Edição 1794, 17 MARÇO 2007
Índia - Desequilíbrio
No país de Gandhi há mais homens que mulheres, porque os pais não querem ter filhas
“Mais vale pagar um aborto que um dote”
Foto
A actriz Karishma Kapoor no dia do casamento. A boa tradição hindu obriga a família da noiva a pagar um valioso dote ao marido SEBASTIAN D´SOUSA/AFP
Não fossem os painéis a anunciar ecografias por menos de 500 rupias (10 euros) e esta rua do sul de Deli - a capital indiana - seria igual a todas as outras do país: barulhenta, movimentada e com vacas a remexer no lixo. É em sítios como este que existem inúmeras clínicas e ginecologistas, onde desaparecem anualmente várias centenas de milhares de crianças do sexo feminino. Para ser mais específico, de fetos do sexo feminino.
É o retrato do lado mais obscuro da classe média indiana. Muitas mães são obrigadas a abortar as filhas que têm no ventre, pressionadas pela tradição social que quase as obriga a preferirem assegurar uma linha de descendência masculina.
É numa dessas clínicas que trabalha a ginecologista Neena Singh (nome fictício). “Quando elas começam a queixar-se de que já têm uma ou duas filhas, eu percebo logo o que querem e corro-as daqui”, diz, adiantando que, na Índia, o aborto é legal até às 20 semanas. Só que a dr.ª Singh diz respeitar a lei de 1994, que proíbe os médicos de comunicarem o sexo do feto à grávida. “Logo depois do parto, ao verem que tiveram uma filha, é frequente as mães chorarem ou entrarem em choque, ameaçando cometer suicídio”, confidencia.
Ao lado da clínica de Bhagat encontrámos uma jovem grávida de 15 semanas que aguarda o resultado de uma ecografia: “Se for mais uma filha, expulsam-me de casa”, diz sob anonimato. A conversa é prontamente interrompida por uma mulher, talvez a mãe ou a sogra.
O drama do feticídio feminino tem números. Segundo o censo de 2001, por cada mil nascimentos masculinos, nascem, em média, 927 crianças do sexo feminino, um dos rácios mais baixos do mundo. Recordando o ditado “educar uma filha é igual a regar o jardim do vizinho”, a médica Sharda Jain, da Comissão Nacional para as Mulheres, lembra que “as filhas são vistas como um peso financeiro e um estigma social”.
A pressão começa na cerimónia do casamento, quando os sacerdotes pedem que a noiva seja “abençoada com oito filhos”, e repete-se nas cerimónias pós-concepção, em que os religiosos procuram converter um feto feminino num masculino.
A preferência pelos rapazes explica-se pela tradição do dote matrimonial, em que os pais são obrigados a desembolsar quantias em dinheiro e bens (no valor de centenas ou até dezenas de milhares de euros) para encontrarem um noivo para as suas filhas.
Há registo de cartazes, em Bombaim, anunciando que “mais vale pagar 500 rupias agora (por uma ecografia) do que 50 mil (de dote) daqui a uns anos”. Outra razão é o facto de, à luz da lei hindu, só um filho homem poder herdar os bens familiares e realizar os ritos funerários do pai.
O que ainda há dez anos era negligenciado, assume hoje contornos dramáticos. O sexo do feto só pode ser determinado com alguma segurança a partir da 12ª semana de gravidez, altura em que o risco de morte para a mãe é sete a dez vezes superior que num aborto realizado no primeiro trimestre. “Elas vão abortando até terem um rapaz”, explica Bhagat, sublinhando os custos para a saúde pública.
Em termos sociais, o impacto também se faz sentir. Nas zonas rurais mais pobres, em que a prática do aborto é reduzida por dificuldades financeiras, as filhas são vendidas por famílias endividadas que querem escapar ao dote.
As jovens são depois revendidas, por redes criminosas, em distritos onde há menos de 800 raparigas por cada mil rapazes e a procura de mulheres em idade de casamento é grande.
