sexta-feira, 6 de agosto de 2004

Na cantina Toflas

É uma delas, no campus, porque há várias. As cantinas das residências. Onde a comida pode ser deliciosa, porque acima de tudo é um acto social em que todos comem ao longo de longas mesas de madeira e se servem das grandes tigelas de arroz branco e de caris e molhos picantes. Come-se com as mãos, com uma habilidade que o Ocidente há muito desaprendeu, com uma veneração contínua pela comida, amaciada, misturada, amassada, desfiada manualmente. Mãos que depois são lavadas rigorosamente (e não antes) numa bacia em que o cano entupido da bacia faz elevar a água e o ranho e o cuspo e as coisas amarelas e vermelhas e os restos de comida até tudo se espalhar pelo chão e ser arrastado pelos chinelos azuis e brancos para os corredores e os quartos.

Há outras cantinas, dizia. Uma chama-se Toflas. Ninguém sabe bem o porquê deste nome. Tal como a avenida pela qual passei ontem, com o singular nome de August Kranti Marg. Belo nome. Provavelmente um bolchevique do século XIX russo.

A cantina é na vizinhança da JNU Students Union e fica por debaixo da poeirenta Foreign Students Association que vos descrevi anteriormente. Uma grande sala. Uma frente tem diversas aberturas que hipoteticamente poderiamos chamar de janelas. A outra frente é fechada, uma parede que talvez um dia foi branca, mas hoje é comida pela humidade e pelo musgo. Esta parede fica por cima do balcão em que nos entregam a comida, depois de, claro, termos prepaid. Por vezes, certamente, bocadinhos de parede caem e misturam-se com o mixed dal, caril ou chicken tikka.

Todas as restantes paredes estão cobertas por largos cartazes de propaganda política. As pessoas, em especial os alunos acabados de chegar, olham para eles enquanto esperam pela comida. Também eu olho e delicio-me.

The IMPERIALISM of today aggressively seeks to suborn the nation-state to reinforce its policies rather than to allow the state to act on the priorities of the domestic classes and the people. Loss of SOVEREIGNITY of the nation translates directly into loss of sovereignity of the people and their rights. The EROSION of sovereignty is not in economic terms alone, it determines political institutions and democracy and affects people’s rights in public education, health and social security. – SFI

À minha frente, um grupo de 10 miúdos adolescentes no auge da puberdade monopolizam todo o potencial sonoro possível da sala. Há uma escola secundária para os filhos das centenas de funcionários do campus. Certamente estão a gozar o intervalo de almoço e vieram ter à cantina dos grandes para se divertirem. Vestem todos calças azuis e camisas brancas. As golas, não só do lado interior, estão castanhas de sujidade corporal. Mas aposto que tomam banho duas vezes por dia. O líder do grupo, um pequeno rufia, vai contando piadas e imitando a voz dos colegas, os seus gestos ou outra coisa qualquer, desde que faça os outros rir e afirme a sua posição dominante.

If I die today, every drop of my blood will inaugurate the nation great. Indira Gandhi - NSUI

Há um pequeno rapaz que passeia por entre as dezenas de mesas, com um pano na mão. A sua tarefa consiste em levar a loiça suja e passar o pano húmido pelas mesas sujas. Fá-lo com extrema dedicação. Logo que vê alguém levantar-se, corre para a mesa respectiva e leva os restos e passa o pano pela superfície. Ninguém lhe fala. Não comunica. Só quando alguém está ainda a comer e ele se aproxima para levar algum prato já vazio, pede autorização com um grunhido humilde e submisso, correspondido com um leve acenar de cabeça ou simplesmente ignorado. Vejo que olha com os olhos brilhantes para os rapazes barulhentos à volta da mesa à minha frente, que agora trocam cartas Magic. Não se aproxima uma única vez. Mas cada segundo livre que tem é utilizado para lançar os seus olhos brilhantes para aquela mesa alegre e ruidosa.

Reject communism and divisive forces. Reject the alliance between Islamic terrorism and communist betrayal. Support the Israeli-US world alliance. – ABVP

Ao meu lado duas estudantes discutem sobre uma terceira estudante ausente. Vestem jeans, têm as unhas pintadas e o cabelo atado em forma de rabo de cavalo. A cara não esconde a maquilhagem. I hate her. Not for what she does. But I hate her as a person. Enquanto os dedos amassam o arroz. Toca o telemóvel. Ok, let’s have some beers tonight. Is he coming? I heard he has a car. Is he rich? Cool.

When one makes Revolution, one can’t mark time, one must always go forward. The repression of bourgeois state by proletarian state is impossible without a revolution. Lenin – AISF

À minha frente os rapazes saem a correr, empurrando-se mutuamente. O mais pequeno cai estatelado no chão e fica para trás. Não perde um segundo, levanta-se e regressa ao grupo que já vai a sair da porta. Vejo-o a ganhar balanço para tentar empurrar um colega mais forte. Deve ter caído outra vez lá fora, mas desta vez no pó. Este levantar-se-á e cobrirá as paredes e as frases e as pessoas e será difícil distinguir as coisas umas das outras.

1 comentário:

  1. Tino:
    escreves muito bem. Este post é do melhor que já vi. Parabéns e continua, tens-me como leitor fiel.

    João

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