domingo, 10 de outubro de 2004

Acordando

Acordo sempre, ou quase sempre, assim, de manhã: do meu lado direito, no quarto do Jean-Baptiste, o francês grande, musculado, branco e barbudo, silêncio ou barulho. No primeiro caso, dorme. No segundo caso, são audíveis alguns sons da sua namorada Nivi, uma bela e delgada e pequena rapariga, rica, de origem indiana, das Ilhas Maurícias.

Do meu lado esquerdo, no quarto do Chacate, negro moçambicano, pequeno mas musculado, imberbe ("só me barbeio de duas em duas semanas"), brilhantemente sorridente, sempre, canta, fala, monólogos. Versões adulteradas, africanizadas, chacatizadas, de músicas americanas (Aerosmith), portuguesas (Dulce Pontes), brasileiras (Gilberto Gil). Ou simplesmente imita vozes de crianças, muito alto: "Mamã, dá-mi u pão si faz favor". Ou vozes de mulheres: "Mininos, a comída istá na meza". Mas normalmente, do nada, entoa fragmentos de discursos académicos e políticos, em português ou inglês. "Mister President, thank you for joining us" ou "The dimension of change is not discussed ". Também cita de telenovelas brasileiras, ou comédias portuguesas: "Equivoquei-me a seu respeito, minha sénhora", ou "De repente é uma ou duas palavras? –Ó pá, nem é uma nem outra coisa" (Malucos do Riso com os alentejanos, presumo). Mistura todas estas temáticas, e, com a toalha colorida enrolada à volta da cintura escura ("eh pa, eu durmo nu, sabes?") desloca-se para a casa-de-banho, com a escova de dentes azul na mão direita.

A qualquer hora do dia, repentinamente, ecoam essas vozes, discursos, cânticos, os guinchos, os risos no quarto ao lado, no terraço, na casa de banho. Solitários. Quando ouvi no início, pensava ter ouvido mal. Depois, achei que poderia ser uma deficiência mental (dele, ou talvez minha). Simplesmente, agora, eu e o Jean-Baptiste, sentimo-nos reconfortados quando ouvimos esses sons confusos e estridentes, sérios e calmos, vozes múltiplas, identidades num quarto. Sabemos sempre que está alguém amigo, ali ao lado, aqui em Nova Deli.

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