domingo, 18 de fevereiro de 2007

Uma nação de rosto corado (Expresso)

Quase que me ia esquecendo de partilhar aqui convosco esta minha peça que trata de uma temática sempre muito cativante para quem lida com a Índia. Uma temática que merece ser tratada em livros, mas que, por razões óbvias, fui obrigado a tratar num espaço muito limitado (em todos os sentidos).


Expresso, Internacional, 1785, 13 Janeiro 07


Uma nação de rosto corado

Centenas de esculturas eróticas pontuam os templos hindus de Khajuraho, símbolos de uma sensualidade entretanto esquecida e rotulada de anormalidade ocidental

No final de 2006, a Índia festejou efusivamente o segundo lugar alcançado por Santhi Soundarajan nos 800 metros femininos dos Jogos Asiáticos. Mas, quando poucos dias depois o Conselho Olímpico da Ásia anunciou a desqualificação da atleta, por esta ter falhado num teste médico que visava confirmar o seu sexo, o país inteiro reagiu com um profundo silêncio. Soundarajan foi, mesmo assim, condecorada pelo Governo do seu estado, recebendo um prémio de cerca de 25 mil euros. O facto de a medalha de prata já não estar na sua posse foi, simplesmente, ignorado.

O silêncio envergonhado compreende-se à luz dos estigmas que rodeiam a sexualidade na Índia. Longe vão os tempos do ‘Kama Sutra’, a obra em que o filósofo indiano Vatsyayana descreve centenas de práticas sexuais, ou o período em que foram construídos os templos hindus de Khajuraho, decorados com centenas de esculturas eróticas.

A Índia sensual, em que o amor era celebrado de forma divina, deu lugar a uma Índia em que a intimidade física, o desejo e o prazer são vistos como uma anormalidade importada do Ocidente. “Qualquer debate público sobre questões de sexualidade é imediatamente ridicularizado ou hostilizado”, lembra o jovem Partha Pratim Shil, fundador da associação para as questões sexuais - «Parwaaz» -, da Universidade Jawaharlal Nehru. “Vivemos asfixiados entre os partidos nacionalistas, que nos acusam de promovermos valores ocidentais e anti-indianos, e os partidos de esquerda, que nos acusam de exagerarmos um problema marginal e elitista”.

Polícias contra namorados

Todos os anos, no dia de São Valentim, saem às ruas não só namorados, mas também centenas de manifestantes nacionalistas hindus que acusam a celebração de ser um “insulto à cultura e ética indiana”. Não são raras as ocasiões em que polícias passam parques públicos a pente fino para agredirem e insultarem jovens casais partilhando momentos mais íntimos.

Já os milhões de espectadores da indústria cinematográfica de Bollywood só raramente assistem a um beijo na tela. Resultado do longo período de domínio islâmico no Norte da Índia, bem como do colonialismo britânico e dos seus valores vitorianos, este puritanismo social tem, contudo, elevados custos.

Estima-se que só um em 70 crimes de violação é denunciado às autoridades policiais. Dos acusados - nos raros casos em que as mulheres decidem enfrentar o estigma público de um processo judicial -, só 20% são condenados. A média de idade de matrimónio para as mulheres - pouco mais de 18 anos - reflecte o hábito de casar menores à força.


O elevado dote que os pais da noiva são obrigados a pagar ao noivo conduz à prática maciça de abortos e a que, em certas regiões, por cada mil crianças do sexo masculino, nasçam menos de 800 do sexo feminino. Em estados mais pobres, o preço de uma menor chega a ser três vezes inferior ao de um mero búfalo.

O estigma aplica-se também aos homossexuais. Embora a comunidade dos hijras, eunucos que assumem a identidade de uma divindade feminina, seja parte integrante do sistema hindu de castas há séculos, a homossexualidade é severamente punida como comportamento público. O próprio código penal mantém em vigor uma lei, datada de 1860, que criminaliza práticas sexuais ‘contra a ordem da natureza’.

A falta de educação sexual também tem provocado graves problemas de saúde pública. A Índia é o país do mundo com o maior número de infectados com o vírus da sida - mais de cinco milhões de pessoas - e quase 90% das transmissões dão-se pela via sexual.

Para Mahesh Nawal, dirigente da Associação Nacional de Sexologia, é tudo uma questão de sensibilização. “Mais de 70% dos problemas dos meus pacientes explicam-se com a falta de informação, fruto de inúmeros tabus e mitos que assolam a sociedade”, refere o médico. Entre os camionistas de longa distância reina, por exemplo, a crença de que a prática de relações sexuais com uma virgem serve de antídoto contra o vírus da sida.

Com as reformas económicas dos anos 90, e a rápida ocidentalização da sua sociedade, a Índia está contudo a passar por uma fase de grande mudança. O sucesso de revistas orientadas exclusivamente para públicos femininos ou masculinos, os novos hábitos de consumo e a emergente vida nocturna entre as gerações mais novas, especialmente nas metrópoles, têm ajudado a promover o debate.

Nawal alerta, no entanto, para o perigo de efeitos secundários: “As estrelas e modelos ocidentais que aparecem estilizadas nas revistas e na televisão passaram a servir de critério de comparação e isso tem graves consequências a nível psicológico”.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

2 comentários:

  1. "e a rápida ocidentalização da sua sociedade, a Índia está contudo a passar por uma fase de grande mudança."
    pois e'... a questao e que a India historicamente sempre se mostrou muito permeavel 'a introducao de novos costumes e maneirismos... preocupam-me as notas nas paredes dos internet cafe, dos cubiculos individualizados com as cortinas escuras em que nao sao permitidos casais!, as risadas/sussurros dos miudos quando entrava para ler os meus emails- mesmo acompanhada com o meu marido (com a devida modestia) e a relacao dos mesmos com a mulher ocidental nas diversas ruas em que caminhei(dos mais diversos estados!);Atendendo a densidade de pontos internet, penso que neste momento deve estar muito "porn'ancizada"!
    Faz-me pensar qual sera a onda de impacto desta situacao na vida do dia a dia e nas suas proprias mulheres na comunidade!
    Mas Khajuraho e outra historia, magnifico!
    susana

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  2. Muito interessante, Tino! Uma outra visão da Índia, que coloca um freio na emergência da dita potência...

    A economia e a tecnologia podem estar a crescer, mas enquanto houver barreiras sociais deste género (e acredito não serem estas as piores) o ocidente ficará sempre de pé atrás...

    Que pena...

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