quinta-feira, 10 de novembro de 2005

Higiene na Índia

Hesito. Entre a ideia de que as coisas na Índia nem são assim tão más e que a higiene e o valor da limpeza é em grande medida construído e altamente subjectivo dependendo do país e da civilização em que nos encontramos. E entre a ideia de que a Índia é verdadeiramente um país higienicamente insustentável, em qualquer termo e perante qualquer caso comparativo. Neste escrito vou explorar esta segunda ideia.

Se nos meses iniciais me inclinei mais para a primeira ideia, passei recentemente a estar mais e mais refém da segunda. Vejamos que bicharada e que experiências me fizeram mudar. No ano passado, a já conhecida experiência símia, acordando num dia de verão com um macaco sentado na minha cama a afagar-me a cabeça. Há uns poucos meses, estava eu pacatamente a escrever aqui ao computador, descalço, claro, um ratinho mordiscou-me o dedo grande do pé direito. Fugiu antes que o pudesse esmagar. E foi sobrevivendo durante semanas no nosso apartamento, movimentando-se na penumbra da noite e escapando a todas as armadilhas e venenos que nos foram recomendados "guaranteed result, sir" no popular mercado aqui ao lado. Á noite, adormecia com o seu ranger de dentes, quando se decidia refugiar no meu quarto. À média de uma vez por semana algum de nós avistava-o, cada vez mais gordo. Ainda me lembro dos gritos estridentes da namorada maurícia do meu amigo francês, quando esta abriu o armário da cozinha e se deparou com uma já obesa ratazana petiscando arroz basmati e corn-flakes kellog's. Finalmente, à quinta semana, desapareceu e nunca mais vimos o bicho.

Mas há mais. No campus. É raro ir lá beber um chá e não ver uma ratazana a passear pelas residências ou pelas esplanadas. Cheguei a ver uma, tão grande, que fiquei a duvidar por dois segundos se era um gato gordo. Ao terceiro segundo comecei a acelerar o passo. Ontem à noite, mas uma vez, foi a vez de um ratinho entrar na cozinha do restaurante tibetano onde comia um bom "roasted lamb chillie" que passou logo a intragável, indo refugir o meu apetite em perigo de extinção num pacote de Lay's. Foi de qualquer maneira melhor do que há dois meses, quando me serviram no mesmo restaurante um "chicken hakka noodles" com uma barata em cima, maior que muitos ratinhos ocidentais.

Vamos lá continuar. Na semana passada o meu flat-mate moçambicano estava com a namorada no mercado à procura daquelas folhas da couve para fazer um bom caldo verde à portuguesa. Entraram numa loja mas só havia mesmo couves sem a folhagem lateral. O lojista, no entanto, pediu para esperarem para ver se encontrava o que pretendiam. Impacientes os meus amigos deixam a loja e deparam-se com um dos assistentes da loja a vasculhar no lixo, ao lado de cães, ratos e gatos, seleccionando as folhas verdes pretendidas. Estendeu-as normalmente e disse "here, I found for you" com um sorriso tímido mas orgulhoso.

Se já no Ocidente reina a máxima que em restaurante chinês é melhor não entrar na cozinha, imaginem aqui. Conheço um cozinheiro tailandês num hotel de cinco estrelas, de topo, que me conta as mais assombrosas histórias que se passam com os seus assistentes nas suas cozinhas e a frustração que sente por ser incapaz de lhes incutir o mínimo sentido de higiene. Voltemos aqui ao campus. Na Avenida de Berna, numa das faculdades da Universidade Nova de Lisboa, já é normal haver um dia por ano em que os estudantes são encaminhados directamente da cantina para o hospital, por terem comido algum arroz doce ou iscas à portuguesa pouco recomendáveis. Mais uma vez, imaginem aqui. São poucos os estudantes que ainda não sofreram de "food posining" nas cantinas das residências. Numa das cantinas principais, quando escolhemos em grupo o que vamos jantar, olhamos para o menu e cada um vai partilhando com os outros os perigos de um ou outro item, recaindo a escolha por fim nos pratos menos suspeitos e com menos historial de gastrenterite. Em muitos locais do campus cheira-se continuamente o odor de substâncias vomitadas. É normal alunos faltarem às aulas por indigestão, tal como talvez em Lisboa, nos frios meses de Dezembro e Janeiro, ser normal faltar por constipação ou gripe.

