Em conjunto com a crónica de opinião "Maoístas, bloggers e empresários" que é hoje publicada no meu espaço mensal "Passagem para a Índia" na revista Atlântico, deixo aqui uma reportagem maior que fiz como enviado do Expresso ao Nepal, em Maio de 2006 (e que nunca chegou a ser publicada na íntegra).
Revolução em curso
Constantino Xavier, enviado a Katmandu
Revolução em curso
Constantino Xavier, enviado a Katmandu
Quase vinte anos depois do início do conflito armado que provocou mais de 16 000 vítimas mortais, o Nepal parece estar em vias de pacificação. O acordo assinado esta semana entre a guerrilha maoísta e o Governo provisório visa acantonar as forças rebeldes e o Exército sob auspício das Nações Unidas e prevê a realização de eleições para uma nova assembleia constituinte.
Mas, tendo em conta o agitado passado político desde 1990, data do fim oficial da monarquia absolutista, este é só mais um tímido passo na transição para a democracia, no que é um dos países mais pobres do mundo. Uma transição marcada especialmente pelo crescente descontentamento das gerações mais novas com a crónica instabilidade política e os repetidos atropelos à democracia que tomaram conta do país desde então (foto: sacrífico de animais para a deusa Kali, num templo a sul de Katmandu).
Da parte dos partidos democráticos, a incapacidade de garantir estabilidade parlamentar, levando em média a um novo primeiro-ministro por ano na década de noventa. Da parte real, o autoritarismo do rei Gyanendra que, desde que tomou posse em 2001, foi gradualmente limitando o espaço democrático, acumulando de forma absolutista as funções de chefe de Estado e de Executivo. E da parte dos maoístas, uma administração paralela caracterizada pela coerção das campanhas de “consciencialização política” e mesmo pelo trabalho forçado e recrutamento de menores.
Tendo a Índia democrática e a China em robusto crescimento económico como vizinhos imediatos, a oposição dos jovens nepaleses não se fez esperar e culminou na onda de manifestações de Abril último, enfrentando o Exército fiel ao monarca. O rei recuou e um Governo provisório – uma aliança entre sete partidos democráticos com o apoio dos maoístas – passou a controlar os destinos do país e as esperanças das novas gerações.
Gagan Thapa (foto), de 29 anos de idade, é o Secretário Geral da União de Estudantes do Nepal e um dos líderes do movimento democrático. As pessoas cumprimentam-no respeitosamente em cada esquina por que passa. “Basta de alterações cosméticas e de revisões pontuais. É preciso mudar a estrutura inteira, eleger uma assembleia constituinte e incluir os maoístas. O poder de decisão deve ser dado às pessoas e não aos partidos ou ao rei”, defende numa conversa madrugadora, ainda o sol está a nascer sobre Kathmandu. Fora do hotel aguardo-o um colega numa mota, para se dirigirem a uma manifestação a 250 quilómetros da capital, onde ele será o orador principal.
“Em 1990 fomos iludidos. Éramos adolescentes e entusiastas e acreditámos que poderíamos conduzir o país para a democracia e a prosperidade. É por isso que hoje desconfiámos do rei, dos políticos e dos partidos”, lembra, explicando que o país vive uma transformação geracional. “Mais de 70% dos manifestantes em Abril eram jovens e quase 90% dos feridos e baleados eram estudantes. Num referendo no nosso campus universitário, mais de 90% votou a favor de um sistema republicano”, sublinha.
Embora durante o dia a cidade testemunhe grande tensão e dezenas de manifestações, quando escurece, Kathmandu é pacificamente tomada de assalto pelos jovens. Nas esplanadas flui o álcool e conversa-se animadamente sobre o rei ou sobre o seu filho, o príncipe Paras, ambos conhecidos pelo seu estilo de vida luxuoso e extravagante. “Isto ainda parece a Idade Média. De cada vez que passa o carro deles, a cidade tem que parar por completo. Devíamos juntar dinheiro e comprar-lhes um helicóptero”, sugere um dos jovens, enquanto um outro controla a televisão, indeciso entre a CNN e a Fashion TV.
