salta para dentro um aldeão encharcado que volta a saltar para fora poucas centenas de metros depois. Desfilam-se à nossa frente, pela suja janela embaciada, imensos campos agrícolas, de vez em quando uns casebres com chaminé fumegantes, e acompanha-nos pelo vale um imponente rio espumante. Depois de algumas horas de viagem as condições da estrada pioram. Já só é uma pista enlameada que roça perigosamente as turvas águas ao seu lado.

O sadhu acorda. Olha em volta, parece um pouco confuso. Com dois tabefes faz acordar os meninos. Então, como que inspirado por uma paisagem alpina que contrasta com as áridas paisagens desérticas do seu Bihar ou Uttar Pradesh natal, começa a entoar cânticos. Histórias cantadas. Compreendo pouco, mas são operetas populares, recitações religiosas, contos cómicos. Os outros passageiros, incluindo os ladaquis, ouvem-no com atenção e esboçam um sorriso, de vez em quando.

À sétima hora de viagem, o autocarro vira à direita e sobe por um vale íngreme. Só acordo quando pára. Estamos numa pequena aldeia que se espalha ao longo de uma colina e à margem da estrada. Keylong. À volta do verde e fértil vale apresentam-se orgulhosamente os grandes cumes dos Himalaias. Ao longe, aqui e acolá, pequenos telhados dourados reluzem por entre os campos e a neve; mosteiros lembrando que já estamos em terras budistas.

Passa pouco da hora de almoço. Indicam-nos para passar a noite aqui e que o autocarro seguirá pelas cinco da manhã. Mas se tivesse tido atenção saberia que isso era mentira. Ao contrário dos restantes ruidosos e ignorantes indianos ou estrangeiros passageiros, os ladaquis locais são os únicos a retirar silenciosamente a sua bagagem inteira do autocarro. Só na manhã seguinte perceberíamos porquê.

sexta-feira, 23 de setembro de 2005

Backpackers (2)

Há outro tema que me fascina na vida dos backpackers que venho observando nas minhas viagens pelo estrangeiro, e especialmente na Índia. É a obsessão pela originalidade e pela eterna busca de um El Dorado. Os meninos ocidentais de mochila à costa que vêm à Índia querem coisas novas. Querem o mais possível seguir aqueles capítulos "off the beaten track" dos guias que vendem milhões. E se possível encontrarem eles mesmo novos locais e novas formas radicais ou originais de explorar o novo.

O problema é que quase todos vivem nesta obsessão. O que leva a que nos tais sítios recônditos que o guia apresenta na parte "dicas secretas" se encontrem muitas vezes já mais turistas do que nos locais tradicionalmente mais turísticos, abandonados para a massa dos turistas indianos.

O mais engraçado é a rivalidade de morte que subsiste por isso entre os backpackers. Logo que chegam a um sítio original, digamos o topo de uma montanha mais isolada nos Himalaias indianos, acham-se no direito de reclamar a propriedade turística daquele local. Se porventura aparecer um outro grupo de ocidentais, passa a reinar um mal-estar dos dois lados e um ódio mútuo.

Por exemplo, quase todos os backpackers que eu conheço usam os guias conhecidos como o Lonely Planet ou o Rough Guides. Mas é interessante notar que esses livros só raramente se vêem em público. Só percebi porquê quando uma inglesa com que viajava me disse que se limitava a lê-los no quarto, às escondidas, para não parecer uma backpacker bimba aos olhos de outros backpackers. Porque supostamente só os bimbos consultam guias. E supostamente todos viajam um pouco ao acaso, sem ajuda de ninguém, ao sabor do vento, que nem neo-hippies.

É esse de facto o objectivo dos backpackers. Mas fruto de constrangimentos vários (tempo, dinheiro, mas também segurança e conforto e a necessidade ocidental de ter tudo bem planeado) sacam sempre do guia, nem que às escondidas.

Vou deixar de fora os verdadeiros neo-hippies e aqueles que eu considero serem os verdadeiros backpackers, aqueles que por exemplo vivem um ano a viajar pela Índia com um punhado de dólares, fazem retiros em isolados mosteiros budistas, se deslocam principalmente a pé e de boleia, e vivem em casa de habitantes locais etc. Esses primam pela cooperação, ajudando os seus congéneres, porque nada têm a esconder ou a temer. Sabem que a genuidade encontra-se pela cooperação e não pelo conflito.

Há outra forma de assinalar a originalidade. Os backpackers mainstream têm um rol de formas diversas para sublinharem a sua originalidade para com os seus conterrâneos. Por exemplo, lembro-me de um grupo de australianos que viajou os 500 quilómetros na mais rude estrada indiana, a Manali-Leh highway (sem um metro de alcatrão, passando por altitudes superiores a 5000 metros), de patins. Já nem falo de bicicleta ou a pé, porque até isso já se tornou rotina.

Todos estes fenómenos eu também os tenho observado em Goa. De cada vez que lá vou havia sempre um local novo na moda. No sul, por exemplo, havia uma praia que sempre atraiu gente (até local) por um certo misticismo e beleza. A praia de Palolem, no entanto, atraía em inícios dos anos 90 pouco mais de uma dezena de turistas mais corajosos por dia. Hoje são centenas e a praia encontra-se cercada por empreendimentos turísticos, comida italiana e israelita, yoga, bugigangas caxemires e demais parolices. E enquanto muitos ainda lá vão convencidos que encontraram algo similar a The Beach (de Alex Garland), poucos se apercebem que os verdadeiros backpackers hippies já deixaram este local há muito para as consumistas e efémeras hordas ocidentais.

O mesmo se passa com o chamado Goa-Trance. É um mito que vai subsistindo. Mas os verdadeiros artistas e amigos do trance psicadélico sabem que há já muito que Goa deixou de ser a capital deste estilo de música. Passou há mais de uma década para Gokarna e depois aviou as malas para fora da Índia. Hoje, quando as dezenas de bares comerciais na orla costeira de Calangute aumentam ao fim da tarde um pouco o volume de um som que tem alguma batida mais intensa, saltam imediatamente para a praia uma centena de turistas indianos em busca de ver um pedaço de carne nua branca e uma dezena de backpackers convencidos que estão a reviver a atmosfera dos hippies e a viver uma experiência transcendental.

domingo, 4 de setembro de 2005

Coffee-breaks

Não haverá coisa que marcou mais a minha experiência académica em Portugal do que os "coffee-breaks". Estes são o símbolo do estado actual da produção de saberes no país mais pobre da União Europeia. Lembrei-me disto ao assistir a uma palestra do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros indianos, Yaswant Sinha, na minha universidade, a JNU.

