sábado, 19 de maio de 2007

A ameaça do neo-orientalismo

É impressionante. 2007 marca claramente a descoberta da Índia, em peso, pelas gerações mais novas de portugueses. Durante os últimos meses tenho recebido dezenas de pedidos de amigos, amigos de amigos, de primos de amigos, entre outros, todos pedindo informações sobre locais a visitar, alojamento, preços etc.

Começa assim, a haver uma cultura backpacking lusa, distinta das demais nacionalidades que vadiam pela Índia. Nos hotéis os recepcionistas já não nos dizem que "you are the first Portuguese guest I have had". Já acontece ouvir-se falar em português no centro de Deli. Já não se contam pelos dedos os portugueses que se encontram na cidade capital. Encontro um, e este conta-me logo que sabe de outros, que encontrou por acaso durante a viagem ou com quem combinou encontrar-se aqui ou acolá, ao longo da viagem, normalmente em Goa.

Ainda estamos longe do momento em que iremos desprezar e procurar evitar um encontro com conterrâneos nossos na Índia. Isso acontece, actualmente, entre muitos jovens franceses e israelitas, por exemplo. Vão para a Índia à procurda de algo inédito, o eterno off the beaten track, e ficam extremamente arreliados quando por lá encontram um outro seu compatriota. Quase todos munidos dos mesmos guias, quase todos com os mesmos orçamentos e limitações temporais, o encontro é, no entanto, inevitável.

Mas, finalmente, a Índia também passou a estar na moda em Portugal. A minha suposição confirmou-se hoje de manhã, ao ouvir o programa Ambientassons, na Antena 3, um espaço chill-out musical para quem volta das noitadas lisboetas. O DJ Nuno Miguel colocou vários sons indianos, entre os quais um cântico religioso hindu "Ohm Namaya Shiva".

É claro que já há décadas que há jovens portugueses a visitar a Índia. O que é novo é a massificação do fenómeno, reflectindo-se também no facto de os preços de passagens aéreas Lisboa-Nova Deli e Lisboa-Bombaim se encontrarem mais baixos do que nunca, pelo menos nos últimos cinco a dez anos. Da minha parte, só posso registar a mudança com bons olhos: assim já vão mais longe os tempos em que a minha partida para a Índia, há três anos, era vista com incredulidade e equiparada a um desterro para o fim do mundo. E perdem, assim também, acutilância as minhas críticas então dirigidas aos limitados horizontes internacionais dos portugueses.

Mantêm-se, no entanto, a minha denúncia de um certo neo-orientalismo, a que dei expressão em vários escritos meus neste espaço e nas crónicas da revista Atlântico. A forma particular como a Índia é apresentada em Portugal, seja pelo DJ Nuno Miguel na Antena 3 ou pela imprensa no seu tratamento da actualidade política indiana, e a forma particular com que os jovens portugueses apreendem a Índia durante a sua estadia neste país, reflectem certos complexos e ansiedades. A Índia é assim, muitas vezes, vítima de um processo de exotização, assumindo uma identidade e uma carga normativa que são reflexo dos nossos próprios complexos e das nossas ansiedades. Imaginamos a Índia de uma forma prepotente, e muito superficial, de modo a servir os nossos interesses, nomeadamente o de exorcitar aquilo que vemos como limitações da nossa própria cultura e estilo de vida (o excessivo materialismo, por exemplo).

É, portanto, bem-vinda esta descoberta da Índia e a vinda de mais e mais jovens e turistas portugueses. O que importa agora, nesta nova fase que se nos apresenta, é evitar que esta descoberta seja apreendida por um único paradigma, por um código normativo pré-estabelecido, ou seja, por preconceitos. O que importa, agora, é que as inúmeras descobertas individuais possam confrontar-se com a diferença da Índia de uma forma aberta e arejada. Isto é, pluralizar, ao máximo, as formas de interacção com a diferença, libertando-as do presente domínio claustrofóbico de um único paradigma, o neo-orientalista.