quarta-feira, 18 de agosto de 2004

Campus, sementes, erva daninha (cont.)

O jeep azul aproxima-se, o ódio cerca a viatura, out out out! Centenas de estudantes agora. Alguns socialistas misturam-se e tentam defender o ocupante, um professor caxemire da Delhi University que no ano passado foi acusado pela polícia de ter colaborado no atentado terrorista de separatistas caxemires ao Parlamento indiano. Tinha sido gravado um telefonema seu for a do contexto e utilizado como prova.

Foi condenado à morte, embora como terrorista seja mais inocente do que muitos de vocês aí em Lisboa. Depois de um ano na prisão, em que o torturaram e ameaçaram fazer coisas terríveis aos seus dois filhos de cinco e dez anos e à sua mulher, continuou a recusar-se a admitir uma mentira. Foi ilibado pelo Supreme Court. Vinha falar-nos da sua experiência e da necessária auto-determinação caxemire que defende. Mas não o querem deixar falar. É um traidor. Vergonha para a origulhosa Mother India, com a sua cabeça estrategicamente colocada em Caxemira.

Motherfucker, Sisterfucker, Out, Out, Out!

Voam pedras, o jeep tem duas janelas estilhaçadas. É obrigado a recuar. Entramos, os outros, os democratas. Os nacionalistas, os olhos transbordam ódio, ficam a gritar em coro. Tensão. Sementes voam pelo ar. Ainda bem que a JNU não é terreno fértil. Mas está vento hoje. Vão certamente cair uns quilómetros mais adiante e a erva daninha crescerá e o cheiro a carne assada não tardará.

Dentro, fala a sua advogada, em seu nome. Let them in, let the ABVP in, they have the right to express themselves. If they want to talk, let them. Mas não entram. Cercam o edifício e continuam aos berros. Sisterfucker, campus chalo, Pakistani!

A sala alberga centenas de estudantes. Ganham entusiasmo com as palavras da advogada. Gritam por sua vez slogans e batem palmas, cantam, ensurdecedor, e o suor escorre pelas faces, pelas costas, pelo peito e pelas pernas. Escorre e cai em pingos no chão.

Let us march peacefully for the democratic freedom of speech and hope he maybe join us later to share his experience with us. Todos saem, em marcha. Somos mais de 500 agora. São onze da noite. A frescura nocturna não arrefece o calor político. A marcha passa por todas as residências no campus universitário. À porta de cada uma, esperam mais algumas dezenas de estudantes que se juntam ao cortejo e engrossam o coro de vozes.

Communalism down down down. Long live Secularism. Long live.

Voltamos ao local de partida. O cortejo passa de raspão pela centena de estudantes nacionalistas. São poucos, mas o seu ódio multiplica a força e o volume e o significado das suas palavras por mil. São impedidos de avançar ao nosso encontro por um cordão de seguranças privados, desarmados.

Voltamos ao local de partida. Volta-se a entrar na sala. Voam algumas pedras. Alguns sangram. Canta-se. Lal Salam, Lal Salam. Lal Salam. Zindabad. Zindabad. Zindabad. De repente, do nada, entra ele, de barba, pele clara, um pai de família e um professor universitário como qualquer um, em Deli ou em Lisboa, mas deram-lhe choques eléctricos, espancaram-no, cela escura, dor. Porquê?

Fala. A multidão ouve com atenção. Não percebo a língua hindi em que fala, mas percebo o que diz. Os olhos piscam. As mãos trémulas, uma segura o microfone com uma firmeza exagerada e a outra meio enfiada no bolso da calça, os dedos mexem-se dentro do bolso. Fala. Oiço e percebo, sei.

Sei porquê, o suor escorre, a mão treme e as palavras ecoam nas paredes bolorentas escaladas por pequenos lagartos castanhos, os olhos piscam e os choques eléctricos e o ódio lá fora, o medo e as sementes de violência crescem como a erva daninha no jardim no Rogel e o meu pai corta a relva, mas ela volta a crescer, porque é preciso ser persistente e acreditar e agir, luta, entrega, dedicação, ideais e ideias, porque a erva daninha ou as coisas ligeiramente diferentes ou diferentes ligeiramente são afinal tão parecidas, o pai de família ou o genocídio.

1 comentário:

  1. Texto de antologia.
    Faulkner.
    Genial.
    Tenho de ler isto mais vezes.

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