Sinha foi o ministro do governo anterior, liderado por Atal B. Vajpayee. Uma aliança de dezenas de partidos, com com os fundamentalistas do BJP à cabeça. É um homem que conheçe as lides internacionais. Que discursou nas Nações Unidas. Que viajou por meio mundo. Que tem capacidade para influenciar a decisão de a Índia carregar no botão nuclear ou não. Que deve tratar Kofi Annan e uma série de chefe de estados de primeira linha por "tu". Basicamente, um estadista de renome a nível internacional, com todas as regalias e luxos possíveis.

Agora imaginem, este Sinha, sentado numa cadeira negra de tantos salpicos de caril acumulados ao longo de dezenas de anos. Num refeitório ainda mais negro, que nada mais é do que uma grande sala com uns bancos corridos e umas mesas que ainda ostentam pequenos bagos de arroz do jantar. Rodam umas ventoinhas no tecto para refrescar o que é impossível refrescar, chego a ver uma ratazana a passear-se por detrás dele, entrando na cozinha. Dezenas de estudantes ouvem com atenção. Estamos no refeitório de uma das residências da JNU, e discursa o ex-ministro, sobre o estado actual das relações Índia-EUA. À sua frente um copo com água. Não lhe chega a tocar.

Voltemos ao coffe-break luso. É a essência das 1001 conferências académicas (supostamente académicas) que se realizem mensalmente em Portugal. Qualquer departamento, qualquer fundação, qualquer núcleo e qualquer partido, juventude partidária, associação de estudos, instituto de investigação e demais agrupamentos institutucionalizados ou não, organizam uma conferência, um congresso, um debate, uma palestra ou uma tertúlia etc. em que normalmente o momento central é o do coffee-break.

Os oradores respiram de alívio quando este se inicia, libertos da responsabilidade de dizerem banalidades e preencherem o tempo que lhes foi reservado. A audiência igualmente, liberta da carga de fingir ouvir com atenção e interesse ou acordando da soneca. Então, todos se reúnem com uma bica numa mão e um pastel na outra, e, mastigando e galhofando, trocam galhardetes e cartões de visita para preparar o próximo evento. Há vários coffe-breaks. Os mais humildes são oferecidos pelos serviços sociais das universidades. Os mais requintados por empresas especializadas de catering cujo dono é primo ou amigo dos copos de um dos organizadores.

Para além da questão académica e científica e do que pode ser uma estagnação de saberes, o que mais noto é uma crescente preocupação com a forma, em Portugal. Poderiam jamais imaginar um ex-ministro e deputado, ou até um presidente de partido, um secretário de estado, a falar nas condições em que vi Yaswant Sinha falar? A obsessão pela forma lembra-me a história de uma amiga minha que estava a estudar em Salzburgo e cujos trabalhos tinham que ser obrigatoriamente entregues em formato digital para no caso de as margens não estarem alinhadas, ou haver um espaço a mais entre duas palavras, ser devolvido e devidamente penalizado na avaliação final.

Yaswant Sinha, depois de um franco e caloroso debate com os estudantes, voltou já tarde para casa, passava da meia-noite. Com ele, iam talvez umas pulgas agarradas à imaculada camisa branca e uns salpicos de caril na cara calça. Mas, com ele, iam também uma riqueza e uma abertura de espírito, e uma simplicidade essencial que podem ser coisa rara na Índia, mas são coisa desconhecida em Portugal, cegado pela matéria e forma.

Primeira paragem

Separam-nos ainda de Leh, capital do Ladaque que queremos visitar, mais de 400 quilómetros. Dois dias de viagem. Muitas peripécias. Mas o motorista não poderia deixar de parar ao vigésimo quilómetro, pouco menos de uma hora depois de termos partido, para o tradicional chá indiano. À vista das primeiras barraquinhas fumegantes, o autocarro desacelera e os passageiros saem para a chuva, o frio e o vento.

Ainda ontem tínhamos feito este percurso e os cafés à beira da estrada estavam repletos de ruidosos turistas indianos da emergente classe média de Deli, Bombaim e Bangalore. Especialmente casais em lua-de-mel. Elas em busca de um pouquinho de neve e liberdade antes de começarem a parir filhos e eles em busca de uns esquis, uma pose masculina e uma foto ao lado de uma turista loira para mostrar lá na em casa, na rua.

Hoje reina a montanha. Os ventos gélidos cobrem as esplanadas de neve. Os passageiros que se aventuraram para fora foram bebericar chá quente num pequeno abrigo. Nós ficamos na carroça. De repente, do nosso lado esquerdo, vemos dois pequenos vultos. São os dois rapazes, filhos do sadhu. De pés descalços e cabeça descoberta tiram de um dos seus recipientes um pouco de arroz e caril, ainda quente, trazem o prato ao sadhu que se encontra confortavelmente sentado no autocarro, e depois voltam a sair para o relento para lavar o prato e o copo usado na branca neve.

Só entram outra vez quando o motorista já buzina insistentemente. Tremendo e com os lábios azulados, abrigam-se por debaixo de uma grande manta. Quando um deles se vira, tomo coragem e ofereço-lhe um pouco do meu sortido de passas, nozes e amêndoas. Aceita com um sorriso e partilha com o irmão, às escondidas do sadhu que já ressona.

sexta-feira, 26 de agosto de 2005

Backpackers (1)

A Índia é certamente um dos destinos mais cobiçados dos backpackers. Aqui cruzam-se europeus e americanos, obviamente, mas também japoneses e coreanos, e, especialmente, israelitas.

A minha primeira viagem pela Índia foi em 2002. Desde então tenho repetido a dose de mochila às costas regularmente. E há um fenómeno que eu observo repetidamente e com que eu me delicio profundamente.

É o da cooperação e conflito entre os backpackers. É fascinante observar o seu comportamento, as suas aspirações, os seus hábitos etc. porque para além de representarem uma pequena comunidade do que eu gosto de chamar a "fauna global", espelham também a mais profunda essência ocidental (considero os backpackers, incluindo os japoneses e coreanos, como sendo essencialmente ocidentais).

Não será por acaso. É quando estamos fora do nosso habitat que mais nos distinguimos. O ocidental deixa-se observar e caracterizar mais correctamente fora do Ocidente. Por exemplo, como backpacker na Índia.

A própria essência do backpacking reflecte a sua natureza ocidental. A fascinação pelo exótico, pelo desconhecido, no caso da Índia, pelo oriental. A necessidade de fuga de um contexto que é só se admite envergonhadamente e com um tímido sorriso que mais parece um pedido de desculpa. "I'm from Manchester" respondia o meu amigo inglês sempre que um turco lhe perguntava "Where are you from?", fugindo deliberadamente à resposta mais natural, mas mais pesada e complexa, que seria um mero "England".

Gosto de recorrer ao caso alemão, porque é um exemplo radical que se aplica de forma moderada a toda a civilização ocidental. É o sentimento de remorso, o peso na consciência, o medo e a vergonha. Em todas as conferências internacionais de jovens que participei e em todas as situações em que testemunhei a apresentação pública de um jovem alemão no estrangeiro, conto pelos dedos os casos em que estes se apresentaram como "German". Escapam por várias vias.

