Correspondente de Guerra: Constantino Xavier em Nova Deli (revista Atlântico, Abril de 2006)
Desenganem-se os catastrofistas. Não é um efeito das alterações climáticas, mas o Oceano Atlântico já banha as costas indianas – politicamente, por enquanto. Provou-o a vinda de George Walker Bush, distribuindo doces (reactores) e citando Tagore, Gandhi e Nehru num discurso que fez os palpitantes corações indianos, tão ávidos da atenção das luzes da ribalta global, esquecer... Tagore, Gandhi e Nehru.
A Índia parece mais do que nunca disposta a esquecer a sua herança não-alinhada, o seu namoro russo socialista e militar, e mesmo a sua face pacifista, espiritual e oriental com que se apresentou aos ocidentais durante quase um século. Esqueçam Brama, Vishnu e Shiva e as centenas de divindades que completam o panteão hindu. A malta agora quer é McDonald’s, outsourcing e Disney Channel.
Esta história não é assim tão recente. Há duzentos anos que os indianos andam pela América do Norte e foi ali que se iniciou uma das suas frentes anti-coloniais, que viria a resultar na independência, em 1947, com o apoio de Franklin D. Roosevelt. Depois de se abrir a uma nova vaga de imigração indiana em 1965 (na qual chegou o Apu dos Simpsons), a comunidade floresceu até aos dois milhões actuais. É essa a diáspora que domina actualmente Silicon Valley e muitos outros clusters estratégicos em terras do Tio Sam. Em vez da “fuga de cérebros”, aqui já só se fala em “bancos de cérebros”. O fascínio não conhece limites. É na Índia que as sondagens encontram a imagem mais positiva da administração Bush no estrangeiro.
Ora, tudo isto é bom demais para ser desperdiçado, devem pensar em Washington. Ainda por cima no que é considerado o “século asiático”, com a ameaça “amarela” e islâmica logo ao lado. Deixemos as ondas atlânticas varrer distâncias mais longas e banhar as costas indianas, planeiam. A intervenção da NATO no Afeganistão foi só o primeiro sinal disso. A organização tem mesmo discutido a possibilidade de criar uma NATO asiática, entre o Ocidente e o Oriente, com a nação de Gandhi ao leme. As cinzas do Mahatma devem estar a arder de desgosto.
Reforcemos com alguns factos e números esta nova inclinação atlantista. Dos cerca de setenta novos postos diplomáticos norte-americanos a criar este ano, doze serão localizados na Índia. E depois de estarem em frentes opostas durante a Guerra Fria, Nova Deli e Washington têm organizado nos últimos anos dezenas de treinos militares conjuntos, como o jungle warfare nas florestas infestadas de maoístas, os anti-piracy maritime exercises ao longo da costa oceânica e o high altitude combat nos Himalaias.
Quando Bush afirmou na capital indiana que como “potência global” a Índia tem um “dever histórico de apoiar a democracia no mundo” e que “a América e a Índia estão juntas nesta Guerra”, não só foi ovacionado durante vários minutos, como também levou ao fundo todas as dúvidas: cá está o novo aliado asiático do Atlântico. Agora aceitam-se apostas para responder a uma nova questão: ao banhar a Índia emergente, quem irá o Atlântico submergir por estas bandas?
A expansão atlantista encaixa-se em algo mais amplo. Em pouco mais de dois anos, desde Janeiro de 2004, mais de quarenta chefes de Estado e/ou líderes de Governo prestaram uma visita oficial a Nova Deli, presenteando os indianos com atractivos pacotes e acordos de cooperação, como se estivessem, dois mil e seis anos depois, a homenagear a vinda de um novo Messias. Em 2004 a extensa lista incluiu Vladimir Putin, Lula da Silva e Gerhard Schroeder; em 2005 foi a vez de Wen Jiabao, Junichiro Koizumi, Tony Blair e José Manuel Barroso, enquanto que, já este ano, foi a vez de Jacques Chirac, George Bush e John Howard serem recebidos por Manmohan Singh. Todos à procura de garantir uma fatia do apetecível bolo indiano, talhado ao gosto do visitante com cobertura nuclear, económica, científica ou cultural. Ao ritmo actual, Portugal fica com as migalhas.
Mas há oposição. Aqui, na Universidade Jawaharlal Nehru (habituem-se a pronunciar nomes indianos, porque senão acabam como Bush, a chamar o primeiro-ministro de “Palestinian Singh”), reina a extrema-esquerda entre os movimentos estudantis. Estou, portanto com poucas saudades do meu antigo quartel académico na Avenida de Berna.
Aqui, tal como aí, predomina muitas vezes a hipocrisia. Enquanto preparam estratégias para colar cartazes contra o “bloqueio” a Cuba, ou discutem os cânticos que devem entoar a favor dos índios no México, os líderes estudantis passam o dia a beber chá e a comer petiscos que lhes são servidos por crianças, empregadas sem as mínimas condições e mesmo maltratadas pelos patrões. Mas há coisas mais importantes a fazer – como ser um bom cicerone, por exemplo. Desde que cheguei, há dois anos atrás, apenas a visita de um chefe de Estado não foi assobiada, boicotada ou acusada de “imperialista”. A proeza coube a Hugo Chávez.
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