quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Soberania do sono

Para um ocidental na Índia não há episódio mais desconcertante do que ver um motorista de riquexó recusá-lo como passageiro só porque está no meio da sua soneca ou porque simplesmente não lhe apatece por o seu triciclo em circulação.

Há dezenas ou centenas de milhares de riquexós em Nova Deli e entre eles existe uma tremenda, e por vezes mesmo fratricida, rivalidade e competição. Um passageiro é quase como uma benção, especialmente um estrangeiro, pronto para ser enganado com uma volta extra ao bloco residencial ou uma infeliz viragem à esquerda quando a placa para o destino aponta para a direita. É também escusado lembrar que o quotidiano na Índia é uma batalha contínua pela sobrevivência de tons muito darwinistas. Quem não explora as oportunidades, arrisca-se a perder no grande jogo que é a economia indiana dos pequeninos.

Então, porque raio é que o motorista se recusa a fazer umas Rupias? Há ocidentais que, perante a recusa, ficam nervosos e irritados. Perante os incompreensíveis e negativos olhos dorminhocos do condutor, deixam-se levar pela frustração. É que ele nem perde tempo. Abriu os olhos, disse "não", e fechou-os novamente, de uma forma tão natural como se estivesse a despachar um charlatão à porta de casa.

Este é um daqueles mistérios interculturais que devem ser compreendidos e percebidos, mas não resolvidos. O ocidental, educado num sistema racionalista em que há um prestador de serviço e um consumidor respectivo em perfeita harmonia, encontra-se perante uma irracionalidade, logo "incompreensível". "Este homem não precisa de dinheiro para comer, para educar os filhos ou para a saúde e para tirar férias?", pergunta-se o ocidental, ainda mal refeito do susto e à procura de um outro riquexó.

Não. Aquele homem, naquele momento precisa de sono. Ou melhor, quer sono. Aquele condutor tomou uma decisão soberana: quero descansar e não me apetece prestar serviço a ninguém. É, mesmo dentro do contexto ocidental, uma decisão racional, calculada e pensada. Naquele momento, o condutor prefere estar parado e reunir esforços ou recuperar calma espiritual. Chamemos-lhe preguiçoso, irracional ou atrasado - não importa. Ele, como indivíduo, tomou uma decisão privada que em nada nos deve afectar (pois não se trata de um serviço público).

Na Escola Alemã, fartavam-se de nos contar a história do pescador mediterrânico que dormitava no seu barquinho e do turista alemão que lhe vinha enumerar as vantagens de trabalhar em vez de tirar a sesta: depois de um mês poderia comprar um segundo barco, pescava mais, vendia mais no mercado, fazia mais dinheiro, comprava uma traineira, pescava mais, empregava uns ajduantes, vendia mais, re-investia, e por aí adiante, até ser o dono de uma milionária frota pesqueira. "E depois?", irrompia o pescador latino, já chateado com tanto paleio germânico. "E depois", dizia o turista, "depois você é tão rico e tão poderoso que pode passar as tardes todas a dormitar à beira-mar". "Isso já o faço agora", retorquia o pescador e recomeçava a ressonar.

Não quero aqui romantizar em demasia a atitude do motorista (ou do pescador). É preciso valorizar o trabalho e é so com investimento e confiança que se mudam as condições miseráveis em que uma grande parte da população vive hoje. Se ele trabalhasse em vez de dormir à tarde, talvez tivesse umas Rupias a mais, ao fim do mês, para contratar um explicador para os filhos ou para, quando a mulher adoecesse, a levar a um hospital melhor.

Mas ele sabe isso e muito mais. Ele sabe o que é a batalha do quotidiano indiano. Quem somos nós para lhe darmos lições de economia e o forçar a interromper o seu sagrado e soberano sono?

2 comentários:

  1. também eu me lembro muitas vezes do pescador que dormita à beira-mar! vejo que a escola alemâ penetrou no profundo do nosso inconsciente...
    e desde já: VIVA O PESCADOR!
    e... à merda com os ocidentais capitalistas.
    e el grande finale deste post: don't wake up, keep on dreaming!
    el che

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  2. Esta história do pescador mediterrâneo está nos a impressionar a muitos, estou a ver. Ela é de Heinrich Böll, diga-se de passagem. Nachzulesen in: www.pheid.claranet.de/anekdote.htm. Vou ver se encontro uma tradução para português.
    Eti

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