A maioria rende-se ao simpático "European", mas havia uma rapariga "from Baviera", havendo também casos de "Turkish but born in Germany". Os miúdos mais engraçados refugiam-se na comédia: "Ich bin ein Berliner" dizem, quando é a vez deles de se apresentarem no início, quando se forma um círculo e todos se apresentam numa sessão de "ice-breaking". Todos se riem, e, numa grotesca omissão e aceitação do complexo de identidade, passa-se à apresentação seguinte.

O mais curioso, quando estas apresentações decorrem fora do espaço ocidental (como no caso do meu amigo inglês) é a reacção dos autóctones. Normalmente menos letrados, talvez um condutor de autocarro ou um vendedor de rua, sorriem confusamente. Na sua percepção e avaliação tudo aponta para que o meu amigo respondesse "I am from England", ou por já terem visto o passaporte, ou pela vestimenta e fala dele etc., e preparavam-se já para lançar o cliché do "Oh, ver nice country. Beckham!". Assim, ficam estupefactos e incapacitados de enfrentar o complexo identitário do meu amigo inglês. Muitos limitam-se a sorrir. Outros, mais habituados, continuam a conversar. Na Índia testemunho este fenómeno recorrentemente, e nunca vi um indiano inquirir mais sobre essa misteriosa "Manchester" ou sobre "Where in Europe, exactly?". Respeita-se a identidade do outro e embora acredite que os indianos devem ser das pessoas com menos noção de individualidade e privacidade no mundo, respeitam a resposta.

Este é o primeiro fenómeno, o da fuga para a frente. Os backpackers são jovens que normalmente têm educação superior e horizontes mais largos, interessados por um país distante e misterioso como a Índia. Mas, no fundo, não são nada mais do que derrotados, envergonhados e fugitivos. É uma afirmação generalizada, claro, mas não tenho dúvidas que são caracterizações que se aplicam à maioria dos backpackers que tenho encontrado pela Índia.

sexta-feira, 19 de agosto de 2005

Sadhu versus Generais

Há já duas horas - ainda o sol está a nascer - que subimos pelas montanhas. São centenas de curvas e contra-curvas. Impera o silêncio, só se ouve o ranger da carroça, um ocasional ressonar ou uma exclamação de dor quando o autocarro passa uma lomba ou uma vala e os pequenos ladaquis das últimas filas batem com as suas cabeçitas no tecto. Alguns olham para o alto das montanhas cobertas de nuvens negras e comentam algo num tom preocupado. Mais tarde viria a partilhar da sua sabedoria montanhesa.

Do nada, começam a aparecer camiões militares na direcção contrária. A sua camuflagem verde dá-lhes um toque ensonado a estas horas da manhã. O autocarro enfia-se pelo lado exterior da estrada, beijando a ravina, e passa os primeiros camiões. Mas, à segunda curva, a dimensão do problema agrava-se. Avistam-se dezenas de camiões em fila, todos à espera de passar ao nosso lado.

Os passageiros começam a acordar. Há uma dupla reacção. Os ladaquis, com os seus olhitos em bico ainda ensonados, não parecem muito impressionados. Olham um pouco à volta, em silêncio, e adormecem outra vez. Já nas filas da frente, maioritariamente ocupadas por indianos do planalto indostânico (basicamente: indianos), reina alguma algazarra e todos têm uma opinião, mas ninguém se mexe. O condutor berra com os seus congéneres militares. O seu colega, em Lisboa seria o "pica", é um rapaz novo e espreita timidamente por detrás do motorista.

Há vários generais nos camiões. Pesadamente cobertos por insígnias e condecorações, não se mexem nem se ralam com o que se passa. Assim, não há possibilidade de recuar nem de avançar. À direita os camiões, à esquerda a ravina. Os veículos estão imobilizados há 15 minutos, não há solução à vista.

Como estamos sentados perto da porta da frente, vemo-lo escapar-se. O sadhu, no meio do silêncio traseiro e da agitação fronteira, tinha-se levantado do seu lugar, do meio dos dois rapazes adormecidos. Silenciosamente desce do autocarro – não sabemos bem para onde porque o único espaço para ele pôr os pés seria o fundo da ravina. Talvez para fazer chichi, pensamos.

Dois minutos depois, do nada, a fila de camiões militares movimenta-se e o autocarro pode avançar. Já em andamento, a porta abre-se à nossa frente e salta para dentro o sadhu. Ninguém no autocarro se apercebeu da sua obra. Mas, por um breve segundo, enquanto se movimenta para o seu lugar, partilha connosco o seu segredo. O seu olhar, embebido de sabedoria e magia, e um pouco divertido também, transmite-nos uma mensagem: "Pus isto a andar". E continuamos a subir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Partida chuvosa: o motivo

São cinco da manhã e estamos numa paragem de autocarro indiana numa cidadezinha indiana num estadozinho indiano. À volta já ontem tínhamos vislumbrado alguns brancos cumes de neve dos Himalaias. Demorámos 15 horas a chegar a Deli e não tencionamos ficar muito mais tempo por aqui – um dos dezenas de "hill resorts" indianos em que abunda a ruidosa e degenerada classe média-alta indiana, os casais em lua-de-mel que ainda só trocaram meia dúzia de frases mas já passeiam de mão dada pelo The Mall onde há poucas décadas ainda soavam as botas britânicas.

Está frio e a chuva cai em dilúvio. O pequeno edifício da estação rodoviária está repleto, pessoas dormindo por todo o lado. À nossa frente o "Himachal Road Transport Coroporation semi-deluxe bus" que segundo informação oral e horário pintado sobre uma placa de madeira apodrecida nos deve transportar durante dois dias para Leh, capital do Ladaque budista e parte do estado de Jamu e Caxemira, atravessando os Greater Himalaias, planícies desérticas e passes gélidos acima dos 5000 metros. Verde e branco, dorme ainda. No seu topo já está colocado um barril de gasolina extra.

Com uma hora de atraso, um ensonado condutor abre as portas. Os lugares são conquistados, pela força e pela casta pelos locais; pelo verbo, pelo bilhete e pelo passaporte por nós. Seat number 5 and 6, bem à frente como queríamos, para evitar os saltos acrobáticos e um consequente rabo dorido e assado nas últimas filas. Os bancos não são de madeira, mas de alumínio revestido de uma fina colcha sintética e sem repouso para a cabeça. A qualquer arranque mais violento ou a qualquer batida por trás, as nucas estão expostas a uma barra de alumínio que reluz com ameaça mortífera.

