sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

O paradigma dos contrastes

O paradigma é repetitivo e, vocês aí, triste audiência portuguesa, preparem-se para mais uma dose quando a troupe mediática lusa, integrando a comitiva presidencial, chegar a Nova Deli para a semana: a Índia é, pelo menos para a maioria dos jornalistas superficiais que temos em Portugal, o país dos contrastes. É o paradigma catch-all que, simplista, permite um óculo agradável de leitura deste segundo maior país do mundo.

Isto é, sucumbindo ao relativismo, o contraste passa a ser verdade absoluta. Um plano de uns meninos miseráveis mendigando num cruzamento e depois um plano de um restaurante de luxo qualquer, com Bentleys à porta. Está feita a reportagem para o jornal das oito: "Índia, o país dos contrastes" e mais umas balelas. Os mais políticos exploram depois a tese de que o país poderá sucumbir, usar as metáforas das duas velocidades e das duas Índias e a ideia de que a Índia dos ricos está a enriquecer à custa da dos pobres.

A Índia como país dos contrastes é um paradigma agradável. Chamo-lhe de paradigma poque, mesmo que alguém mais corajoso adopte outra aproximação ou a temática seja muito específica (um encontro empresarial luso-indiano, por exemplo), o tal paradigma dos contrastes está lá, sempre presente e sempre merecedor de uma referência, mesmo que indirecta. Ele, digamos assim, ensombra quase toda a cobertura jornalística portuguesa que se faz da Índia (há excepções, raras). O paradigma reconforta o espectador, no seu sofá em Alcabideche. Cá está algo que nos escapa, um país que é tudo e nada ao mesmo tempo. Um país que é rico e pobre, bonito e feio, pacífico e violento ao mesmo tempo. O passo seguinte é óbvio: fascíneo. Ai que exótico, Zé, levas-me lá? É tão diferente.

Para quem, como eu, anda por cá há algum tempo, e para quem lê esta vida em Deli há algum, as coisas são obviamente mais complicadas. São complicadas porque, simplesmente, não são diferentes. A Índia é, algumas particularidades óbvias à parte, um país como qualquer outro, com os problemas do costume que acompanham tanto o Zé no sofá como a sua mulher e também o Bill Gates. São problemas humanos, portanto universais.

A ideia até é gira: implica que nós no Ocidente vivemos um mundo cinzento, monótono, homogéneo e repetitivo. Implica que na Índia tudo é incerto, inseguro, diferente, colorido, espontâneo e circunstancial. Ora, para quem quer ter pão para comer e telhado para se abrigar das intempéries, que eu saiba, a primeira opção é sempre a mais desejável. Acham que a mulher que carrega tijolos nos ombros tem tempo para reparar no seu colorido sari que contrasta com o escuro betão da casa que a sua família constrói, a cinco Euros por dia, para um agente imobiliário qualquer que, muito provavelmente, ainda violará a sua filha de sete anos?

Não interessa. Os contrastes. Esses sim, celebrados, embora eles nos ceguem. Mas não interessa. Ver em profundidade custa. Tempo, paciência, abertura, complexidades, profundidade. Tudo coisas a que poucos jornalistas portugueses se dedicam, especialmente quando integrados em comitivas presidenciais e quando empaturrados de caviar.

3 comentários:

  1. É um mal geral. As pessoas não se dão ao trabalho de tentar ampliar a consciência e simplesmente observar!

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  2. Sabes o que mais custa? É saber que se consegue mover uma comitiva em busca do sub-continente encantado dos cifrões, ignorando que o lema da "maior democracia do mundo" é apenas uma farsa.Estou a imaginar o aparato nas ruas centrais de Nova Deli - especialmente em CP e na área do abismal palácio presidencial - e imagino instantaneamente o olhar curioso e ao mesmo tempo incrivelmente esperançoso das inúmeras crianças semi-despidas e envoltas pelo imenso negro liberto pelos milhões de tubos de escape, daquela que é uma das potências mais poluidoras do mundo.

    Desejo profundamente que, um dia se movam comitivas como esta, mas em nome da defesa dos direitos humanos mais básicos, como o da alimentação, saúde e educação para todos sem qualquer tipo de excepção; neste e em vários outros países que constituem no seu total mais de metade do mundo.

    Espero que um dia todos acordemos do nosso sono profundo apoiado no nosso umbigo!

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  3. Sabes o que mais custa? É saber que se consegue mover uma comitiva em busca do sub-continente encantado dos cifrões, ignorando que o lema da "maior democracia do mundo" é apenas uma farsa.Estou a imaginar o aparato nas ruas centrais de Nova Deli - especialmente em CP e na área do abismal palácio presidencial - e imagino instantaneamente o olhar curioso e ao mesmo tempo incrivelmente esperançoso das inúmeras crianças semi-despidas e envoltas pelo imenso negro liberto pelos milhões de tubos de escape, daquela que é uma das potências mais poluidoras do mundo.

    Desejo profundamente que, um dia se movam comitivas como esta, mas em nome da defesa dos direitos humanos mais básicos, como o da alimentação, saúde e educação para todos sem qualquer tipo de excepção; neste e em vários outros países que constituem no seu total mais de metade do mundo.

    Espero que um dia todos acordemos do nosso sono profundo apoiado no nosso umbigo!

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