Ujwal Acharya (foto), no início da casa dos trinta, é jornalista do diário “Kathmandu Post” e fundador do blog “United We Blog”. Quando o rei cortou, em Fevereiro, o acesso à Internet e à rede telefónica durante uma semana, e aprovou um decreto com que punia qualquer ofensa à sua pessoa, Ujwal passou à acção. “O exército era visita regular na nossa redacção e passou a editar o nosso jornal. Foi aí que percebemos o potencial da Internet, passando a escrever livremente no blog aquilo que testemunhávamos nas ruas e que ninguém tinha coragem de publicar”.
Com recurso ao servidor disponibilizado pela Embaixada dos EUA, o blog passou a ser um dos poucos sítios com informação fidedigna sobre os acontecimentos no terreno, atraindo milhares de visitantes diários. “Até o meu editor entregava-me material para publicar no blog”, refere com orgulho, lembrando, no entanto, as ameaças da polícia e as visitas à esquadra. “Não nos conseguiram intimidar. Afinal, já estavam tantos jornalistas na prisão que até nem me importava em lhes fazer companhia”, explica.
Para Ujwal, a experiência forçada com os métodos violentos do regime absolutista só reforçaram o sentimento democrático dos jovens. “Aprendemos a dar o valor devido à liberdade de expressão e ao papel da imprensa”, admite, enquanto responde a um comentário de encorajamento no seu blog.
Mas, para além dos limites da capital e das novas gerações em rápida modernização, assiste-se ainda a uma pobreza rural crónica e ao domínio preponderante da guerrilha maoísta. Um quarto do território fica a mais de uma semana de viagem da capital, só 50% das habitações têm acesso à rede eléctrica e pouco mais de 2% da população está coberta pela rede telefónica fixa.
É de Dhading, uma dessas regiões inóspitas e abandonadas, que vem Tara Bhandare, um jovem militante maoísta de 30 anos, pai de dois filhos e há quase quatro anos na Prisão Central de Kathmandu (foto). Detido por soldados à paisana, nunca foi formalmente acusado e aguarda julgamento desde então. “Disseram-me que era culpado de actividades terroristas”, diz, do outro lado do gradeamento e com um guarda ao lado controlando a conversa.
Tara faz parte de vários milhares de maoístas que se estima terem sido presos pelo exército com recurso à legislação draconiana (TADO) aprovada pelo rei em 2004 que, segundo diversos relatórios internacionais, viola os mais elementares direitos humanos. Mas, sinal dos tempos de mudança que se vivem no país, confiante de que irá ser libertado, Tara afirma repetidamente que “o rei é o alvo a abater e a república o objectivo a perseguir”.
Sobre as razões que o levaram a juntar-se aos rebeldes, é peremptório. “A educação deveria ser exclusivamente pública e gratuita. Actualmente, só as classes abastadas têm uma boa educação nas instituições privadas. O governo só cobre as zonas urbanas, deixando o mundo rural ao abandono. Nós combatemos essa discriminação, dando treino vocacional, formando as pessoas como cidadãos e dando-lhes educação em questões culturais, agrícolas e ambientais”, afirma, defendendo que a via armada era a única solução. “Em 1995 éramos pacíficos, com uma agenda construtiva redigida em 40 pontos. Mas fomos ignorados pelo Governo e ninguém nos deu atenção”, justifica, adicionando com confiança que “agora podemos ganhar o poder com a nossa própria força”.
É justamente sobre o objectivo dos maoístas que recaem as maiores dúvidas entre os nepaleses. Embora, em raras entrevistas, os seus líderes ideológicos tenham demonstrado um crescente comprometimento com a democracia multipartidária, há quem receie o contrário e veja no acordo desta semana nada mais do que uma estratégia na longa caminhada para um sistema comunista de partido único, tal como sempre advogado pelos rebeldes.