Na sua maioria, são mongolóides no autocarro. Os olhos em bico, parecem um pouco ameaçadores, mas são pequeninos e sorriem muito. São Ladaquis e budistas e anseiam por um regresso rápido a casa depois de a profissão ou a burocracia os terem forçado a vir para baixo, para sul, para as planícies indostânicas.

Mas, no meio do autocarro, quase ao nosso lado, reina uma pequena agitação. Um vagabundo acompanhado de dois meninos à volta dos dez anos de idade procura garantir o seu lugar. Consegue-o com bastante aparato. Os três vêm carregados de sacos, sacas e demais trapos e recipientes para comida e bebida. O homem, alto e barbudo, impõe um pouco respeito – embora não o seja, identifico-o como um sadhu, um homem-santo hindu que viaja as intermináveis terras indianas em meditação, canto e peregrinação.

O sadhu trata as crianças muito mal. Talvez sejam os seus filhos, mas não interessa. Traz consigo um longo pau de madeira com que vai dando carolos dolorosos nas crianças por qualquer coisa de errado que façam. Às vezes também voa um tabefe. Antes ainda de eu iniciar o processo de decisão ocidental se devo intervir ou não, já um pequenino ladaqui aproxima-se rapidamente das últimas filas e habilmente com um gesto só retira o pau das mãos santas. Diz-lhe algo que não percebo. Mas a mensagem é clara. Aqui reinamos nós. Aqui não se bate em crianças. O sadhu, apanhado de surpresa e reduzido a um estado minoritário, não esboça sequer reacção, salvo uma cara indignada e até um pouco infantilmente triste.

Está lançado o motivo para a viagem. Todas as viagens na Índia têm um motivo, uma matriz sobre a qual se constrói uma comunidade, seja de conflito ou de cooperação. O sadhu, pela sua natureza, assumiu essa tarefa. Todos se sentam e a carcaça metálica arranca para os Himalaias.

quarta-feira, 27 de julho de 2005

Chegada

Embora tenha saído de Lisboa em finais de Junho, só agora realmente cheguei a Nova Deli. Porque segui logo para Ladakh e Caxemira, onde passei três maravilhosas e impressionantes semanas com muitas aventuras nos Himalaias que vos contarei em breve por aqui. Por enquanto tenho outra avalanche a sobreviver: a da burocracia da inscrição para o meu terceiro semestre.

Nova Deli está com um clima muito desagradável, mas - como sempre na Índia - suportável. Nuvens, sol à mistura e uma tremenda humidade com aquele ameaçar de chuva que nunca se concretiza. Temperaturas de 30 e tal de dia e de 27 de noite.

Mais um ano de vida em Deli...

quarta-feira, 29 de junho de 2005

Partida

Estou de partida, daqui a poucas horas, depois de algumas semanas de volta a Lisboa. Amanhã de manhã os 40ºC e tal me darão as boas-vindas no Indira Gandhi International Airport em Nova Deli. Se tudo correr bem daqui a uns dias inicio a minha "expedição" para o Ladakh. Podem cheirar em http://ladak.free.fr/. Aguardo a vossa tão esperada visita. Até já!

domingo, 26 de junho de 2005

Calma rodoviária (caos e ordem)

Há por aí um vídeoclip a circular na Internet em que é filmado um cruzamento numa grande metrópole asiática em que reina o caos total. Entre pessoas, bicicletas, tricicletas, motas, vespas, carros, camiões e autocarros há de tudo um pouco, menos ordem. Para além do facto de o vídeo ser engenharia (magia) informática de um miúdo ocidental qualquer decidido a reforçar ainda mais o fascíneo por um Oriente exótico-incompreensível, as imagens confirmam a nostalgia.

Estive na presença de umas poucas pessoas quando viam o vídeo e ouvi mais algumas comentar sobre ele. Primeiro, poucos se apercebem que aquilo é mera fotomontagem. Segundo, em tom de D. Gracinda que relata um acidente catastrófico ali na esquina do café, submetem-se totalmente ao incompreensível - o que é compreensível porque simplesmente é inexistente. Terceiro, paira no ar um misto de admiração e nostalgia.

O meu pai conta que nos anos 60, quando estudava na Alemanha, se encontrava hospitalizado num quarto com vista para um cruzamente com semáforos. Sempre que estes deixavam de funcionar, o que acontecia com alguma regularidade, ouvia imediatamente ou assistia ao vivo a acidentes rodoviários porque os condutores alemães não sabiam reagir perante a demissão da autoridade suprema semaforária.

Utilizei um exemplo alemão porque me parece mais constrastante com a experiência indiana. Portugal encontra-se no meio. Portanto, em termos ocidentais, a ordem tornou-se um pouco numa obsessão - se me permitem. A ordem, a disciplina e o formalismo em excesso levam à decadência moral, tal como a excessiva dependência do material que nos rodeia mais do que nunca. "Só um Sith pensa em extremos" como me avisa um amigo, parafraseando um boneco de cinema.

Voltando ao cruzamento, há nostalgia, porque há incapacidade ocidental de voltar ao caos primordial - não necessariamente bom, sublinho. Na Índia sobrevive. Os cruzamentos, os semáforos, os polícias, as estradas, as linhas e a matéria, a forma e a disciplina são domados e submetem-se impotentemente à prática, à sabedoria e à experiência.

Percebo que a ordem tenha as suas vantagens. Permitiu que se alcançassem muitas coisas boas. Mas não devemos pensar que a ordem e a forma são tudo. Temos que ter isso em conta quando atravessamos um cruzamento em Nova Deli como turistas, ou quando negociamos com a Índia políticas alfandegárias e financeiras como diplomatas ocidentais.

Isto como pano de fundo leva claro ao tema da dependência e dos extremos. Somos dependentes da matéria, do consumo, da asspeticidade? Reagiriam os ocidentais mesmo de forma mais debilitada a uma catástrofe ambiental planetária do que habitantes de outros continentes? E limitando a análise à psique, o quão estão os europeus mentalmente mais fortes desde que ultrapassaram todos os outros povos e civilizações em termos de esperança de vida, inovação tecnológica e planeamento urbano?

Afinal, enquanto todos os dias em que percorro a minha saloia AE8 vejo cenas de conflito, competição e obscenidades rodoviárias e leio regularmente de mortos a tiro nas auto-estradas europeias por causa de indefiníveis quezílias rodoviárias, num ano em Nova Deli de mota, rodeado daquele caos, não me lembro de ver uma única discussão, quanto menos um único gesto ou palavra obscena originada por questões rodoviárias.

