quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Campus, sementes, erva daninha

Como vos transmitir a beleza, a pureza e a violência dos acontecimentos que acabo de testemunhar? A entrega, a dedicação, a agitação, a histeria. Os ideais, as ideias, a discussão, a democracia, o grupo e as massas. O suor que escorre pelas costas. A erva daninha que cresce e as coisas parecidas que afinal ninguém viu e depois só restou pedir desculpa pelas sementes atiradas ao vento que todos pensavam iriam morrer porque não haveria vento para as levar, mas por isso mesmo elas crescem aqui mesmo, entre nós, as sementes e a erva daninha, o ódio e a morte e o cheiro a carne assada.

A palavra, o microfone que falha de dez em dez segundos. Os olhos fixos, as pupilas atentas. Os cânticos marxistas, o trabalhador das indústrias, os camponeses we salute you with our red flag, lal salam, lal salam, lal salam. As pernas que tremem de agitação, quanto tempo esperei por isto?

Espera na Avenida de Berna 26C. Vamos ao Docks ou ao Blues? O Pedro vai para a rua, mas ele é tão giro. Não me digas que não viste, fizeram-no só com uma toalhinha a cobrir, não viste? Não vamos falar de matéria. Comissão de estágios, acho que deveria haver mais. Não há condições nenhumas para estudar, livro aberto, sms, Nokia ou Siemens? Lindo, fiz duas directas e safei-me com um 14. Setembro melhoria, o prof curte-me e como há discussão de nota peço-lhe um 17 que ele dá porque me curte. O Portas tem mesmo cara de maricas. Não me digas que não sabes que eles andam todos metido na Casa Pia, não sabes? Aparece em Benidorm e bubas monumentais!

O carro aproxima-se, um jeep azul. São dezenas, talvez cem, impedem a sua progressão. São do ABVP, o movimento indiano dos estudantes ligados ao Bharatiya Janata Party, os nacionalistas hindus radicais e fundamentalistas. O campus da JNU é, como já sabem, dominado pela esquerda há dezenas de anos. Aqui resistiu-se sempre. Aqui construiu-se a frágil democracia indiana. Aqui acredita-se nela, normalmente dentro do quadro ideológico socialista, mas nem sempre.

Acredita-se nos fracos e nos oprimidos. Algo que soa a mofo e bolor na nossa Europa, algo que aqui é tão importante, porque não há pão, há miséria, há um rapaz descalço coberta de bolhas pustulentas deitado na sarjeta e todos passam, os cães também.

E agora há algo de tão parecido. Algo que nunca vivi, mas que me está próximo porque tenho a mania de assinar com Hermanns. Porque a minha mãe nasceu em Heerdt em 1948, com as crateras à volta, tudo castanho, buracos grandes à beira do Reno. Porque o meu avô, que nunca conheci, só foi escrivão und hatte nie eine Waffe in der Hand, nunca disparou um tiro, não, tinha graduação forte e por isso ficava sentado à escrivaninha a fazer trabalho de administração e viajou e voltou, culto e aberto, falava grego e búlgaro, recebeu o meu pai Aurobindo aus Indien, Goa, die Portugiesiesche Kolonie, de braços abertos, mas, pequenina, brilhante, a cruz suástica no peito no uniforme castanho e o cheiro a gás.

A suástica, outra vez aqui, tão parecida, ligeiramente diferente, ao contrário, diferente ligeiramente. Hindutva. Nazionalsozialismus. BJP. NSDAP. ABVP. Hitlerjugend. RSS. Gestapto. VHP. Sturmstaffel. Renascença hinduísta. Neues Deutschland. Greater India. Grossgermanien. Tod den Juden. Die Muslims, die. A Índia nuclear. Panzer & Messserschmidt. Vande Mataram. Jai Hind. Deutschland uber alles.

Motherfucker, Sisterfucker, Out, Out, Out!

Sementes da morte. Pensamento único. Revisionismo histórico. Violência. Violações em grupo e em massa. Mulheres escalpadas. Homens espancados até à morte, partir a nuca com uma catana é mais rápido. Para não deixar provas, petróleo e um fósforo, cheira a carne assada. Muçulmana. Às vezes cristã. Não importa, a carne é a mesma. Das minorias, dos traidores, anti-patriots, anti-Hindu India, Pakistani friends, spies, terrorists, motherfuckers, sisterfuckers, animals, blackies, whores, dirty dirty dirty, we do not want you in pure Hindu India.

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