segunda-feira, 21 de novembro de 2005

Sexualidade na Índia

De há uma década para cá o sector audiovisual foi liberalizado na Índia e proliferam os canais. Mostra-se o wrestling americano, o último Senhor dos Anéis, a BBC e até canais russos. O domínio do magnata Murdoch e da sua rede STAR é impressionante. Mas dois condicionamentos limitam esta oferta televisiva.

O primeiro é que um comité de cariz censurador visiona todos os filmes e corta a seu bel-prazer qualquer beijo, qualquer palavrão ou qualquer cena violenta e erótica que possa ser mais chocante. É portanto refrescante poder ver anunciados de manhã ao tomar pequeno-almoço o último Kill Bill na HBO, só para depois à noite desistir do filme a meio porque metade das cenas violentas foram recortadas.

O segundo condicionamento (se é que lhe podemos chamar assim) é a falta de sexo, erotismo e quiçá pornografia na televisão indiana. Simplesmente inexistente. Entre os quase 100 canais cabo que se assinam por 3 Euros ao mês, só há um que transmite filmes soft-eróticos, anglófono, com sinal muito fraco, que misteriosamente aparece num ou outro mês, de madrugada, para desaparecer depois durante mais outros meses. Não há dúvida portanto que um dos maiores negócios por esta banda seja a pornografia pirateada em DVD's e CD Roms.

Nos mercados basta tossir e aparecem logo do nada uma meia dúzia de senhores com aspecto circunspecto e filmes na mão. Incluindo todo um sector que trafica MMS e demais vídeos amadores que escaparam à privacidade dos lares e das escolas (sim, do que mais se fala nos jornais é quando escapa para o espaço público e comercial um desses clips de fraca pixelização demonstrando vagamente dois estudantes num acto sexual – faz as delícias da população masculina que tem uma espécie de Big Brother no seu telemóvel).

Voltando à televisão, voltemos também aqui ao campus. O meu amigo francês, que viveu numa residência durante um ano conta-me o que é que substitui o Canal 18 por aqui. Pela meia-noite, em certos dias do mês, os estudantes, a maioria pós-graduandos e portanto acima dos 21 anos de idade, encontram-se na sala de convívio da residência onde há o único televisor público. Logo que as coisas acalmem, alguém, por acaso, sintoniza a abençoada Fashion TV, que por essa hora dá uns clips de modelos em biquini. Deliciados com as belezas ocidentais, são depois por vezes apanhados desprevenidos por um dos seguranças/guardas da residência que se acha no direito de interromper e censurar tal "decadência" e irrompe pela sala aos berros, ameaçando "denunciar à reitoria". Mas os estudantes têm os seus mecanismos de defesa. Está sempre um perto do interruptor da luz e imediatamente a sala fica envolta de escuridão, possibilitando que os jovens se cubram de camisolas ou mantas (no inverno) protegendo a sua identidade e fujam rapidamente para o seio dos seus quartos.

Não resisto a contar mais uma. Nas mesmas residências, aos Domingos, há um grupo de estudantes que se encontra sempre num determinado quarto, que nem uma seita secreta. O líder senta-se então na única cadeira do quarto e saca de um pequeno romance (não-iulstrado) erótico, daquelas porno-chanchadas literárias que hoje em dias talvez seja do que mais lêem as velhinhas alfacinhas. Em voz alta vai lendo e à sua volta todos se sentam e ouvem com atenção. A porta, claro, está fechada por dentro com um cadeado e as cortinas corridas, protegendo-os da moralidade pública.

Como sabem, na Índia tudo é verdade, e o oposto também. Há uma Índia que vocês (e em certa medida eu também) nem imaginam, uma Índia que vai mais à frente de qualquer outro suposto Portugal cosmopolita. Em Bombaim as orgias sexuais globais são regulares, e não me surpreenderia se a indústria erótica e pornográfica indiana (filmes per capita) fosse bem maior que a portuguesa. Há toda uma sexualidade que escapa ao tradicional entendimento ocidental e à superficial análise da sociedade indiana. Mas estes episódios narrados fazem parte da realidade e assim permitem-vos pelo menos conhecer um dos extremos. Haverá mais, porque afinal a Índia, ao contrário da Europa, é feita de sexualidade.

