segunda-feira, 8 de agosto de 2005

Partida chuvosa: o motivo

São cinco da manhã e estamos numa paragem de autocarro indiana numa cidadezinha indiana num estadozinho indiano. À volta já ontem tínhamos vislumbrado alguns brancos cumes de neve dos Himalaias. Demorámos 15 horas a chegar a Deli e não tencionamos ficar muito mais tempo por aqui – um dos dezenas de "hill resorts" indianos em que abunda a ruidosa e degenerada classe média-alta indiana, os casais em lua-de-mel que ainda só trocaram meia dúzia de frases mas já passeiam de mão dada pelo The Mall onde há poucas décadas ainda soavam as botas britânicas.

Está frio e a chuva cai em dilúvio. O pequeno edifício da estação rodoviária está repleto, pessoas dormindo por todo o lado. À nossa frente o "Himachal Road Transport Coroporation semi-deluxe bus" que segundo informação oral e horário pintado sobre uma placa de madeira apodrecida nos deve transportar durante dois dias para Leh, capital do Ladaque budista e parte do estado de Jamu e Caxemira, atravessando os Greater Himalaias, planícies desérticas e passes gélidos acima dos 5000 metros. Verde e branco, dorme ainda. No seu topo já está colocado um barril de gasolina extra.

Com uma hora de atraso, um ensonado condutor abre as portas. Os lugares são conquistados, pela força e pela casta pelos locais; pelo verbo, pelo bilhete e pelo passaporte por nós. Seat number 5 and 6, bem à frente como queríamos, para evitar os saltos acrobáticos e um consequente rabo dorido e assado nas últimas filas. Os bancos não são de madeira, mas de alumínio revestido de uma fina colcha sintética e sem repouso para a cabeça. A qualquer arranque mais violento ou a qualquer batida por trás, as nucas estão expostas a uma barra de alumínio que reluz com ameaça mortífera.

Na sua maioria, são mongolóides no autocarro. Os olhos em bico, parecem um pouco ameaçadores, mas são pequeninos e sorriem muito. São Ladaquis e budistas e anseiam por um regresso rápido a casa depois de a profissão ou a burocracia os terem forçado a vir para baixo, para sul, para as planícies indostânicas.

Mas, no meio do autocarro, quase ao nosso lado, reina uma pequena agitação. Um vagabundo acompanhado de dois meninos à volta dos dez anos de idade procura garantir o seu lugar. Consegue-o com bastante aparato. Os três vêm carregados de sacos, sacas e demais trapos e recipientes para comida e bebida. O homem, alto e barbudo, impõe um pouco respeito – embora não o seja, identifico-o como um sadhu, um homem-santo hindu que viaja as intermináveis terras indianas em meditação, canto e peregrinação.

O sadhu trata as crianças muito mal. Talvez sejam os seus filhos, mas não interessa. Traz consigo um longo pau de madeira com que vai dando carolos dolorosos nas crianças por qualquer coisa de errado que façam. Às vezes também voa um tabefe. Antes ainda de eu iniciar o processo de decisão ocidental se devo intervir ou não, já um pequenino ladaqui aproxima-se rapidamente das últimas filas e habilmente com um gesto só retira o pau das mãos santas. Diz-lhe algo que não percebo. Mas a mensagem é clara. Aqui reinamos nós. Aqui não se bate em crianças. O sadhu, apanhado de surpresa e reduzido a um estado minoritário, não esboça sequer reacção, salvo uma cara indignada e até um pouco infantilmente triste.

Está lançado o motivo para a viagem. Todas as viagens na Índia têm um motivo, uma matriz sobre a qual se constrói uma comunidade, seja de conflito ou de cooperação. O sadhu, pela sua natureza, assumiu essa tarefa. Todos se sentam e a carcaça metálica arranca para os Himalaias.

3 comentários:

  1. Agora seguia viagem contigo(no bom sentido da palavra!)... os teus relatos trazem-nos a visão do outro lado do mundo a que não estamos habituados!! Fascínio e aventura; gostei imenso;)
    Bjs****

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  2. belíssimo diário de viagem k nos leva junto. Obrigada. Bjs e :)

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  3. Este gajo só passeia...
    Fazes bem, aproveita a vida..
    Ah, e continua a escrever..
    Um abraço

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