quarta-feira, 25 de abril de 2007

Muita confiança (Atlântico, Junho 2006)

PASSAGEM PARA A ÍNDIA (série Correspondentes de Guerra)
CONSTANTINO XAVIER EM NOVA DELI
Revista Atlântico, Junho de 2006

MUITA CONFIANÇA

Rajiv é filho de um casal que emigrou dos famintos planaltos indostânicos para os subúrbios de Nova Deli. Na cidade, o ganha-pão da família dependia das pernas do pai, paquete numa repartição pública, e das mãos da mãe, empregada de limpeza. Um dia, ao voltar da escola, Rajiv viu numa papelaria o livro “Teach yourself English in seven days”. Hesitou, mas confiou no dono, que lhe disse que bastavam 900 palavras para dominar a língua. Afinal, pensou, a um ritmo de aprendizagem de 30 palavras novas por dia, seria daqui a três meses fluente na língua de todos os sonhos. Hoje Rajiv é engenheiro informático na Califórnia, vive num apartamento à beira-mar, e tem três televisões, dois frigoríficos, um carro e uma mota.

São estes os minúsculos épicos que movimentam a sociedade indiana contemporânea. Povoam a imaginação das gerações mais novas que acreditam ter chegado um momento e uma oportunidade histórica, para eles enquanto indivíduos e para o país em geral. A confiança que Rajiv depositou no enganador título do livro, bem como a sua fé no cliché do dono da papelaria pode parecer infantil, mas é o principal segredo da emergência indiana. Ao contrário da imagem tradicionalista e conservadora da Índia, o país testemunha actualmente uma mobilidade social e económica sem precedentes. Basta sonhar e trabalhar. Confiando.

E é o que leva, por exemplo, milhares de jovens a candidatarem-se, sem hesitar, a concursos para empregos, cursos ou bolsas de estudo que têm por vezes uma única vaga. Não há cartuchos a desperdiçar, mas também não há tempo para os contar. É preciso confiar e apostar. É por isso que a retórica conservadora dos Fóruns Sociais não encontra terreno fértil na Índia. Aqui ninguém quer conjugar o verbo “proteger”. Há todo um mundo à espera de ser conquistado.

É na economia que esta confiança mais se espelha. Segundo uma sondagem da ACNielsen a Índia apresenta os consumidores mais confiantes entre 42 países. 93% dos entrevistados classificam as perspectivas de emprego nos próximos doze meses de excelentes ou boas, e 87% descrevem de forma igual o estado das suas finanças pessoais. E enquanto que a nível mundial a média de entrevistados dispostos a investir na bolsa se fica pelos 25%, quase metade dos indianos mostra-se disposta a apostar no mercado accionista.

A confiança indiana alarga-se ao plano internacional. Mesmo com o Paquistão rival e nuclear logo ao lado, nem um único entrevistado classificou a possibilidade de uma guerra como preocupante, e 17% afirmam mesmo não ter qualquer preocupação (contra a média global de 10%). A atitude positiva e os primeiros lugares para a Índia repetem-se em temas como a militarização chinesa, a globalização ou a abertura à economia de mercado.

Há, claro, limitações importantes a apontar a este panorama confiante. As sondagens tendem a entrevistar a ainda minoritária classe média urbana e a ignorar os mais de 250 milhões de indianos que vivem abaixo do limiar da pobreza. Mas seria redutor justificar a confiança indiana como um mero entusiasmo momentâneo pelas reformas económicas que atravessam o país de Norte a Sul desde inícios dos anos noventa.

Há algo de mais profundo e estrutural que explica esta confiança. Por exemplo, a crença muito expandida de que a Índia é o berço de uma das grandes civilizações mundiais, mas que nunca lhe foi dada a oportunidade de se afirmar como tal. Invadida por sucessivas dinastias islâmicas, ocupada pelo colonialismo europeu e depois contida e isolada pela Guerra Fria, é agora uma Índia emergente, independente e poderosa que alimenta o imaginário nacional.

É daí que advém também o agudo sentimento de superioridade indiano. Por mais que o país simbolize pobreza crónica e desigualdades, a sua psique concebe uma Índia líder, velando pela ordem, paz e segurança internacional. Esta tradição tem origens históricas no conceito de “Chakravarti”, o tipo clássico de governante hindu devoto à estabilidade e que protege a sociedade e o mundo do caos e da anarquia. A própria constituição espelha esta tendência, recorrendo aos verbos paternalistas “promover”, “tutelar” e “encorajar” para descrever as responsabilidades internacionais do país.

É portanto precoce conceber a Índia simplesmente como um natural aliado democrático e amigo do Ocidente. É preciso compreender que a sua recente esquizofrenia diplomática encarna uma estratégia a longo prazo. Nova Deli procura reunir na sua manga o maior número de cartas possíveis, mesmo de forma contraditória e incoerente, namorando ao mesmo tempo Washington, Moscovo, Teerão e Pequim, e não abdicando de representar “a voz do Sul”.

Para a Índia e os indianos, os novos templos do consumo e as novas oportunidades internacionais não substituem os pagodes e as crenças do passado. Confia-se que tudo é compatível. Porque, como aqui gostam de dizer com orgulho, na Índia tudo é verdade, e o contrário também.

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