quarta-feira, 9 de abril de 2008

Cruzamento

Que me lembre, fiquei há uns dias parado, pela primeira vez, no meio de um cruzamento no exacto momento em que os semáforos deixaram de funcionar.

Até em circunstâncias normais o cruzamento em questão, em R.K. Puram, é dos mais caóticos no Sul de Deli. Como me encontrava vestido a rigor para uma reunião, não me aventurei para fora do táxi, limitando-me a observar, do conforto do banco de trás e com lentes sociológicas, o monumental caos que se seguiu.

Não é difícil descrever o cenário: todos os veículos, de camiões, a autocarros, veículos ligeiros, riquexós, motas, motoretas, bicicletas, carrinhos de mão e até o pedinte que, de pernas amputadas, se movimenta com a ajuda de uma pequena plataforma com rodas, avançam na direcção desejada até tocarem num outro veículo.

Teoricamente, entre os segundos em que os semáforos falham e se atingir este cenário, há espaço e tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual. Por exemplo, o autocarro poderia ter recuado para deixar o riquexó e o tractor passarem, para depois avançar, deixando assim uma enorme clareira que permitira que o trânsito escoasse numa das vias mais congestionadas. Etc.

Mas não. Avançam todos, cegados pelo interesse individual. Poucos segundo depois, como consequência deste capital social negativo, o cruzamento encontra-se transformado num imenso emaranhado de veículos empatados, sem a mínima margem de manobra. É o cúmulo, o fim, penso. Não há possibilidade de saírmos daqui até que chegue a polícia, talvez daqui a meia hora, mas até lá já terá irrompido uma enorme discussão e talvez pancadaria.

Observo: bastantes buzinadelas, nem um grito ou gesto ameaçador. Todos aguardam, expectantes e no conforto dos seus veículos. Segundos depois, surgem, no meio dos veículos, dois indivíduos. Um jovem sique saído do banco de trás de um Mercedes imponente, vestido a rigor, de fato escuro e turbante branco. E um miúdo, magricela, de tez escura, camisa esfarrapada, o bloco de bilhetes na mão denotando o seu estatuto de cobrador num dos autocarros.

Ambos começam a gesticular, a serpentear pelos breves interstícios que separam os veículos, a distribuir ordens: avança, recua, espera, para ali, para aqui! Não precisam de ameaçar: todos os outros motoristas parecem dispostos a concederem-lhes uma autoridade ilimitada. À distância, comunicam um com o outro com recurso à linguagem gestual e a um qualquer idioma e paradigma estratégico que parecem partilhar para solucionar o problema: o do sique talvez derivado da natureza marcial da sua religião; o do miúdo cobrador talvez derivado da sua experiência de domador de um gigante rodoviário.

Pouco menos de um minuto depois, os veículos encontram-se todos em movimento e o trânsito dissipa-se pelas avenidas circundantes. Viro-me e vejo o sique e o miúdo cobrador a entrarem para os seus respectivos veículos, sem no entanto se despedirem ou trocarem qualquer gesto de satisfação mútua. A vida continua.

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