quinta-feira, 17 de maio de 2007

Crise de meia idade

Relendo alguns dos meus textos mais antigos e confrontando-me ultimamente com repetidas faltas de inspiração para produzir novos, apercebo-me do facto de estar a viver uma crise de meia idade. É uma crise de perspectiva.

Ao chegarmos à Índia, ou a outro qualquer novo destino e ambiente, tudo nos parece novo e estranho. Cada minuto representa um conjunto de centenas de impressões e percepções que, uma vez em casa, traduzimos para a escrita, na forma de um diário ou de um blogue. Foi assim comigo, nos primeiros anos de Deli. Cheguei a fazer-me acompanhar por um bloco de notas e uma caneta, onde apontava ideias para textos para este espaço. Preparavo-os com cuidado, mas com grande facilidade e naturalidade. Eram só certezas.

Estou agora, como dizia no princípio, numa crise de meia idade. Já não vejo tudo com esses entusiasmados olhos de iniciante, chocado, fascinado e apavorado. As certezas e os contrastes, límpidos e seguros, têm-se transformado, de forma progressiva, em incertezas, dúvidas e imensas zonas acinzentadas. É talvez assim que se explique a minha crítica à forma superficial, como muitas vezes a chamei aqui, com que muitos desses iniciantes reduzem a Índia a um Carnaval de contrastes. Os contrastes são fáceis e confortáveis. Explica-se tudo com os contrastes. Também eu o fiz e ainda me sinto tentado a fazê-lo.

Ora, devo admitir que a Índia é realmente um país de contrastes. Mas é-o só ao primeiro olhar. O problema é que esta crise de idade média não me permitiu ainda aceder a uma nova linguagem conceptual, nem dominar uma nova metodologia e perspectiva para compreender a Índia para além desses contrastes. Isto é, pressinto que há mais, mas sou ainda incapaz de o explorar, compreeder e transmitir.

É aqui que mais se espelham as minhas limitações literárias. A minha agenda diária não me permite desenvolver essas técnicas de que eu me sinto órfão. Essas técnicas só as conseguimos desenvolver, na Índia, com muito tempo, calma e dedicação. O problema é que a Índia nos convida a escrever, mas só poucos realmente sabem passar a Índia para o papel. Há portanto uma proliferação de perspectivas literárias. Qualquer diário de viagem minimamente aceitável dá hoje um bom e bem vendido livro no mercado português. A Índia está na moda e quando as coisas estão na moda a procura sobre e a qualidade desce quase sempre. O mesmo aplica-se, aliás, ao mercado literário indiano, em língua inglesa. O mundo está com vontade de redescobrir a Índia e fá-lo, de forma ávida, por via de centenas de escritores - europeus e indianos - de segunda, que exploram os clichés e as banalidades do costume, os contrastes a abrir.

Há uma última questão que eu gostaria de denunciar. Ao assumir uma crise de meia idade, e afirmar que "sou ainda incapaz de (...) explorar, compreeder e transmitir (a Índia não-superficial)", assumo, de forma subentendida, a real possibilidade de eu, ou alguém, vir a ser capaz de atingir esse nível superior, de apreender uma Índia real e autêntica.

Estou, obviamente, a cair na mesma ratoeira que denuncio quando critico o paradigma dos contrastes. Não há uma Índia real e autêntica, pronta para ser digerida por uma perspectiva, metodologia ou técnica mais "apurada e desenvolvida". O facto de me sentir rodeado, a cada dia que passa, por mais e mais incertezas e dúvidas é um fenómeno de cariz crónico e persistente.

Em vez de a rejeitar e desprezar, talvez deva celebrar esta condição: afinal, são as complexidades das incertezas e das dúvidas que nos despertam a curiosidade e nos encorajam a explorar os vastos interstícios cinzentos da simplicidade superficial que é a Índia dos contrastes, a preto e branco.

1 comentário:

  1. Você medita ou pratica hatha-yoga?

    Rodrigo Liao
    Brasil

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