Rajendra Khetan, jovem director de um dos maiores grupos económicos do país e Vice-Presidente da Confederação das Indústrias Nepal (e Cônsul-Honorário de Portugal no Nepal), espelha estes receios, em conversa no seu opulento escritório no centro da cidade. “O Nepal tem um enorme potencial económico, especialmente em termos de recursos hidrográficos, mercado turístico e mesmo como ponte de trânsito comercial entre a China e a Índia. Mas receio que os maoístas, caso cheguem ao poder, levem a cabo os seus planos de nacionalização da economia e agitem ainda mais o frágil mercado de trabalho”.
Acima de tudo, Khetan queixa-se do impacto negativo da instabilidade política no desenvolvimento do país. A indústria hoteleira, o principal motor económico do Nepal, emprega cerca de um milhão de pessoas, mas está em profunda crise. Segundo dados oficiais, entre 1999 e 2005, o número de chegadas de turistas estrangeiros caiu em mais de 25%. As ruas de Thamel, o bairro turístico mais popular da capital, encontram-se quase desertas e a taxa de ocupação dos hotéis ronda os 40%. Ninguém tem interesse em visitar um país à beira de uma revolução.
Nos restantes sectores económicos, as infra-estruturas encontram-se subdesenvolvidas. As fábricas de Khetan, a poucos quilómetros de Kathmandu, sofrem há meses de constantes falhas na rede eléctrica e as greves dos sindicatos são mais e mais frequentes. “No papel somos uma economia de mercado liberal, mas continuamos a viver como no tempo em que éramos um protectorado britânico, com licenças de produção. Há que substituir a classe e a mentalidade política actualmente no poder. Há demasiado tempo que somos um país fechado sobre si mesmo”.
Com os seus 36 anos de idade e um vasto currículo internacional, Khetan incarna, no entanto, ele mesmo a mudança a que se assiste entre as gerações mais novas. Desapaixonado da política partidária e da família real, procura soluções e respostas no sistema económico e nos valores democráticos. “O Nepal é um mosaico de pobreza crónica e é flagelado pela fragmentação e discriminação contra as castas baixas, as mulheres e as minorias étnicas e religiosas. Há que oferecer um modelo de inclusão social e económico a estas pessoas, dando-lhes educação, formação e empregos. Só assim se poderá limitar o espaço de acção dos maoistas”, afirma.
Notas (não editadas) soltas sobre o encontro com mais um entrevistado, Gautam SJB Rana (foto), dono do Babar Mahal Revisited:
Depois de estudar e trabalhar nos Estados Unidos, Alemanha e Índia durante mais de vinte anos, volta ao Nepal. Os 27 palácios da sua família aristocrática tinham sido todos nacionalizados em 1966. São hoje propriedade do governo e em lamentável estado de degradação. Tive a ideia de explorar segmentos turísticos superiores, turismo de luxo.
Recuperou completamente um estábulo de um dos seus palácios, no centro de Kathmandu: Babar Mahal Revisited, hoje um dos centros comerciais mais luxuosos na cidade, com restaurantes, galerias de artes, artesanato, centro cultural e discoteca.
Recorda que por aqui passaram Sting, Steven Seagal, Lachlan Murdoch, entre outros jet-setters globais. “Nos anos 90 o Nepal era o sítio da moda, Todas as semanas aterravam aqui jactos privados com milionários e personalidades de todo o mundo. O meu palácio era palco das mais impressionantes festas e eventos culturais, tambores ecoando a cada esquina. Hoje, está tudo perdido e desolado. Toco tambor para mim mesmo”.
