terça-feira, 4 de abril de 2006

Back to the future

Há aqueles ditados que nos mandam ser romano em Roma. E outros que valorizam a sapiência das pessoas da “terra”, os locais. Há uma admiração dos modernos turistas pela tradição popular, que às vezes, supostamente, consegue mesmo derrotar os aparelhos, as máquinas e as ciências racionais. O tal camponês que sem relógio sabe acordar matematicamente – durante todo o ano – exactos cinco minutos antes de o sol nascer. São os pequenos mitos, alguns verdadeiros, que nos fazem lembrar que houve um mundo pré-moderno, tradicional, e que nós nos afastámos dele, munindo-nos de dependências materiais e científicas para maximizar produtividade, saúde, ou, simplesmente, pontualidade.

Politicamente manipuladas, estas emoções podem levar à recusa do moderno, à negação do avanço científico e tecnológico e explicam, talvez, a razão pela qual milhares de alemães e escandinavos que todos os anos abandonam as suas promissoras carreiras, as suas confortáveis casas e os seus colossais carros para irem vivem numa ilhota no Pacífico, numa aldeia rural indiana ou na floresta tropical africana em busca de algo primitivo e essencialmente puro. É o mito do bom selvagem na prática. As yogas, os zens, as Naturas e os sumos com polpa enquadram-se nesta onda.

Sem querer negar este direito ao auto-exílio e ao regresso à natureza a quem assim prefira, ponho, no entanto, em causa o mito que “o natural/tradicional é sempre melhor”. Lembro-me de, recentemente, estarmos numa pequena aldeia nos Himalaias. Tinha que apanhar um autocarro para outra aldeia. A família que nos albergava anunciou-nos com segurança e sabedoria que o autocarro partia sempre às nove da manhã, em ponto, há anos. Desconfiado e ocidental como sou, fui abrir o meu Lonely Planet de 2003 e este anunciava que o dito autocarro partia às oito e meia da manhã, todos os dias. Ou seja, meia hora mais cedo. Inseguro, e sem querer ferir susceptibilidades (ou seja, ocidentalmente), lá decidi seguir as instruções populares. Quando nos aproximávamos da avenida principal, pouco passava das nove da manhã, o autocarro passou velozmente por nós, deixando uma grande nuvem de pó e muitas certezas quanto à superioridade de quem faz guias turísticos à distância de milhares de quilómetros, algures em Sydney.

1 comentário:

  1. Muito bom, essa analise do mito do bom selvagem.

    Concordo plenamente.

    Parece-me mais uma fuga da luta qu eé a vida do que proópriamente o encontro de algo "puro"...

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