Querem contra-prova? Os únicos momentos em que assisti a tensão nas ruas e avenidas de Deli foi quando os grandes pretos carros e jeeps de vidros fumados da emergente classe média urbana ocidentalizante se permitia atropelar esta calma. Achando-se algo mais, e despojados da essência tradicional indiana que é a base da calma rodoviária que vos anteriormente descrevi, acelerados pela pressa de chegar ao local de consumo ou produção (ou ao contrário, sai ao mesmo) e cegados pelo Ocidente capitalista e brilhante, enconstam as grossas jantes das suas potentes máquinas aos frágeis triciclos fazendo-se tombar como se fossem pequenas peças de Lego.

terça-feira, 14 de junho de 2005

A imagem portuguesa da Índia

Há dois anos, quando entrevistei o embaixador português na Índia para o meu Supergoa.com, ele queixava-se com certa razão de que "os portugueses ainda têm a imagem da Índia do encantador de serpentes". Eu acho que o problema é capaz de ser outro. Não há imagem nenhuma da Índia.

É verdade, as miúdas que andam lá na minha faculdade na Avenida de Berna de dia e que polvilham as ruelas do Bairro Alto de noite (ou será ao contrário?) já andam de mochila, saia e blusa indiana. É verdade, os 600 turistas portugueses que visitavam Goa (para não falar da Índia) anualmente nos anos 90, passaram a ser alguns poucos milhares agora. Sublinhe-se o adjectivo, no entanto. E é verdade, já não só os saudosistas, salazaristas e militares a falar da distante Índia.

Mas, no fundo, a Índia continua a ser uma imensa mancha negra no mapa-mundo português. Eu notei isso quando anunciava que lá ia, há um ano. Houve reacções de oposição e de encorajamento, mas, na sua grande maioria, as pessoas dedicaram-me uma expressão facial interrogativa enorme e desesperada. Não sabiam o que dizer. Hesitavam. Alguns refugiavam-se no discurso rebelde de que "só faz é bem, ir lá para fora", incluindo a imensidão indiana no saco-cabe-tudo do "lá fora". Outros perguntavam-me se continuaria a estar acessível por e-mail.

A Índia continua assim refém do que eu chamaria "um fosso geracional". Os mais velhos, que por lá andaram nos anos 50, filhos do Império português (que interessantemente, segundo uma tese a publicar por Francisco Bethencourt, no King's College London, nunca terá existido) estão em vias de desaparecimento, para além de estarem conotados com sectores conservadores pouco na moda. Uma geração intermédia tem claramente mais que fazer, como em Bruxelas ou até no Brazil e em África (poucos), e vive também sob o manto do trauma colonial. Finalmente, os mais novos, a geração sub-30 e mesmo sub-40, tende a perguntar-me como é que está a construção da barragem e a preservação das gravuras rupestres quando lhes falo em Goa. Há que redescobrir a Índia, parece-me.

Perdoem-me o meu tom que pode parecer censurador. Mas eu mesmo hesito muitas vezes. Fazem-me crer que sou um Fernão Mendes Pinto do século XXI, mas na realidade não sou mais do que um estudante internacional em mobilidade. Mobilidade contra a corrente? Nem por isso. 2000 km acima de nós a maioria dos escandinavos tiram pelo menos um ano depois do secundário para viajarem pelo mundo não-ocidental ou para fazerem estágios no apoio ao desenvolvimento nos países que os meus colegas chamariam "os mais encavados". Nova Deli capital terceiro-mundista? Nem por isso. O que iriam para lá fazer tantos chefes-de-estado nestes últimos meses, a não ser negociar contratos de investimento, aumento de "green cards", programas de intercâmbio e pacotes de armamento?

Mas há mudança. Contrastando com o enorme vácuo de há um ano, as pessoas que me encontram agora já dizem algumas banalidades. Normalmente comentam que a Índia "tá em grande nas tecnologias da informação e nos computadores e nisso tudo", claro que nunca deixando de fora o comentário mais ou menos jocoso (depende se estou aqui no Rogel com o meu mecânico ou com um licenciado em Lisboa) que "eles também são mais que as mães / são marrões / são inteligentes e trabalhadores". E o comentário bónus é sobre a questão militar porque "eles têm capacidade nuclear" e depois vêm umas palavras complicadas como "proliferação" ou banais como "ainda nos caem as bombas na cabeça". E há também leve mudança porque vejo que entre as gerações mais novas de portugueses – mesmo que décadas em atraso comparativamente às suas congéneres europeias – já há mais pessoas a abrir os olhos e a fazer as malas, explorando as manchas negras do nosso mapa-mundo que em tempos foi o melhor do planeta.

Espero que possa haver mais mudança. Aliás, é surpreendente a parca informação sobre a Índia que cá chega. Mas isso fica para outro apontamento.

Novo blog: Wide views

Meus queridos amigos e leitores (nem todos partilham a mesma função),

tenho um novo blog em que escrevo sobre Goa, emigrado como sou daquela terra e armado como sou em Che Guevara/Pinochet (pick one). Está em inglês e podem visitar em
http://wideviews.blogspot.com

domingo, 12 de junho de 2005

Depois de um ano na Índia

Depois de um ano na Índia, ao voltar a Portugal, notei que:

As pessoas se vestem melhor, mais cuidadas

A carne em doses maiores me faz sentir enjoado

Há menos obras feitas, menos construção em progresso

O Benfica é campeão nacional

Está tudo um pouco mais caro

Mantenho os meus bons amigos

A "crise" continua, está em todo o lado

O meu Golf continua um Panzer

O clima piorou, as estações do ano estão em vias de desaparecimento

Sinto saudades da minha vida em Deli

Gosto muito de Lisboa

A televisão está pior do que nunca, é só ligar

Tenho um novo cão, querido, e que o anterior fugiu

Ninguém (ou poucos) lêem jornais

Os carros conduzem menos rapidamente nas auto-estradas

O presidente da minha câmara afinal é bom

O buraco do Túnel do Marquês aumentou

Estou mais velho, um ano

sexta-feira, 10 de junho de 2005

Decadência do Mundo Ocidental (intervalo)

Talvez tenha sido precipitado. Talvez me tenham feito precipitar ou sentir precipitado. Na realidade sinto que devo partilhar convosco a minha visão de um Titanic em naufrágio em que a orquestra ainda vai tocando e acreditando na invicta superioridade. Talvez simplesmente mais um meu intróito estrangeiro aliado à minha necessidade crítica e à minha frustração com o que me rodeia tenha levado a isto.

Antes de intervalar deixem-me então explicar melhor aquilo o que me tem ido na alma.


Primeiro, falar em decadência para mim só faz sentido no Ocidente. Porque é este pedaço do mundo, é esta civilização que sempre defendeu a ilusão da evolução e do progresso e das utopias. E que para isso expandiu a sua utopia e os supostos instrumentos para a alcançar por todo o planeta. É essa a responsabilidade do Ocidente. Como se relaciona hoje a civilização ocidental com essa tarefa, como a instrumentaliza, como a explica ou como a nega?