Vamos falar de coisas mais ligeiras. Os indianos comem com as mãos. Mais especificamente a mão direita, somente, estando a esquerda reservada para lavar as partes íntimas depois de defecarem. O problema é que nem sempre lavam as mãos depois de saírem das sujas casas-de-banho, e antes ou depois de comerem. E mesmo que lavem, as longas unhas resistem e por debaixo delas o caril cheio de especiarias e saliva. E tudo é transmitido, de mão em mão. O mesmo perigo de transmissão aplica-se ao cuspir. Por toda a Índia a noz de bétel é muito apreciada e mastigada em grandes quantidades, formando uma pasta avermelhada na boca que depois é cuspida, especialmente em esquinas e escadarias de prédios. Alguns donos ou autoridades inscrevem a letras garrafais encarnadas "DO NOT SPIT PLEASE" mas estas vão desaparecendo rapidamente, à medida que o cuspo vermelho cobre a parede. E o ranho. Esse contribui igualmente. Por todo o lado aspira-se o ranho – como que num aspirar das próprias entranhas – levando a mão o nariz, expirando-o para a palma e atirando-o para o chão. Há versões mais directas, deixando a mucosa fluir directamente do nariz para a superfície.

Não me vou alongar sobre a higiene sexual, cujos hábitos me são ainda em larga medida estranhos neste país. Mas pelas conversas mantidas com colegas, pelo que leio em jornais e publicações diversas, não auguro nada de bom. Talvez baste sublinhar o facto que li numa revista de medicina, relativo à alta percentagem de transmissão de doenças pela via sexual/oral na Índia: pretendendo manter a tão cobiçada virgindade até ao casamento, os jovens limitam-se muitas vezes a praticar sexo oral, ignorando no entanto as paupérrimas condições higiénicas dos seus dentes e da boca em geral, levando à propagação de graves doenças sexualmente transmissíveis. Neste contexto, lembro-me também de visitar o parque de camiões inter-estaduais aqui em Nova Deli, quando preparava uma reportagem sobre a transmissão do vírus da sida na Índia. Os camionistas, enquanto esperam a carga, ficam dias, longe das esposas, em tremenda ociosidade, rodeados de centenas de prostitutas. O espaço não se distingue muito de uma lixeira a céu aberto. Proliferam os preservativos usados deitados no alcatrão.

Finalmente, o urinar e o defecar. Sinceramente, não me lembro de muitos dias em que, percorrendo os 200 metros que separam o meu prédio da entrada principal da universidade, não tenha visto pelo menos um menino, um rapaz ou um homem a urinar na margem da rua. Lembro que vivo numa das zonas urbanas mais desenvolvidas da Índia, na conhecida "South Delhi" com a sua emergente classe média urbana, e que a maior "favela" da Ásia, em Bombaim, ainda fica bem longe daqui. O mesmo aplica-se à defecação. Nas viagens de autocarro e de comboio, as histórias a contar a este respeito são intermináveis. Por todo o lado amontoam-se as fezes, no centro das cidades, por detrás da farmácia, na periferia das aldeias – como um campo de minas, ao lado do hospital, à margem da estrada nacional, no corredor do comboio, na bagageira do autocarro. Aliás, nunca cometam o erro de procurar as casas de banho públicas para procederem a semelhante acto na Índia. Tudo menos isso, em nome da vossa sanidade física... e mental.

Acho que fica feito um panorama das condições de higiene na Índia. Polémico, certamente. Mas real. Há no entanto que sublinhar "o outro lado da história" e injectar esta análise com um "relativismo" que poderá desculpar, justificar e explicar algumas coisas. E, complementarmente, há que apresentar explicações – sempre diferente de justificações. Farei isso num outro escrito.

5 comentários:

  1. ca noooooooooooojooooooooooo, tu sai já daíii!!

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  2. Bloody scary indeed, and quite amazing. E divertido ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo nada que não esperasse. O que não deixa de ser curioso é que tamanha falta de higiene parece impensável nas comunidades de origem indo-paquistanesa na diáspora há alguns séculos. Em pequenos, o que nos apavora de facto, sendo hindus ou muçulmanos, é ir a uma casa de banho pública portuguesa (ou na Europa). "Eles defecam, e urinam, e, imagina, não usam água, limpam-se apenas com papel!". Foi já bem crescido que me apercebi que sim, que aquilo era de facto verdade! Um verdadeiro choque existencial. Por outro lado, vejo tanto em muçulmanos como hindus uma mesma paranóia com a higiene (os primeiros lavam-se várias vezes por dia para rezar, e ser cheirado pelo animal doméstico implica mudar de roupa e tomar banho de novo, se se quiser rezar para o Criador). Uma vez que ainda não pus aí os pés, não sei se resistiria por aí muito tempo :)))) Belo texto, já agora, como sempre.

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  3. Caro amigo Milan,
    tens toda a razão e roubaste-me as palavras do teclado... a questão do papel vs. água ia (e vai na mesma) fazer parte da segunda parte (mais justificadora e relativista) sobre a higiene na Índia. Abordarei outros assuntos, mas espero continuar a ter as tuas visitas e os teus ilustres comentários. TINO

    PS: txalo, vem tu mas é já aquiiii!

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  4. Se ficámos impressionados foi muito bom sinal... Obrigado pela descrição e pela indiscrição.

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  5. achei muito interessante esse site mesmo!
    Tem coisas super legais!
    bjs!

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