A Índia é certamente um dos destinos mais cobiçados dos backpackers. Aqui cruzam-se europeus e americanos, obviamente, mas também japoneses e coreanos, e, especialmente, israelitas.
A minha primeira viagem pela Índia foi em 2002. Desde então tenho repetido a dose de mochila às costas regularmente. E há um fenómeno que eu observo repetidamente e com que eu me delicio profundamente.
É o da cooperação e conflito entre os backpackers. É fascinante observar o seu comportamento, as suas aspirações, os seus hábitos etc. porque para além de representarem uma pequena comunidade do que eu gosto de chamar a "fauna global", espelham também a mais profunda essência ocidental (considero os backpackers, incluindo os japoneses e coreanos, como sendo essencialmente ocidentais).
Não será por acaso. É quando estamos fora do nosso habitat que mais nos distinguimos. O ocidental deixa-se observar e caracterizar mais correctamente fora do Ocidente. Por exemplo, como backpacker na Índia.
A própria essência do backpacking reflecte a sua natureza ocidental. A fascinação pelo exótico, pelo desconhecido, no caso da Índia, pelo oriental. A necessidade de fuga de um contexto que é só se admite envergonhadamente e com um tímido sorriso que mais parece um pedido de desculpa. "I'm from Manchester" respondia o meu amigo inglês sempre que um turco lhe perguntava "Where are you from?", fugindo deliberadamente à resposta mais natural, mas mais pesada e complexa, que seria um mero "England".
Gosto de recorrer ao caso alemão, porque é um exemplo radical que se aplica de forma moderada a toda a civilização ocidental. É o sentimento de remorso, o peso na consciência, o medo e a vergonha. Em todas as conferências internacionais de jovens que participei e em todas as situações em que testemunhei a apresentação pública de um jovem alemão no estrangeiro, conto pelos dedos os casos em que estes se apresentaram como "German". Escapam por várias vias.
A maioria rende-se ao simpático "European", mas havia uma rapariga "from Baviera", havendo também casos de "Turkish but born in Germany". Os miúdos mais engraçados refugiam-se na comédia: "Ich bin ein Berliner" dizem, quando é a vez deles de se apresentarem no início, quando se forma um círculo e todos se apresentam numa sessão de "ice-breaking". Todos se riem, e, numa grotesca omissão e aceitação do complexo de identidade, passa-se à apresentação seguinte.
O mais curioso, quando estas apresentações decorrem fora do espaço ocidental (como no caso do meu amigo inglês) é a reacção dos autóctones. Normalmente menos letrados, talvez um condutor de autocarro ou um vendedor de rua, sorriem confusamente. Na sua percepção e avaliação tudo aponta para que o meu amigo respondesse "I am from England", ou por já terem visto o passaporte, ou pela vestimenta e fala dele etc., e preparavam-se já para lançar o cliché do "Oh, ver nice country. Beckham!". Assim, ficam estupefactos e incapacitados de enfrentar o complexo identitário do meu amigo inglês. Muitos limitam-se a sorrir. Outros, mais habituados, continuam a conversar. Na Índia testemunho este fenómeno recorrentemente, e nunca vi um indiano inquirir mais sobre essa misteriosa "Manchester" ou sobre "Where in Europe, exactly?". Respeita-se a identidade do outro e embora acredite que os indianos devem ser das pessoas com menos noção de individualidade e privacidade no mundo, respeitam a resposta.
Este é o primeiro fenómeno, o da fuga para a frente. Os backpackers são jovens que normalmente têm educação superior e horizontes mais largos, interessados por um país distante e misterioso como a Índia. Mas, no fundo, não são nada mais do que derrotados, envergonhados e fugitivos. É uma afirmação generalizada, claro, mas não tenho dúvidas que são caracterizações que se aplicam à maioria dos backpackers que tenho encontrado pela Índia.
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