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
DIMENSÃO DO FETICÍDIO
- Vinte milhões é o número de abortos de fetos femininos praticados na Índia nos últimos 20 anos. Dados da revista médica ‘The Lancet’
- No estado do Punjab, no distrito de Fatehgarh Sahib, existem menos de 750 raparigas por cada mil rapazes
- O preço de uma esposa varia entre os 100 e os 600 euros, consoante a casta a que esta pertence, grau de educação e características físicas
Má sorte nascer mulher
Nos anos 70 o Governo indiano encorajou o aborto e as esterilizações para controlar o crescimento demográfico. Hoje, o panorama é o oposto. Em 2006 registou-se a primeira condenação de uma médica por executar abortos selectivos.
Renuka Chowdhury, ministra para o Desenvolvimento da Mulher e da Criança, disse recentemente: “É uma vergonha o nosso país crescer a nove por cento, mas continuar a matar as suas filhas”. Por isso, anunciou a abertura de orfanatos públicos para as filhas indesejadas. “Se não as quiserem, pelo menos deixem-nas nascer e entreguem-nas ao Estado”, apelou, esperando desta forma vir a minorar o desequilibrado rácio entre os géneros.
Para Sharda Jain as medidas são bem-vindas, embora os mecanismos para violar a lei sejam imensos. Nota, por exemplo, que a cor com que o médico preenche o relatório, ou o dia da semana em que este é entregue, serve para comunicar o sexo do feto à grávida.
Jain defende a necessidade de, além da fiscalização, consciencializar os médicos para o que chama de ‘doença social’ e de valorizar o papel da mulher na sociedade. “Um exemplo vale por mil panfletos”, afirma, recordando que o próprio primeiro-ministro Manmohan Singh tem três filhas e nenhum filho.
Índia - Desequilíbrio
No país de Gandhi há mais homens que mulheres, porque os pais não querem ter filhas
“Mais vale pagar um aborto que um dote”
Foto
A actriz Karishma Kapoor no dia do casamento. A boa tradição hindu obriga a família da noiva a pagar um valioso dote ao marido SEBASTIAN D´SOUSA/AFP
Não fossem os painéis a anunciar ecografias por menos de 500 rupias (10 euros) e esta rua do sul de Deli - a capital indiana - seria igual a todas as outras do país: barulhenta, movimentada e com vacas a remexer no lixo. É em sítios como este que existem inúmeras clínicas e ginecologistas, onde desaparecem anualmente várias centenas de milhares de crianças do sexo feminino. Para ser mais específico, de fetos do sexo feminino.
É o retrato do lado mais obscuro da classe média indiana. Muitas mães são obrigadas a abortar as filhas que têm no ventre, pressionadas pela tradição social que quase as obriga a preferirem assegurar uma linha de descendência masculina.
É numa dessas clínicas que trabalha a ginecologista Neena Singh (nome fictício). “Quando elas começam a queixar-se de que já têm uma ou duas filhas, eu percebo logo o que querem e corro-as daqui”, diz, adiantando que, na Índia, o aborto é legal até às 20 semanas. Só que a dr.ª Singh diz respeitar a lei de 1994, que proíbe os médicos de comunicarem o sexo do feto à grávida. “Logo depois do parto, ao verem que tiveram uma filha, é frequente as mães chorarem ou entrarem em choque, ameaçando cometer suicídio”, confidencia.
Ao lado da clínica de Bhagat encontrámos uma jovem grávida de 15 semanas que aguarda o resultado de uma ecografia: “Se for mais uma filha, expulsam-me de casa”, diz sob anonimato. A conversa é prontamente interrompida por uma mulher, talvez a mãe ou a sogra.
O drama do feticídio feminino tem números. Segundo o censo de 2001, por cada mil nascimentos masculinos, nascem, em média, 927 crianças do sexo feminino, um dos rácios mais baixos do mundo. Recordando o ditado “educar uma filha é igual a regar o jardim do vizinho”, a médica Sharda Jain, da Comissão Nacional para as Mulheres, lembra que “as filhas são vistas como um peso financeiro e um estigma social”.
