Há por aí um vídeoclip a circular na Internet em que é filmado um cruzamento numa grande metrópole asiática em que reina o caos total. Entre pessoas, bicicletas, tricicletas, motas, vespas, carros, camiões e autocarros há de tudo um pouco, menos ordem. Para além do facto de o vídeo ser engenharia (magia) informática de um miúdo ocidental qualquer decidido a reforçar ainda mais o fascíneo por um Oriente exótico-incompreensível, as imagens confirmam a nostalgia.
Estive na presença de umas poucas pessoas quando viam o vídeo e ouvi mais algumas comentar sobre ele. Primeiro, poucos se apercebem que aquilo é mera fotomontagem. Segundo, em tom de D. Gracinda que relata um acidente catastrófico ali na esquina do café, submetem-se totalmente ao incompreensível - o que é compreensível porque simplesmente é inexistente. Terceiro, paira no ar um misto de admiração e nostalgia.
O meu pai conta que nos anos 60, quando estudava na Alemanha, se encontrava hospitalizado num quarto com vista para um cruzamente com semáforos. Sempre que estes deixavam de funcionar, o que acontecia com alguma regularidade, ouvia imediatamente ou assistia ao vivo a acidentes rodoviários porque os condutores alemães não sabiam reagir perante a demissão da autoridade suprema semaforária.
Utilizei um exemplo alemão porque me parece mais constrastante com a experiência indiana. Portugal encontra-se no meio. Portanto, em termos ocidentais, a ordem tornou-se um pouco numa obsessão - se me permitem. A ordem, a disciplina e o formalismo em excesso levam à decadência moral, tal como a excessiva dependência do material que nos rodeia mais do que nunca. "Só um Sith pensa em extremos" como me avisa um amigo, parafraseando um boneco de cinema.
Voltando ao cruzamento, há nostalgia, porque há incapacidade ocidental de voltar ao caos primordial - não necessariamente bom, sublinho. Na Índia sobrevive. Os cruzamentos, os semáforos, os polícias, as estradas, as linhas e a matéria, a forma e a disciplina são domados e submetem-se impotentemente à prática, à sabedoria e à experiência.
Percebo que a ordem tenha as suas vantagens. Permitiu que se alcançassem muitas coisas boas. Mas não devemos pensar que a ordem e a forma são tudo. Temos que ter isso em conta quando atravessamos um cruzamento em Nova Deli como turistas, ou quando negociamos com a Índia políticas alfandegárias e financeiras como diplomatas ocidentais.
Isto como pano de fundo leva claro ao tema da dependência e dos extremos. Somos dependentes da matéria, do consumo, da asspeticidade? Reagiriam os ocidentais mesmo de forma mais debilitada a uma catástrofe ambiental planetária do que habitantes de outros continentes? E limitando a análise à psique, o quão estão os europeus mentalmente mais fortes desde que ultrapassaram todos os outros povos e civilizações em termos de esperança de vida, inovação tecnológica e planeamento urbano?
Afinal, enquanto todos os dias em que percorro a minha saloia AE8 vejo cenas de conflito, competição e obscenidades rodoviárias e leio regularmente de mortos a tiro nas auto-estradas europeias por causa de indefiníveis quezílias rodoviárias, num ano em Nova Deli de mota, rodeado daquele caos, não me lembro de ver uma única discussão, quanto menos um único gesto ou palavra obscena originada por questões rodoviárias.
Querem contra-prova? Os únicos momentos em que assisti a tensão nas ruas e avenidas de Deli foi quando os grandes pretos carros e jeeps de vidros fumados da emergente classe média urbana ocidentalizante se permitia atropelar esta calma. Achando-se algo mais, e despojados da essência tradicional indiana que é a base da calma rodoviária que vos anteriormente descrevi, acelerados pela pressa de chegar ao local de consumo ou produção (ou ao contrário, sai ao mesmo) e cegados pelo Ocidente capitalista e brilhante, enconstam as grossas jantes das suas potentes máquinas aos frágeis triciclos fazendo-se tombar como se fossem pequenas peças de Lego.
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