terça-feira, 27 de setembro de 2005

Keylong

Confirma-se a sabedoria e a preocupação dos ladaquis. O tempo piora muito. Depois de cruzarmos o passe Roh-tang, a uns 4000 metros de altitude, vamo-nos aproximando dos Greater Himalayas, que se apresentam imponentes no horizonte. Cai neve, chuva fria, granizo. À nossa frente um estrangeiro, mas de olhos em bico. À quarta hora de viagem estabelece-se finalmente uma conversa – é chinês mas estuda no Canadá.

Vamos descendo para o primeiro de centenas de vales que ainda nos separam do mítico Ladaque. A paisagem é verde e branca. O autocarro silencioso. E aproximamo-nos do primeiro check-point em que alguns polícias de cara ensonada e metralhadoras em punho nos esperam. É que a outrora inimiga China é já ali ao lado e o Paquistão sempre em frente. Numa casota os estrangeiros deixam os detalhes de passaporte num livro bolorento. O polícia usa uma caneta azul, mas quando é a vez do chinês pede uma caneta vermelha e não diz nada.

Voltamos a embarcar. Chove incessantemente. De vez em quando o autocarro abranda e salta para dentro um aldeão encharcado que volta a saltar para fora poucas centenas de metros depois. Desfilam-se à nossa frente, pela suja janela embaciada, imensos campos agrícolas, de vez em quando uns casebres com chaminé fumegantes, e acompanha-nos pelo vale um imponente rio espumante. Depois de algumas horas de viagem as condições da estrada pioram. Já só é uma pista enlameada que roça perigosamente as turvas águas ao seu lado.

O sadhu acorda. Olha em volta, parece um pouco confuso. Com dois tabefes faz acordar os meninos. Então, como que inspirado por uma paisagem alpina que contrasta com as áridas paisagens desérticas do seu Bihar ou Uttar Pradesh natal, começa a entoar cânticos. Histórias cantadas. Compreendo pouco, mas são operetas populares, recitações religiosas, contos cómicos. Os outros passageiros, incluindo os ladaquis, ouvem-no com atenção e esboçam um sorriso, de vez em quando.

À sétima hora de viagem, o autocarro vira à direita e sobe por um vale íngreme. Só acordo quando pára. Estamos numa pequena aldeia que se espalha ao longo de uma colina e à margem da estrada. Keylong. À volta do verde e fértil vale apresentam-se orgulhosamente os grandes cumes dos Himalaias. Ao longe, aqui e acolá, pequenos telhados dourados reluzem por entre os campos e a neve; mosteiros lembrando que já estamos em terras budistas.

Passa pouco da hora de almoço. Indicam-nos para passar a noite aqui e que o autocarro seguirá pelas cinco da manhã. Mas se tivesse tido atenção saberia que isso era mentira. Ao contrário dos restantes ruidosos e ignorantes indianos ou estrangeiros passageiros, os ladaquis locais são os únicos a retirar silenciosamente a sua bagagem inteira do autocarro. Só na manhã seguinte perceberíamos porquê.

1 comentário:

  1. Olá,
    Nunca ausente por muito tempo, continuo curiosa em saber o que te vai acontecendo a tantos milhares de quilómetros de distância...e aqui ando mais uma vez.
    Porque só os ladaques tiraram toda a sua bagagem? :P Espero pelo novo capítulo!
    Beijinho, raquel duque *

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