Segundo, falar em decadência ocidental para mim é acima de tudo uma análise do homem. Dos sentimentos, dos valores, da felicidade ou da infelicidade, da integridade ou da hipocrisia, da rectidão ou de malabarismos. A minha perspectiva é social e moral. Mas obviamente está ligada ao material, tanto na forma da matéria palpável como da matéria como resultado de um sistema de produção. Como vive hoje o homem nas sociedades ocidentais? A que aspira e quais os fundamentos que nutre para atingir os seus objectivos?

Terceiro, falar em decadência ocidental não significa conservadorismo. Significa justamente o oposto. Significa reivindicar uma ruptura com o letárgico arrastamento de algo que se prolonga em mediocridade em vez de se aprofundar em excelência. Algo que permanece porque ninguém ainda se deu conta da sua inoperabilidade ou porque ninguém quer dar conta disso. Falar em decadência pode ser conservadorismo se se defender integralmente a adopção de um sistema de ideias, valores e estruturas do passado. Não é o meu caso, com bem sabem. Qual o sistema prevalecente e o porquê da sua crise? Transformação ou ruptura, mudança ou fim?

Quarto, falar em decadência ocidental não significa uma leitura evolucionista. O mundo ocidental não tem nem decaído progressivamente, nem progredido progressivamente. O mundo ocidental simplesmente acreditou que podia e teima em perceber que deixou de poder, se é que alguma vez pôde alguma coisa. O Ocidente deixou de ser ocidental, se é que alguma vez o foi. O Ocidente faz parte de um ciclo, por mais que lhe custe e por mais que tenha tentado fazer a roda parar. O que me preocupa é se na sua cega procura de uma roda melhor transformou de facto a roda planetária irremediavelmente. Qual o impacto desta utopia ridícula? Como medir o resultado?

Quinto, falar em decadência leva-me a registar que houve mundo chinês, houve mundo árabe, houve mundo romano e houve mundo inca. Paradoxalmente, quando o mundo ocidental mais se assemelha ao mundo na sua totalidade planetária, é também no seu coração que a decadência se dá. Mas é tarde de mais. Como reverter, parar, anular, domar o processo? Como explicar às Américas, às Áfricas, às Ásias? Como reparar a roda e manter os seus diversos raios intactos? Ou já nem há raios na roda?

Mas, sexto, falar em decadência ocidental em princípio nem me obriga a falar em outras potenciais decadências civilizacionais, nem necessariamente estabelecer comparações. Não sou forçado a forjar o Oriente para perceber o Ocidente. Vivemos hoje num planeta claramente ocidentalizado, mais ou menos, pouco interessa. Por isso é preciso analisar o Ocidente porque é ele que engendrou o que hoje vivemos, para bem ou para mal. Por isso basta analisar a decadência do Ocidente e perceberemos como tudo se sonhou e um dia passado se fez e como tudo no presente se desfaz, ou não.

Ficam algumas explicações. Deixarei de massacrar-vos com a "decadência do mundo ocidental". Continuarei com a verdadeira vida em Deli. Mas agora poderão ler apontamentos meus com outros olhos, espero. E vir ver à Índia também porque é que o Ocidente está, estará ou sempre esteve em decadência.

sexta-feira, 27 de maio de 2005

Decadência do Mundo Ocidental – Vendedor de flores

Entro no restaurante já passa da meia-noite. À volta das longas filas de mesa com cobertura de papel branco manchado pela manteiga, pela sangria e pelo arroz doce estão dezenas de adolescentes. Alguns loiros com roupas caras. Outros com casacos escuros de cabedal e ténis rotos. Nas mesas, por entre pratos com generosos restos, muitos telemóveis.

Começo pela primeira fila. O jovem homem de óculos de massa não me olha. Com um gesto de desprezo, a mão manda-me calar antes mesmo de poder falar. Estão duas jovens sentadas à mesma mesa. Uma levanta o olhar e sorri para mim. A amiga exclama: "Já andas a flirtar com monhés? Tás mesmo necessitada pá".

Continuo. A fila seguinte reúne um vasto grupo de jovens. O primeiro adolescente, de camisa branca aos quadradinhos acena-me simpaticamente: "Anda cá. Anda cá!". Repete o imperativo. Aproximo-me. Há alguns casais entre o grupo. Vestem boas roupas. Espero fazer algum dinheiro.

"Então não tiveste ali em Alfama no outro dia?" exclama o adolescente, piscando o olho à loira sentada à frente. "Não me percebes ou não queres perceber? Ou era teu irmão ou o teu primo? Vocês também são mais que as mães, fodas." É tudo muito rápido, não compreendo. Estendo-lhes as flores, não custa nada tentar. "Quer flor?" Riem-se muito. O rapaz de camisa aos quadradinhos insiste. "O que é essa merda que tens aí? Quanto queres por uma?" Respondo. Mas agora são já três miúdos a segurarem e a mexerem nas flores. "Esta cheira mal pá". "Pois, cheira como lá na terra dele". "Dou-te cinquenta cêntimos por uma". Gargalhadas. Acedo. Afinal compro uma por trinta lá em baixo em Alcântara. Mas devolve-me a flor. "Era o que querias. Toma lá esta merda e espeta onde quiseres".

Um rapaz aproxima-se mais seriamente. A namorada à qual estava abraçado quando entrei olha lá do fundo. "Dá lá uma", diz, pega numa flor e com a outra mão estende-me uma moeda de cinquenta cêntimos. Aproximo a minha mão, mas a moeda cai ao chão. Baixo-me para a apanhar. Mas de repente o rapaz dá-me uma pancada leve na cabeça, o meu chapéu cai ao chão, e grita para o restaurante inteiro ouvir: "Ó merda de panasca. Não queres é chupar só dinheiro".

Aos berros masculinos que explodem em coro juntam-se as gargalhadas dos empregados e de mais alguns clientes. Alguns limitam-se a sorrir. A loira engasga-se de tanto rir. As amigas acodem-na. Aparece o empregado e empurra-me. "Vai, sai mas é daqui."

Está muito frio. Depois da ronda pelas discotecas, apanho o metro e o primeiro autocarro. A tempo de o ver acordar. Ao abrir os olhos castanhos, envolto de mantas e ensonado ainda, pergunta: "Papá, o meu chapéu deu-te sorte hoje?".

quarta-feira, 25 de maio de 2005

Decadência do Mundo Ocidental – Sistema político (1)

Não sou suficientemente utópico para acreditar numa assembleia em que os eleitos representam harmoniosamente os vários interesses, sectores, classes e ideologias da sociedade. Em que se debate construtivamente e francamente o que está mal no país, o que deve mudar e para onde se deve orientar a economia, a educação ou a saúde.

Não sou suficientemente eurocêntrico para acreditar que este sistema de democracia liberal representativa assente nos pilares do capital e da economia do mercado seja o único, o terminal e o melhor. Que este seja o sistema que temos que trabalhar continuamente porque mais do que um sistema é um processo.

