terça-feira, 22 de abril de 2008

Padanyaasa (My love life)

Padanyaasa, do amigo João Reis Nunes (com quem redescobri a Índia, em 2002, e cujo My Love Life já devia ter sido publicado em livro), que deu o nome a este blogue e acompanha este vida há muito, pelo menos desde o seu início. Obrigado.

Padanyaasa

Mais de dois anos passaram desde que regressámos da Índia e já tantas pessoas morreram nos comboios a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, tantas pessoas mortas que não chegaram a entrar nos comboios e caíram em charcos de lama estagnada nos bairros junto aos caminhos de ferro. Os porcos, as crianças vão remexer aqueles túmulos rasos e vão encontrar os ossos de todas essas pessoas que morreram, vão desenterrá-los e brincar com eles, vão fazer como o macaco do 2001 e bater os ossos uns contra os outros, vão utilizá-los como armas, vão ferir e afugentar as outras crianças.

E mesmo assim as imensas prisões vão constituir armadilhas em movimento a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, e as pessoas vão entrar nelas e olhar com olhos tristes pelas grades das janelas, vão desenrolar as folhas de jornal vão comer.

É noite cerrada em Delhi e o meu amigo chama o meu nome. Quando acordo ele está sentado na cama, aterrorizado, à beira das lágrimas. E depois eu estou no seu sonho, e do nosso quarto sem janelas nós não vemos o imenso grito, o sofrimento uníssono das crianças carregadas por crianças, das crianças carregadas por cães, das crianças a remexer no esgoto e das crianças a serem mordidas por ratos. Eu estou no sonho do meu amigo, meio a dormir, e estou numa enorme colina sobre Lisboa e depois as explosões, depois o apocalipse, e o apocalipse a aproximar-se.

Os meus sonhos eram bastante mais simples: eu era um jogador do Benfica, as pessoas gostavam de mim, havia confusas querelas por minha causa, eu era tido em conta.

E nas manhãs tudo continuava estranho, um sonho dentro do sonho, eu dentro do meu amigo e aquela cidade imensa de milhas e milhas - e os milhões e milhões de pessoas, todas iguais, à nossa volta. E apesar disso cada uma daquelas pessoas era uma história, um drama, um grito diferente - e eu era também um grito. Tinha a sensação de que me queriam arrancar a pele. No velho bairro muçulmano nós entrávamos para nos perder e percorríamos um longo caminho no meio da multidão que se encaminhava para a gigantesca mesquita ao pôr do sol – deixávamos de ser nós, passávamos a fazer parte daquele sofrimento todo, aquela dor descalça, atravessada de moscas.

Depois diziam-nos para sair. Era suficiente, diziam eles. Iam rezar, diziam eles. Nós não devíamos lá estar enquanto eles rezavam. Nós íamos procurar sítios para comer, sítios para telefonar para casa.

E por isso no velho bairro muçulmano, mesmo junto ao imponente forte de Delhi, as labirínticas ruelas cavalgadas por ratos e as caras adoráveis das crianças a tornarem-se lentamente em máscaras de olhos brilhantes e dentes aguçados, e travestis tocavam-me e eu deixava e as lágrimas daquela gente deixavam marcas na poeira das suas faces e eu recusava-me a olhar para elas. Facas luziam na escuridão, músicas contraditórias em lugares que eu não identificava, sorrisos e farsas e tantos corações cheios de fatalidade, tantas pessoas que dançavam. Para além da alegria e da tristeza, para além do bem e do mal. Nos templos Jain, nos templos Sikh, éramos recebidos de braços abertos e comíamos a comida dos deuses. Ficávamos sentados nos tapetes dos templos a ouvir os instrumentos dos deuses e eu fechava os olhos e esperava um alívio, alguém que viesse ocupar o meu corpo por algum tempo. Uma substituição, para poder descansar.

E telefonava à minha mãe de ruelas sem fim nem destino, e os vampiros da noite de Delhi aproximavam-se de mim. O meu amigo, ao longe, falava tranquilamente com crianças, no meio dos ratos mortos. As ruas eram tão apertadas que eu não via o céu. Dizia à minha mãe para não se preocupar.

E assim, cada vez que penso naqueles comboios a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, eu penso nas escadarias que vão dar aos rios e nos banhos purificadores, penso em pessoas calcinadas impedidas de sair de carruagens, algures nos desertos do Gujarat. Penso nas linhas ordenadas de camelos, ao longe, debaixo do sol que ardia, e penso na minha cara tapada por um lenço, os meus olhos vermelhos da poeira do deserto. Penso nas aldeias perdidas onde nunca nenhum comboio parou, e do modo como abrandávamos e de como as crianças vinham a correr acompanhando as carruagens, o modo como as crianças estendiam as mãos para me tocar. Penso em mim a pensar nestas histórias todas que guardo em mim, estas histórias que mais ninguém sabe, e algum dia terei tempo de as contar? Penso em mim sentado na porta do comboio e nas lágrimas de uma menina a caírem nos meus joelhos, e ela encostava a cabeça no meu ombro e rezava, falava, suplicava, e aquelas palavras eram as palavras de tanta gente e mesmo assim eu não entendia nada.

2 comentários:

  1. Namastê: excelente texto. Então mas agora que a Índia está tão na moda ninguém publica ests crónicas orinetais do seu amigo? Talvez o melhor seja negociar c editoras brasileiras! Mas só depois do novo Acordo!!
    Abr. da Luísa Pires

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  2. Pessoalmente não gostei. Não gosto desta maneira de olhar para a Índia. Ou para África. Ou para Portugal (porque também há quem olhe assim para o nosso país). Não gosto deste olhar de cima, de fora, sentencioso e paternalista.

    Sérgio

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