terça-feira, 18 de outubro de 2005

Siddarth Singh

Siddarth, no seu uniforme azul e branco, acena desajeitadamente com a mão. Ainda tento guinar para a direita e escapar-me por detrás de um rick-shaw e para o meio de uma manada de vacas que vem em sentido contrário. Mas, surge então mesmo um segundo vulto por detrás de Siddarth, com uma pose mais respeitável, com mais umas listas douradas no ombro e com um aceno bem mais intimidatório.

Abrando, viro à esquerda com a maior das naturalidades e olho-os aos dois nos olhos. Nenhum de nós tem capacete. A mota comprei-a em segunda mão a um estudante amigo. Os documentos ainda estão em nome dele. Não tenho seguradora. Tenho uma carta de condução internacional, mas só para categoria de veículos ligeiros. E, de toda esta pouca coisa que tenho para me apresentar aos dois que me olham com olhar inquiridor, nada possuo comigo naquele momento. Vamos ver no que isto dá, digo para comigo calmamente.

Siddarth, que nem aprendiz, pergunta-me em Hindi por alguma coisa. Eu sei o que é alguma coisa. Mas como o barulhento motor ainda está ligado, fingo não perceber. Siddarth faz-me sinal para o desligar. Desligo e mando-o repetir. Siddarth repete. No meu rude Hindi, digo-lhe que não falo Hindi. Com isto passaram-se alguns quinze segundos. O suficiente para o chefe de Siddarth se começar a desinteressar de mim e voltar a olhar para a estrada à caça de novo peixe. Está ganha a primeira batalha.

Siddarth vê-se um pouco aflito. As suas bochechas redondas e os seus olhos curiosamente amáveis não lhe permitem desempenhar a sua função autoritária e policial, parece-me. Enfardado num branco que se aproxima perigosamente do cinzento, Siddarth mais parece um daqueles meninos mimados do secundário que saem da escola a correr, pelo caminho empoeirado, em direcção aos balofos braços da mãe e aos rotis e aos lassis.

Mas Siddarth é capaz de muito mais que os seus restantes colegas. Siddarth tem uma capacidade extraordinária que o distingue dos demais milhares de efectivos da Delhi Police que diariamente extorquiam milhares de Euros aos cidadãos delienses. Muda para inglês, que domina surpreendentemente bem, e faz-me umas poucas perguntas para me enquadrar melhor e sondar a melhor maneira de me abordar. Respondo às perguntas de ocupação, morada, nacionalidade, paternidade e breve linha genealógica, nesta ordem, tudo em menos de dois minutos, num tom confidente e respeitoso.

Então, ao terceiro minuto da conversa, Siddarth começa a enumerar pedagogicamente todas as contra-ordenações que cometi. Com ajuda de uma caneta, aponta para uma lista em que são indicados os valores de multa. E, vai apontando e somando todas as que se me aplicam. Que nem aluno atencioso, ainda encostado à mota, assisto silenciosamente. Tanto ele como eu sabemos já como tudo vai acabar. Tanto eu como ele estamos já em sintonia.

Siddarth puxa então uma linha no seu bloco de notas, e chega ao valor total de 6000 Rupias, totalizando vários salários mínimos mensais indianos. Olha para mim, respira, e inicia a segunda fase. Explica pacientemente, ponto por ponto, porque é que devo seguir as regras de tráfego, usar capacete, ter os documentos comigo, ter uma seguradora. Recorre a exemplos e hipóteses. Depois, com um risco todo-poderoso que só uma caneta policial poderia executar, anula todos os valores menos a multa por falta de um capacete. 100 Rupias.

Depois de formalmente me perguntar se quero ir a tribunal amanhã de manhã ou pagar já, preenche o formulário e vai fazendo algumas perguntas mais pessoais para tal. Pago e inicia-se uma conversa amigável, sobre o futebol em Portugal (confessa-se grande adepto de "Figo, Ronaldo e os outros") e sobre a queda de qualidade da equipa nacional indiana de hóquei em campo. Já passam vinte minutos, quando, ainda em amena conversa, Siddarth é chamado pelo seu chefe para tratar de mais um caso. Abandona-nos com um forte aperto de mão e um curioso "hope to see you again soon". Já em andamento, vira-se e aponta sorridente o seu dedo contra a cabeça: "and don't forget, a helmet can save your life!".

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