Não haverá coisa que marcou mais a minha experiência académica em Portugal do que os "coffee-breaks". Estes são o símbolo do estado actual da produção de saberes no país mais pobre da União Europeia. Lembrei-me disto ao assistir a uma palestra do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros indianos, Yaswant Sinha, na minha universidade, a JNU.
Sinha foi o ministro do governo anterior, liderado por Atal B. Vajpayee. Uma aliança de dezenas de partidos, com com os fundamentalistas do BJP à cabeça. É um homem que conheçe as lides internacionais. Que discursou nas Nações Unidas. Que viajou por meio mundo. Que tem capacidade para influenciar a decisão de a Índia carregar no botão nuclear ou não. Que deve tratar Kofi Annan e uma série de chefe de estados de primeira linha por "tu". Basicamente, um estadista de renome a nível internacional, com todas as regalias e luxos possíveis.
Agora imaginem, este Sinha, sentado numa cadeira negra de tantos salpicos de caril acumulados ao longo de dezenas de anos. Num refeitório ainda mais negro, que nada mais é do que uma grande sala com uns bancos corridos e umas mesas que ainda ostentam pequenos bagos de arroz do jantar. Rodam umas ventoinhas no tecto para refrescar o que é impossível refrescar, chego a ver uma ratazana a passear-se por detrás dele, entrando na cozinha. Dezenas de estudantes ouvem com atenção. Estamos no refeitório de uma das residências da JNU, e discursa o ex-ministro, sobre o estado actual das relações Índia-EUA. À sua frente um copo com água. Não lhe chega a tocar.
Voltemos ao coffe-break luso. É a essência das 1001 conferências académicas (supostamente académicas) que se realizem mensalmente em Portugal. Qualquer departamento, qualquer fundação, qualquer núcleo e qualquer partido, juventude partidária, associação de estudos, instituto de investigação e demais agrupamentos institutucionalizados ou não, organizam uma conferência, um congresso, um debate, uma palestra ou uma tertúlia etc. em que normalmente o momento central é o do coffee-break.
Os oradores respiram de alívio quando este se inicia, libertos da responsabilidade de dizerem banalidades e preencherem o tempo que lhes foi reservado. A audiência igualmente, liberta da carga de fingir ouvir com atenção e interesse ou acordando da soneca. Então, todos se reúnem com uma bica numa mão e um pastel na outra, e, mastigando e galhofando, trocam galhardetes e cartões de visita para preparar o próximo evento. Há vários coffe-breaks. Os mais humildes são oferecidos pelos serviços sociais das universidades. Os mais requintados por empresas especializadas de catering cujo dono é primo ou amigo dos copos de um dos organizadores.
Para além da questão académica e científica e do que pode ser uma estagnação de saberes, o que mais noto é uma crescente preocupação com a forma, em Portugal. Poderiam jamais imaginar um ex-ministro e deputado, ou até um presidente de partido, um secretário de estado, a falar nas condições em que vi Yaswant Sinha falar? A obsessão pela forma lembra-me a história de uma amiga minha que estava a estudar em Salzburgo e cujos trabalhos tinham que ser obrigatoriamente entregues em formato digital para no caso de as margens não estarem alinhadas, ou haver um espaço a mais entre duas palavras, ser devolvido e devidamente penalizado na avaliação final.
Yaswant Sinha, depois de um franco e caloroso debate com os estudantes, voltou já tarde para casa, passava da meia-noite. Com ele, iam talvez umas pulgas agarradas à imaculada camisa branca e uns salpicos de caril na cara calça. Mas, com ele, iam também uma riqueza e uma abertura de espírito, e uma simplicidade essencial que podem ser coisa rara na Índia, mas são coisa desconhecida em Portugal, cegado pela matéria e forma.
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