Começa assim, a haver uma cultura backpacking lusa, distinta das demais nacionalidades que vadiam pela Índia. Nos hotéis os recepcionistas já não nos dizem que "you are the first Portuguese guest I have had". Já acontece ouvir-se falar em português no centro de Deli. Já não se contam pelos dedos os portugueses que se encontram na cidade capital. Encontro um, e este conta-me logo que sabe de outros, que encontrou por acaso durante a viagem ou com quem combinou encontrar-se aqui ou acolá, ao longo da viagem, normalmente em Goa.
Ainda estamos longe do momento em que iremos desprezar e procurar evitar um encontro com conterrâneos nossos na Índia. Isso acontece, actualmente, entre muitos jovens franceses e israelitas, por exemplo. Vão para a Índia à procurda de algo inédito, o eterno off the beaten track, e ficam extremamente arreliados quando por lá encontram um outro seu compatriota. Quase todos munidos dos mesmos guias, quase todos com os mesmos orçamentos e limitações temporais, o encontro é, no entanto, inevitável.
Mas, finalmente, a Índia também passou a estar na moda em Portugal. A minha suposição confirmou-se hoje de manhã, ao ouvir o programa Ambientassons, na Antena 3, um espaço chill-out musical para quem volta das noitadas lisboetas. O DJ Nuno Miguel colocou vários sons indianos, entre os quais um cântico religioso hindu "Ohm Namaya Shiva".
É claro que já há décadas que há jovens portugueses a visitar a Índia. O que é novo é a massificação do fenómeno, reflectindo-se também no facto de os preços de passagens aéreas Lisboa-Nova Deli e Lisboa-Bombaim se encontrarem mais baixos do que nunca, pelo menos nos últimos cinco a dez anos. Da minha parte, só posso registar a mudança com bons olhos: assim já vão mais longe os tempos em que a minha partida para a Índia, há três anos, era vista com incredulidade e equiparada a um desterro para o fim do mundo. E perdem, assim também, acutilância as minhas críticas então dirigidas aos limitados horizontes internacionais dos portugueses.
Mantêm-se, no entanto, a minha denúncia de um certo neo-orientalismo, a que dei expressão em vários escritos meus neste espaço e nas crónicas da revista Atlântico. A forma particular como a Índia é apresentada em Portugal, seja pelo DJ Nuno Miguel na Antena 3 ou pela imprensa no seu tratamento da actualidade política indiana, e a forma particular com que os jovens portugueses apreendem a Índia durante a sua estadia neste país, reflectem certos complexos e ansiedades. A Índia é assim, muitas vezes, vítima de um processo de exotização, assumindo uma identidade e uma carga normativa que são reflexo dos nossos próprios complexos e das nossas ansiedades. Imaginamos a Índia de uma forma prepotente, e muito superficial, de modo a servir os nossos interesses, nomeadamente o de exorcitar aquilo que vemos como limitações da nossa própria cultura e estilo de vida (o excessivo materialismo, por exemplo).
É, portanto, bem-vinda esta descoberta da Índia e a vinda de mais e mais jovens e turistas portugueses. O que importa agora, nesta nova fase que se nos apresenta, é evitar que esta descoberta seja apreendida por um único paradigma, por um código normativo pré-estabelecido, ou seja, por preconceitos. O que importa, agora, é que as inúmeras descobertas individuais possam confrontar-se com a diferença da Índia de uma forma aberta e arejada. Isto é, pluralizar, ao máximo, as formas de interacção com a diferença, libertando-as do presente domínio claustrofóbico de um único paradigma, o neo-orientalista.