sexta-feira, 27 de maio de 2005

Decadência do Mundo Ocidental – Vendedor de flores

Entro no restaurante já passa da meia-noite. À volta das longas filas de mesa com cobertura de papel branco manchado pela manteiga, pela sangria e pelo arroz doce estão dezenas de adolescentes. Alguns loiros com roupas caras. Outros com casacos escuros de cabedal e ténis rotos. Nas mesas, por entre pratos com generosos restos, muitos telemóveis.

Começo pela primeira fila. O jovem homem de óculos de massa não me olha. Com um gesto de desprezo, a mão manda-me calar antes mesmo de poder falar. Estão duas jovens sentadas à mesma mesa. Uma levanta o olhar e sorri para mim. A amiga exclama: "Já andas a flirtar com monhés? Tás mesmo necessitada pá".

Continuo. A fila seguinte reúne um vasto grupo de jovens. O primeiro adolescente, de camisa branca aos quadradinhos acena-me simpaticamente: "Anda cá. Anda cá!". Repete o imperativo. Aproximo-me. Há alguns casais entre o grupo. Vestem boas roupas. Espero fazer algum dinheiro.

"Então não tiveste ali em Alfama no outro dia?" exclama o adolescente, piscando o olho à loira sentada à frente. "Não me percebes ou não queres perceber? Ou era teu irmão ou o teu primo? Vocês também são mais que as mães, fodas." É tudo muito rápido, não compreendo. Estendo-lhes as flores, não custa nada tentar. "Quer flor?" Riem-se muito. O rapaz de camisa aos quadradinhos insiste. "O que é essa merda que tens aí? Quanto queres por uma?" Respondo. Mas agora são já três miúdos a segurarem e a mexerem nas flores. "Esta cheira mal pá". "Pois, cheira como lá na terra dele". "Dou-te cinquenta cêntimos por uma". Gargalhadas. Acedo. Afinal compro uma por trinta lá em baixo em Alcântara. Mas devolve-me a flor. "Era o que querias. Toma lá esta merda e espeta onde quiseres".

Um rapaz aproxima-se mais seriamente. A namorada à qual estava abraçado quando entrei olha lá do fundo. "Dá lá uma", diz, pega numa flor e com a outra mão estende-me uma moeda de cinquenta cêntimos. Aproximo a minha mão, mas a moeda cai ao chão. Baixo-me para a apanhar. Mas de repente o rapaz dá-me uma pancada leve na cabeça, o meu chapéu cai ao chão, e grita para o restaurante inteiro ouvir: "Ó merda de panasca. Não queres é chupar só dinheiro".

Aos berros masculinos que explodem em coro juntam-se as gargalhadas dos empregados e de mais alguns clientes. Alguns limitam-se a sorrir. A loira engasga-se de tanto rir. As amigas acodem-na. Aparece o empregado e empurra-me. "Vai, sai mas é daqui."

Está muito frio. Depois da ronda pelas discotecas, apanho o metro e o primeiro autocarro. A tempo de o ver acordar. Ao abrir os olhos castanhos, envolto de mantas e ensonado ainda, pergunta: "Papá, o meu chapéu deu-te sorte hoje?".

1 comentário:

  1. Enquanto percorria as tuas linhas um sentimento de revolta cresceu em mim ao ver quão brutal o ser humano consegue ser. O parárafo final comoveu-me por conter nele a maior demonstração de amor. Continua a escrever pois tens o dom de mexer com os sentimentos mais profundos dos teus leitores.

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