Há já duas horas - ainda o sol está a nascer - que subimos pelas montanhas. São centenas de curvas e contra-curvas. Impera o silêncio, só se ouve o ranger da carroça, um ocasional ressonar ou uma exclamação de dor quando o autocarro passa uma lomba ou uma vala e os pequenos ladaquis das últimas filas batem com as suas cabeçitas no tecto. Alguns olham para o alto das montanhas cobertas de nuvens negras e comentam algo num tom preocupado. Mais tarde viria a partilhar da sua sabedoria montanhesa.
Do nada, começam a aparecer camiões militares na direcção contrária. A sua camuflagem verde dá-lhes um toque ensonado a estas horas da manhã. O autocarro enfia-se pelo lado exterior da estrada, beijando a ravina, e passa os primeiros camiões. Mas, à segunda curva, a dimensão do problema agrava-se. Avistam-se dezenas de camiões em fila, todos à espera de passar ao nosso lado.
Os passageiros começam a acordar. Há uma dupla reacção. Os ladaquis, com os seus olhitos em bico ainda ensonados, não parecem muito impressionados. Olham um pouco à volta, em silêncio, e adormecem outra vez. Já nas filas da frente, maioritariamente ocupadas por indianos do planalto indostânico (basicamente: indianos), reina alguma algazarra e todos têm uma opinião, mas ninguém se mexe. O condutor berra com os seus congéneres militares. O seu colega, em Lisboa seria o "pica", é um rapaz novo e espreita timidamente por detrás do motorista.
Há vários generais nos camiões. Pesadamente cobertos por insígnias e condecorações, não se mexem nem se ralam com o que se passa. Assim, não há possibilidade de recuar nem de avançar. À direita os camiões, à esquerda a ravina. Os veículos estão imobilizados há 15 minutos, não há solução à vista.
Como estamos sentados perto da porta da frente, vemo-lo escapar-se. O sadhu, no meio do silêncio traseiro e da agitação fronteira, tinha-se levantado do seu lugar, do meio dos dois rapazes adormecidos. Silenciosamente desce do autocarro – não sabemos bem para onde porque o único espaço para ele pôr os pés seria o fundo da ravina. Talvez para fazer chichi, pensamos.
Dois minutos depois, do nada, a fila de camiões militares movimenta-se e o autocarro pode avançar. Já em andamento, a porta abre-se à nossa frente e salta para dentro o sadhu. Ninguém no autocarro se apercebeu da sua obra. Mas, por um breve segundo, enquanto se movimenta para o seu lugar, partilha connosco o seu segredo. O seu olhar, embebido de sabedoria e magia, e um pouco divertido também, transmite-nos uma mensagem: "Pus isto a andar". E continuamos a subir.
Estás a escrever melhor do que nunca.
ResponderEliminarÉ, é isso, é um génio!
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