quarta-feira, 4 de agosto de 2004

A pequena dona de casa

Subimos por uma íngreme escada. Na Índia, nas cidades, há sempre escadas em todo o lado. Só os hóteis de luxo têm rampas de acesso para as brilhantes jantes às vezes encrustadas de diamantes, e, depois de o homem com o turbante e pena abrir a porta, os delgados pés só precisam de caminhar para o elevador.

Aqui, em Karel Bagh, temos que subir uma escada íngreme em que cada degrau tem a sua particularidade, seja uma mancha vermelha da pasta que os indianos mastigam, seja um montinho de esterco de vaca, seja uma ratazana ou seja só um recém-nascido com barriga insuflada.

Recebe-nos um senhor escuro (isto do tom da pele tem uma importância extrema aqui... ou em todo o lado?), de boxer-shorts e camisa interior, como a maioria dos homens que nos atendem nesta procura de habitação. Em baixo, na rua, continuam os sons das trotinetes, do vendedor de bebidas, de amendoins ou de carne fresca de galinha que ainda ontem foi injectada com 150 miligramas de proteínas.

Vemos o quarto e não interessa, porque o Suhail já está em animada conversa com o senhor, e eu só percebo que ele já anda a negociar o preço, embora eu nem lhe tenha dito ainda que nem que me pagassem iria ficar ali. Viro o meu olhar à volta. É um andar com imensas portas, todas dando para um pequeno mundo. De um dos quartos, o odor intenso a pó de pimenta a fritar numa frigideira. Quase que não consigo respirar. Da janela vem uma salvadora brisa, morna, directamente do monte de esterco em que os cães rebolam e procuram restos.

Oiço gritos. Crianças, provavelmente os filhos. O quarto ao lado tem uma cama, um sofá e uma televisão, sintonizada no Cartoon Network que está a dar “The Mask”, aquela grotesca figura verde, a falar fluentemente hindi.

Estão três crianças. De uma só vejo os pés, está deitada de costas para mim, encoberta pela parede. O outro é um pequerrucho, tipo três anos, mas já com aquele olhar de quem diz que se vai safar muito bem em Nova Deli. Depois, uma menina, aí dos seus seis anos. Cinco, talvez. Só passados uns minutos reparo que toda a actividade dela está condicionada pela minha presença, um ser estranho, mas certamente cativante pelo claro tom de pele, pela roupa limpa que visto e pelos sapatos grandes e com linhas amarelas que atraem qualquer olhar infantil.
Começa por trazer maternalmente a comida aos irmãos mais novos. O mais novo mete a mão à papa e ela dá-lhe prontamente um estalo na mão. Começa a chorar. Ignora-o e, quando olho de volta, já está a varrer freneticamente o chão, várias vezes seguidas, com aquela infantil preocupação de teatralizar um movimento que normalmente é tão natural. Varre três vezes os poucos metros quadrados. O mais novo continua aos berros. Vira-se e com a autoridade tão típica de um adulto, retira o telecomando ao mais velho e muda de canal, simplesmente vai mudando de canal, até que o rapaz reage e protesta, já em tom choroso. Satisfeita a sua necessidade de autoridade maternal, passa outra vez pelo programa Cartoon Network, mas muda outra vez, e só com o último berro do rapaz é que deixa A Mascára falar finalmente hindi.

Os gestos e as acções da menina são tão calculados como o de um actor profissional num teatro. Mas o mais belo é que a sua representação é feita com tanta entrega e com tanta dedicação a uma imagem de mãe com que foi confrontada desde os primeiros dias de nascença. Obviamente que isso também pode ser visto como um condicionamento à liberdade e desenvolvimento pessoal, mas isso, na Índia, pouco importa. O que conta, afinal, é posicionamento de cada um em relação ao outro, como no início de um baile renascentista, em que cada par se coloca numa complexa hierarquia e representa, exprime e reivindica constantemente o seu papel com toda a entrega possível – condição vital para a sua manutenção.

4 comentários:

  1. tinha q vir uma foto dos meninos, seja no japão, na india, ela vem sp...

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  2. Falta profundidade crítica a este texto: descreves uma realidade de reprodução e constrangimento social e não te posicionas perante ela. Compactuas com as hierarquias estabelecidas, segundo as quais são atribuídos papéis às pessoas, que assim se vêem coarctadas na sua liberdade de escolher o melhor para as suas vidas? Parece-me que estás a celebrar a existência de hierarquias e de papéis tradicionais. Qual é o espaço da agência? Será que ser uma 'pequena dona de casa' é a única vida possível para esta menina. Provavelmente é, mas não deverias estar revoltado com isto? Com o facto de, muito provavelmente, ela nunca poder vir a ter a oportunidade de estudar em Lisboa e escrever um blog sobre isso?
    Em suma, qual é a tua posição sobre estas identidades atribuídas por outrem, ou por estruturas? É que o silêncio parece-me laudatório, um pouco como aquele cinema português do tempo do Salazar que celebrava a vida humilde e pobre.

    Por outro lado, em termos formais, julgo que está um texto excelentemente escrito. Tens um poder descritivo muito forte, e fazes-me imaginar claramente as ruas pestilentas/belas de Delhi.

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  3. Meu caro gales,
    sabes bem que nao alinho com relativismos, muito menos no espectro cultural. No entanto, sou um convidado. Sou um descobridor. Sou um observador, acima de tudo. Deixa-me observar e descrever. Deixa-me partilhar a beleza da hierarquia, a beleza do estaticismo, a beleza do imobilismo. A beleza eh pouca, certamente, mas existe. Deixa-me compreender primeiro, para depois julgar e/ou agir. E para quem escreve tao bem e tanto e com tanta alma e dedicacao como tu, percebe que a propria escrita eh uma denuncia, uma forma de partilhar o que de mais e menos bom nos rodeia, em Lisbo, ou em Nova Deli. Saudade

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  4. Meu caro goês,
    concordo contigo. Estás ainda numa fase de descoberta e, neste momento, talvez seja demasiado cedo para teres já uma perspectiva crítica sobre tudo. Mas deves lutar sempre por ver na profundidade das coisas. É claro que ver uma menina a varrer o chão de casa é bonito, mas o que é que isso significa? Só assim poderás atingir o conhecimento sobre as coisas - ao te negares a julgá-las pela superfície e ao recusares o que te é dado de bandeja. Bem sei que não precisas de lições minhas nem de ninguém sobre como conhecer a Índia.
    Um abraço com saudades.

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