A pressão começa na cerimónia do casamento, quando os sacerdotes pedem que a noiva seja “abençoada com oito filhos”, e repete-se nas cerimónias pós-concepção, em que os religiosos procuram converter um feto feminino num masculino.
A preferência pelos rapazes explica-se pela tradição do dote matrimonial, em que os pais são obrigados a desembolsar quantias em dinheiro e bens (no valor de centenas ou até dezenas de milhares de euros) para encontrarem um noivo para as suas filhas.
Há registo de cartazes, em Bombaim, anunciando que “mais vale pagar 500 rupias agora (por uma ecografia) do que 50 mil (de dote) daqui a uns anos”. Outra razão é o facto de, à luz da lei hindu, só um filho homem poder herdar os bens familiares e realizar os ritos funerários do pai.
O que ainda há dez anos era negligenciado, assume hoje contornos dramáticos. O sexo do feto só pode ser determinado com alguma segurança a partir da 12ª semana de gravidez, altura em que o risco de morte para a mãe é sete a dez vezes superior que num aborto realizado no primeiro trimestre. “Elas vão abortando até terem um rapaz”, explica Bhagat, sublinhando os custos para a saúde pública.
Em termos sociais, o impacto também se faz sentir. Nas zonas rurais mais pobres, em que a prática do aborto é reduzida por dificuldades financeiras, as filhas são vendidas por famílias endividadas que querem escapar ao dote.
As jovens são depois revendidas, por redes criminosas, em distritos onde há menos de 800 raparigas por cada mil rapazes e a procura de mulheres em idade de casamento é grande.
Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli
DIMENSÃO DO FETICÍDIO
- Vinte milhões é o número de abortos de fetos femininos praticados na Índia nos últimos 20 anos. Dados da revista médica ‘The Lancet’
- No estado do Punjab, no distrito de Fatehgarh Sahib, existem menos de 750 raparigas por cada mil rapazes
- O preço de uma esposa varia entre os 100 e os 600 euros, consoante a casta a que esta pertence, grau de educação e características físicas
Má sorte nascer mulher
Nos anos 70 o Governo indiano encorajou o aborto e as esterilizações para controlar o crescimento demográfico. Hoje, o panorama é o oposto. Em 2006 registou-se a primeira condenação de uma médica por executar abortos selectivos.
Renuka Chowdhury, ministra para o Desenvolvimento da Mulher e da Criança, disse recentemente: “É uma vergonha o nosso país crescer a nove por cento, mas continuar a matar as suas filhas”. Por isso, anunciou a abertura de orfanatos públicos para as filhas indesejadas. “Se não as quiserem, pelo menos deixem-nas nascer e entreguem-nas ao Estado”, apelou, esperando desta forma vir a minorar o desequilibrado rácio entre os géneros.
Para Sharda Jain as medidas são bem-vindas, embora os mecanismos para violar a lei sejam imensos. Nota, por exemplo, que a cor com que o médico preenche o relatório, ou o dia da semana em que este é entregue, serve para comunicar o sexo do feto à grávida.
Jain defende a necessidade de, além da fiscalização, consciencializar os médicos para o que chama de ‘doença social’ e de valorizar o papel da mulher na sociedade. “Um exemplo vale por mil panfletos”, afirma, recordando que o próprio primeiro-ministro Manmohan Singh tem três filhas e nenhum filho.
nao é apenas triste...é assutador!
ResponderEliminarAté porqu ena china há coisas parecidas...
António Matos
A questao do dote é que devia sofrer alteracoes... Mas quem é que muda a tradicao?...
ResponderEliminarComentários espartânicos... sinceramente, estava à espera que o tema desse em debate explosivo por esta banda. Estou a ver que não: parece que só reforçou ideias pré-estabelecidas sobre a "maldita Índia". Tenho que pensar noutras coisas...
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