terça-feira, 8 de abril de 2008

Sons nocturnos, riquexó

Negociamos brevemente e entramos, ali para os lados do Khan Market, para um riquexó. A noite está amena e anuncia o Verão. Já são quase dez da noite e as avenidas, exaustas, começam a respirar o ar fresco do Lodhi Park.

O motorista arranca e manuseia o sintonizador de rádio, incorporado algures por trás do volante. E logo ecoam das colunas, rudes e rítmicos, os sons bhangra de Bollywood. As bandas sonoras dos filmes de sucesso mais recentes fazem-nos companhia até passarmos pelo INA Market e entrarmos para a Ring Road que, a esta hora ainda, apresenta uma imensa serpente de veículos em movimento, todos ansiosos por abandonarem o centro da cidade.

Noto agora que a estação de rádio sintonizada é a pública
All India Radio. Passa alguma publicidade, em hindi e inglês, seguido do noticiário anglófono das dez em ponto, com aquele estilo característico das suas locutoras, um raro sobrevivente da Índia de Nehru, da Deli dos anos cinquenta, cinzenta, não-alinhada, firme e segura. São estas as vozes radiofónicas que, em 1990, me faziam companhia, ao final da tarde, sentado na cozinha da nossa casa nas Fontainhas, com as chuvas lá fora, enquanto observava a nossa empregada a preparar o caril do dia seguinte.

Abandonamos a circular e terminam as notícias do dia. De repente, uma voz imponente, daquelas que em Portugal só ouvimos na Antena 2, anuncia o programa semanal de Western Classical Music: We shall open today with Tchaikovsky's Romeo and Juliet, subtitled Overture-Fantasy, at the request of a distinguished listener who called us from Shimla, Himachal Pradesh.
Here it is. A good night to you out there, listening to us, all over India and the world.

Imperturbável, o motorista continua a galgar ruas e avenidas, agora mais desertas. Das colunas ecoam os sons sinfónicos, majestosos, enquanto que o pequeno riquexó, verde e amarelo, cruza a brisa da noite. Nos cruzamentos a composição de Tchaikovsky é interrompida pelos sons de uma ou outra buzina, pelo arrancar de um pesado ou pelo cuspir de um ciclista, ali logo ao nosso lado.

Chegámos ao nosso bairro, escuro, adormecido, silencioso. Estamos agora em frente a nossa casa, pagámos, mas não nos afastamos: duvidamos, como que enfeitiçados pela música - terá o motorista deixado aqueles sons clássicos sintonizados só por nossa causa?

O triciclo motorizado faz um esforço para realizar a inversão de marcha na ruela apertada e arranca, leve. Já vai ali ao fundo, prestes a entrar na avenida, e ainda ouvimos os imponentes sons das tubas, dos baixos e dos tambores a ecoarem pela noite de Deli.

2 comentários:

  1. Constantino, há duas hipóteses, ou o motorista estava mesmo a gostar da música ou nem a ouvia, tal o hábito de ter alguma coisa a tocar na rádio, fosse o que fosse, em contraponto às buzinas do trânsito de Delhi.

    ResponderEliminar
  2. Olá Gi: é justamente esse o mistério que me ocupou e levou a escrever este texto. Mas o mais surreal foi mesmo ouvir Tchaikovsky num riquexó a atravessar a noite de Deli!

    ResponderEliminar