Não sou suficientemente revolucionário para apelidar os 300 e tal deputados à Assembleia da República Portuguesa de corruptos, acomodados e gatunos. Para defender que afinal está tudo mal, que é preciso cortar o mal pela raiz e olhar para formas alternativas de organização política entre as tribos Guayaki do Paraguay ou entre os guerrilheiros maoístas no Nepal.

Mas acho-me suficientemente bem posicionado para observar uma decadência do sistema político português e ocidental. Observações confirmadas hoje com a presença mensal do primeiro-ministro em S. Bento para o debate mensal com os parlamentares. É perigoso entrar em generalizações. Mas, num pantanoso enredo de nuances em que um parece melhor que o outro, este mais ou menos sério que aquele, e aquela mais sincera que este, não há saída a não ser caracterizar todos de profundamente medíocres.

O debate é vazio. Um diz, o outro percebe e desdiz ou finge não perceber e diz outra coisa. Um debate de surdos-mudos. Em que na fila por detrás dos oradores há sempre um a bocejar, um a telefonar, um a ler ou um a pedir mais um cópo de água daquelas funcionárias gordinhas chamadas Maria ou Gracinda vestindo fatos dos anos oitenta. Em que, mais à direita do que à esquerda, se interrompe o orador a cada quarto de minuto com sonoros e inócuos "muito bem, muito bem". Em que se pretende ferir o adversário como numa batalha medieval, não servindo o capacete inimigo como troféu, mas sim os flashes dos fotógrafos, as citações no jornal do dia seguinte e o ranking das setas "sobe e desce" ao fim da semana.

Em que tudo é um malabarismo de verborreias direccionadas a ganhar prestígio somente naquele minúsculo universo de um hemiciclo que mais e mais se assemelha aos conselhos aristocráticos ou liberais novecentistas, em que uns poucos esclarecidos debatiam o futuro dos que se mantinham na escuridão das letras e dos saberes.

É a degeneração. É a decadência. Porque houve melhor, noutros contextos que não permitiam o alargamento do fosso entre o real e o suposto. É tudo um teatro político. Sempre foi. Mas houve tempos em que os personagens se representavam a si mesmo. Acreditavam em si. Hoje os personagens já nem se conhecem a si mesmo. A máscara ganhou raízes na pele branca. E a plateia vazia.

terça-feira, 24 de maio de 2005

Voltar a Lisboa

Dez meses em Nova Deli. Tanto e tão pouco. Aventura e nada de mais. Casa e estrangeiro. Aqui e ali. Índia e mundo.

Puxar a mala de debaixo da cama. Poeira. Quarenta e quatro graus. Viajar ou voltar? Calor ou frio, ali ou aqui? Pobreza, de carteira ou de espírito?

O táxi não pode parar. Os acompanhantes não podem entrar. O terrorismo tem que ficar à porta. Eu entro. Adeus. Já volto. Mas não é bem assim.

A Índia híbrida aeroportuária. Os funcionários indianos da KLM, da Lufthansa, da Air France, da Northwest Airlines. Bebem decadência, a toda a hora.

A longa espera para o embarque de madrugada. A Sprite custa cinco vezes mais. O adeus sufocado ao telefone. Percebo. Talvez? Espero que sim.

747. A dormida, a comida, a chegada. Amesterdão.

05:45. Abrem-se as lojas. As linhas rectas, os Euros (muitos), o frio e a limpeza. Europa.

A espera, mais uma vez, sozinho, num longo corredor. Acordo: portugueses chegam. Ela censura-o por bater com as mãos ruidosamente na mesa, avisando que o polícia ainda vem ter com eles. Ele responde que se ele vier lhe pega na espingarda e lhe enfia um tiro pelo buraco acima. Não queria, mas sorrio feliz.

Lisboa. Sorrio. Feliz. E eu não queria. Não queria mesmo.

segunda-feira, 9 de maio de 2005

Calor terminal

Aproxima-se o fim do meu primeiro ano em Nova Deli. Hoje à noite há uma festa cá em casa, porque é o último dia em que o JB (o francês Jean-Baptiste) se encontra no lar, antes de partir amanhã de manhã em viagem pela Índia e daqui a um mês de volta para França. Vai haver uma trintena de convidados, um barbecue de bifes de vaca sagrados (para nós), música da viola de um ou outro e conversa. Os exames acabam oficialmente hoje. Eu acabei os meus na semana passada. Termina assim um ciclo, porque há muitos estrangeiros que só ficam cá um ano. O meu amigo Chacate e eu perdemos assim também um flatmate e a sua namorada (presença regular). A família que se fazia, desfaz-se. Far-se-á outra, provavelmente.

O verão deliense está a ser complacente. Qualquer europeu que agora cá chegue quase que morre no primeiro dia, mas para nós já é habitual. Embora estejamos no apartamento no topo do prédio em que o sol bate todo o dia. Mas também houve chuva refrescante de vez em quando e só às vezes, e a partir de agora durante um mês, a temperatura passa dos 40 graus.

Quarta-feira escapo-me para Dharamsala, a capital do governo tibetano (ou o que resta dele) no exílio, sede oficial do (querido) Dalai Lama. Aquilo fica a umas centenas de quilómetros a norte de Deli, na altitude refrescante dos Himalaias. Depois volto a Deli e dia 19 estarei pelo meio-dia no aeroporto da Portela de Sacavém. Um mês em Portugal.

E fica a nota de uma reportagem minha de cinco páginas publicada na revista Única do Expresso, este Sábado. É sobre a cidade de Bhopal, onde há cerca de 20 anos de deu um dos maiores desastres industriais de sempre. Chama-se "Vítimas desamparadas" e espero que gostem da minha estreia no mundo das reportagens.

Decadência do Mundo Ocidental (intro)

Engana-se o que acha que distingo e escolho entre preto e branco. E engana-se quem ache que há cinzento intermédio possível. Há decadência no Ocidente. Resta saber se é uma decadência que é-lhe intrinsecamente natural ou se é uma decadência recente e em aceleração. É uma decadência especialmente no plano social e moral. Baseada fundamentalmente naquilo que paradoxalmente fez também emergir e brilhar o Ocidente, nomeadamente a superioridade material e científica.

Só por eu denunciar o que se passa a Ocidente, isso não catapulta o Oriente para a) a posição de um novo Ocidente, agora mais a Oriente, b) a posição de civilização divinal e perfeita; nem catapulta o Oriente para c) a posição de histórico oprimido que passa a ser a chave para a redenção dos oprimidos.