3 comentários:

  1. Delicioso relato, e tal e qual como eu imaginava que fosse :) Há alguns anos atrás, talvez finais dos anos 80, salvo erro, a belíssima actriz Zeenat Aman escandalizou toda a gente ao aceitar dar um daqueles beijos de meter a língua para um qualquer filme de autor destinado ao público de Cannes. Vi aquilo várias vezes e ainda me custava acreditar que fosse possível ver algo tão "decadente" (como bem dizes :)))) num filme com actores de Bollywood. Pouco depois, talvez 91, 92, surgiu um filme "educativo sexual" em VHS, um qualquer filme avant-garde sobre um casal que, de facto, se metia seminu na cama (ela de biquini, ele apenas de calções). Beijavam-se, punham-se em cima um do outro, rebolavam pela cama. Nada que não se veja em telenovela brasileira dirigida a um público infantil. Mas digo-te: jamais nos passaria mostar tal filme à nossa avó, que, apesar de nunca ter posto os pés na Índia, não deixa de ser uma respeital idosa gujarati, sempre de sari e cabelo amarrado numa trança até à cintura.

    De então para cá já vimos a respeitável diva Shabana Azmi em cenas de amor lésbico com Nandita Das no filme "Fire", de 1998 (obviamente vestidas, mas beijando-se!). Sem falar em algumas ousadias da Mira Nair, que pôs Sarita Choudhury praticamente nua no seu belíssimo "Mississipi Masala", de 1992 (onde participou outra das grandes divas de Bollywwod, Sharmila Tagore, ao lado de Roshan Seth e Denzel Washington - para mim na sua melhor interpretação).

    Vendo as coisas aqui de tão longe no espaço e no tempo, custa a acreditar que se fizessem por aí, por simples brincadeira, gigantescos templos escavados em rocha, há alguns milhares de anos, cobertos de estátuas em poses pornográficas, com gogantes "lingam" fálicos na entrada!

    Pelo que li algures todo este pudor actual terá sido resultado de mil anos de castração mental e de costumes imposta pela presença islâmica, mughal, persa ou outra. Toda a anterior estética hindu, e a sua relação descomplexada com a nudez e o sexo (semelhante à de outras culturas indo-europeias, como a greco-romana) ter-se-á sujeitado aos cânones islâmicos. A alteração foi tão profunda que, na diáspora (e possívelmente aí) não se consegue acreditar que as coisas alguma vez tenham sido diferentes disto...

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  2. Apenas um reparo para dizer que a sexualidade deve ser distinguida de instinto ("drive") sexual,, ou mesmo do conjunto de comportamentos. Estamos perante uma situação em que, uma vez mais, o todo não corresponde à soma das partes. Como bem analisou Foucault, a sexualidade é uma construção discursiva que enquadra a actividade sexual num a perspectiva alargada do "ser si próprio" (já para não falar nos dispositivos de controlo social que lhe estão inerentes). Não concordo, portanto, quando dizes que a Europa não tem sexualidade. Na minha opinião, a Europa vive a dura emancipação de uma sexualidade vitoriana, à medida que a pornografia (um negócio altamente rentável) e o imediatismo da sociedade consumista vieram alterar o panorama das relações.
    Quando estive na Índia senti a sua imensa sexualidade, e a sensualidade velada por detrás dos mais normais comportamentos.
    Parabéns pelos últimos posts!

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  3. Obrigado pelos dois ilustres comentários. Só um reparo ao do João: eu não disse que a Europa *não* tinha sexualidade, mas que "a Índia, ao contrário da Europa, é feita de sexualidade". Sem me alongar, concordo contigo que a sexualidade está igualmente presente em todo o lado (variando as suas manifestações, intensidade etc.), mas o que quis sublinhar é me parece haver algo distintivo na Índia, e que aqui a influência da sexualidade (sensualidade, sentimentalidade, afectividade) é mais basilar e fundamental na sociedade contemporânea do que no Ocidente (mesmo ali tendo em conta a influência do período clássico greco-romano).

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