Também em termos políticos, vê uma crise: “em 1990 estávamos todos entusiastas com a abertura democrática, esperando uma nova fase de prosperidade. Mas foi uma desilusão. Os políticos que tomaram conta do Governo cresceram durante décadas num país fechado e absolutista, sem qualquer exposição a valores democráticos. Era óbvio que no Governo iriam espelhar os valores autoritários com que cresceram.”
No mesmo dia realiza-se o casamento entre a filha do chefe do exército nepalês e um aristocrata indiano de Barodá num hotel de luxo: só 150 convidados apareceram, num total de 300. “Já ninguém quer vir ao Nepal, têm todos medo de tiros e manifestações”.
“Isto é mais belo que a Suiça, não há dúvidas. Mas as pessoas vivem miseravelmente. Eu viajei extensivamente pelo mundo rural e as pessoas dizem-me que querem comida e não querem saber de rei, primeiro-ministro, maoístas etc”
“É impossível trabalhar assim. Os nossos investidores e clientes internacionais não querem saber das nossas particularidades e instabilidades políticas. Querem serviço prestado, garantias, segurança e qualidade. Coisa que actualmente nenhum empresário nepalês pode garantir”
“Não há alternativa nos Maoistas: são ultrapassados, antiquados e perigosos nos seus meios. Mas esperemos que se consigam adaptar”.
Recuperou completamente um estábulo de um dos seus palácios, no centro de Kathmandu: Babar Mahal Revisited, hoje um dos centros comerciais mais luxuosos na cidade, com restaurantes, galerias de artes, artesanato, centro cultural e discoteca.
Recorda que por aqui passaram Sting, Steven Seagal, Lachlan Murdoch, entre outros jet-setters globais. “Nos anos 90 o Nepal era o sítio da moda, Todas as semanas aterravam aqui jactos privados com milionários e personalidades de todo o mundo. O meu palácio era palco das mais impressionantes festas e eventos culturais, tambores ecoando a cada esquina. Hoje, está tudo perdido e desolado. Toco tambor para mim mesmo”.
Também em termos políticos, vê uma crise: “em 1990 estávamos todos entusiastas com a abertura democrática, esperando uma nova fase de prosperidade. Mas foi uma desilusão. Os políticos que tomaram conta do Governo cresceram durante décadas num país fechado e absolutista, sem qualquer exposição a valores democráticos. Era óbvio que no Governo iriam espelhar os valores autoritários com que cresceram.”
No mesmo dia realiza-se o casamento entre a filha do chefe do exército nepalês e um aristocrata indiano de Barodá num hotel de luxo: só 150 convidados apareceram, num total de 300. “Já ninguém quer vir ao Nepal, têm todos medo de tiros e manifestações”.
“Isto é mais belo que a Suiça, não há dúvidas. Mas as pessoas vivem miseravelmente. Eu viajei extensivamente pelo mundo rural e as pessoas dizem-me que querem comida e não querem saber de rei, primeiro-ministro, maoístas etc”
“É impossível trabalhar assim. Os nossos investidores e clientes internacionais não querem saber das nossas particularidades e instabilidades políticas. Querem serviço prestado, garantias, segurança e qualidade. Coisa que actualmente nenhum empresário nepalês pode garantir”
“Não há alternativa nos Maoistas: são ultrapassados, antiquados e perigosos nos seus meios. Mas esperemos que se consigam adaptar”.
Anda daí Constantino. Vem viver a nossa terra, de flor vermelha no cano de espingarda. Tens de escrever sobre este dia que passou, mas continuará sempre presente e vivo: o 25 de Abril de todos os tempos.
ResponderEliminarDe jornalista (velho) para jornalista (novo) só te posso dizer que é uma excelente reportagem. O que não me admira, nem admirará os teus leitores, pois todos conhecemos as tuas qualidades e - acentuo eu - os teus dotes.
Fica por aí enquanto achares que aí tens para fazer e ocupar. Mas, repito-te, vem daí. Aqui, em Portugal, precisamos de ti.
Artigo fantástico!
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