Sirvo-me do Oriente (a Índia em específico) para denunciar o Ocidente, simplesmente. Aliás, só utilizo o conceito Oriente por motivo de força maior, para classificar o que não é o Ocidente. O Ocidente, sim, esse distingo-o claramente. É a Europa desenvolvida ou em desenvolvimento (escolham o que preferem), a América do Norte, e as ilhotas brancas nova-zelandesas ou australianas, etc., o eixo da superioridade científico-tencológica, a suposta racionalidade e objectividade que depois se refugia na mediocridade da acomodação, da subjectividade, do relativismo radical, basicamente no medo.

A escolha ou distinção entre o preto e o branco, entre o Ocidente e outra coisa qualquer, aliás não faz sentido nem é possível porque um suposto Oriente já é parcialmente Ocidente. O Ocidente exportou-se para bem e para mal. Presentemente mais para mal, acho. Por isso também me debruço perante a decadência do não-Ocidente porque quer ser Ocidente e importa o errado.

Portanto, para além do Mundo Ocidental, duvido que haja outros mundos, de momento. Portanto, estando no que hipoteticamente é visto por alguns como Oriente, tenho a vida facilitada para denunciar a decadência do Ocidente, no Ocidente e fora dele. Portanto, o Ocidente é-me afinal querido, porque denuncio a sua decadência.

quarta-feira, 13 de abril de 2005

Mixed Times (2)

PVR Priya. Um cinema como qualquer outro em Lisboa, em que há pipocas salgadas e doces, cachorros quentes e pepsi cola. Em que no anfiteatro com ar-condicionado há, entre os confortáveis cadeirões, espaço redondo exacto para enfiar a cartolina que prende a bebida gaseificada. Ao intervalo muitos cospem, para o corredor. No fim, agora já só às vezes, batem-se palmas.

Ao lado do cinema há uma loja de relógios da Tag Heuer. Aventurei-me e friamente responderam-me que não vendiam nada a menos de 25 000 Rupias. O salário mensal da nossa empregada doméstica, Sayida, ronda as 2500 Rupias pelos nossos cálculos, o marido não trabalha e tem três filhos menores (um está agora a lavar a minha mota).

De frente à loja uma manada de vacas mal-cheirosas, de rabo grande e imponente, espalhando santidade. Os animais passam pelos grupos de adolescentes de telemóvel na mão, tirando fotografias digitais e enviando-as instantaneamente para o primo no Canadá. Movimentam-se de Reebok no pé e de Mango no peito para o McDonalds.

Nos dez metros seguintes passam por um mago que lê o futuro das mãos, um desgraçado coxo que vende próteses e um sapateiro ajoelhado num cantinho tentando colar a sola elástica de um sapato Nike àquela parte que pisca quando se poisa o pé na merda.

Há ainda um cibercafé por cima da merda, que oferece cursos de informática em dez horas e cursos avançados de inglês em quinze. Passa uma mulher, nota-se só pelo volume do peito e pelo andar, porque está coberta de burkha. Segue um ou dois metros atrás do homem e da filha pequenina, de orelhas furadas com brincos dourados e um brinquedo de plástico em forma de Homem Aranha.

Enquanto que os condutores de triciclos (rick-shaws) rodeiam potencial clientes, negociando, ecoa uma batida sonora igual a tantas outros fins-de-tarde (ou inícios de manhã) em Ibiza, mas acompanhada de um cântico romântico em hindi.

terça-feira, 12 de abril de 2005

Vivências no campus III

Encontrei mais um elemento argumentativo que explica porque é que eu me senti bem, logo à partida, aqui na JNU, e porque afirmo que o espírito universitário aqui é muito mais acolhedor do que em Portugal. Para um artigo no Expresso tive que entrevistar uma especialista em política externa chinesa na minha faculdade, a School of International Studies. Ela chama-se Alka Acharya e é uma doutorada, tida em conta por toda a comunidade académica indiana como grande conhecedora da China. Encontrei-a no escritório dela a pedir entrevista e ela recomendou-me vir a casa dela (no campus) no dia seguinte.

Esperando uma daquelas burguesas casas professorais no campus, na zona das residências dos académicos, como Uttarakhand, fiquei surpreendido quando ao telefone me anuncia que vive no "Warden's Flat 1, Ghodavari Hostel". Uma professora doutora vivendo num anexo de uma das pobres e porcas residências, e ainda por cima num apartamento com nome do contínuo da residência (warden)?

Não me enganei. Ela é mesmo a contínua da residência. Aliás, todos os contínuos das quase 20 residências no campus são professores, normalmente muito reputados. Gerem as chaves dos quartos, fazem visitas surpresas a ver se há visitas não-registadas, controlam a limpeza do refeitório e das casas de banho. Um professor doutor que no dia seguinte nos dá aula. Que viaja em Executiva para uma conferência internacional em Pequim. Nada é incompatível aqui. Bem pelo contrário, há uma comunidade universitária intensa e unida, entre alunos, professores e funcionários, uma amizade e cooperação que dão lugar a esse espírito universitário invejável, em que há diferenças hierárquicas – a um certo nível – e igualdades indestrutíveis.

Em que é possível também jogar futebol com o filho do professor, no estádio, ao fim da tarde. Em que por acaso numa das cantinas ou restaurantes do campus se está sentado ao lado do professor de Teoria das Relações Internacionais. Em que (como o meu flatmate francês) se tem um acidente rodoviário com um professor numa das estraditas do campus. Em que ao nosso lado na aula de Mestrado se senta um colega que é filho de um dos funcionários da universidade (que lava latrinas).

segunda-feira, 11 de abril de 2005

Vivências no campus II

Como já perceberam, há muitos mitos no campus, afinal esta ainda é uma sociedade muito tradicional. Estava a bebericar um chá e a afugentar mosquitos e cães vadios quando a nossa conversa foi interrompida pelo cântico de um homem velhinho, dos seus 70 anos, sentado num banco, com ar de mendigo. Cânticos que soavam a mantras budistas, levantava de vez em quando os braços, como que apelando aos deuses. Um colega explica-me logo seriamente: "este era um aluno de doutoramento brilhante na JNU, mas ficou tanto tempo por cá, adiando a entrega da tese para atingir a perfeição total, que ficou assim, maluco e continua a passear pela JNU".

Mas a verdade não deve estar assim tão longe. No outro dia jantei numa das cantinas ao ar livre e o meu amigo (porque o meu hindi ainda não vai tão avançado) descobriu que um dos homens que nos servia e cozinhava era doutorado pela JNU. Explicou-se dizendo que não encontrou logo trabalho e decidiu ficar pela universidade a que se afeiçoou e o salário afinal não era assim tão mau.

Outro caso é de outro aluno de doutoramento que há uns anos enlouqueceu, não ficou gagá, mas parece que assim um pouco para o demente, com manias e assim. Forçaram-no a abandonar os estudos, mas em troca deram-lhe um pequeno espaço numa das zonas comerciais do campus, de onde agora gere uma loja e atende estudantes e professores, sempre com um sorriso.