Há toda uma literatura teórica e uma recente fascinação académica pelo conceito de “estados falhados”, lastimáveis zonas negras do nosso mapa mundo em que não há rei nem roque e impera o imaginário da desordem, das AK 47, dos sucessivos golpes militares e de “capacetes azuis” desarmados cercados por tribais de canas e espadas em punho.
Por outro lado, há todo um misticismo à volta dos reinos tropicais ou montanhosos, rodeados de densa floresta quasi-impenetrável ou encostados a cumes cobertos de neve e gelo, em que o homem natural vive em perfeita harmonia com o ambiente e os seus congéneres, sob auspícios equilibradores do soberano, talvez uma encarnação de uma divindade mitológica.
Ao preparar o meu artigo sobre a situação actual no Nepal (sai amanhã no Expresso), deparei-me com estes dois imaginários e ideais. Já me tinha acontecido quando escrevi, em Agosto passado, sobre a “ameaça” do islamismo político que paira actualmente sobre o Bangladesh. Devo dizer que da mescla destes imaginários resultou uma visão mais realista e moderada das coisas do mundo.
Para dar mais profundidade aos textos, procuro sempre entrevistar individualidades nos respectivos países ou especialistas nas respectivas áreas. Lembro-me, que no verão passado, vi-me aflito para o conseguir no caso do Bangladesh. Tinham então passado poucos dias sobre os mais de 500 atentados bombistas que flagelaram dezenas dos seus distritos, de forma praticamente simultânea.
Não quero imaginar como será num caso de verdadeiro golpe de estado (situação que Daca já testemunhou várias vezes ao longo das últimas décadas), mas descobri então como é difícil sequer conseguir ligação telefónica para os meus entrevistados. Ou comunicar com uma panóplia de assistentes e secretárias que não sabiam falar inglês, para além do ensurdecedor ruído de fundo que marca as conversações e os repetidos cortes.
Ontem, passou-se o mesmo no caso nepalês em que o monarca Gyanendra (visto como uma encarnação da divindade hindu Vixnu) é oposto por milhares de manifestantes. O governo pôs as operadoras de telecomunicações móveis fora de serviço e a maioria das ligações de rede fixa para onde falei ontem estavam certamente sob escuta: vários editores (os que ainda não foram presos), alguns secretários e um ex-ministro e deputado do segundo maior partido (comunista: CPN-UML). Este último, claro, muito disposto a ser entrevistado, passou quase um minuto – na boa tradição estalinista – a enumerar todo e qualquer grupo profissional que dizia estar na rua a protestar contra o rei e espelhar “o povo unido”: “doctors, teachers, nurses, engineers, union workers, journalists, teachers, union workers, peasants, union workers” etc.
É interessante também observar a reacção dos entrevistados, depois de eu me apresentar e colocar-lhes o intuito do contacto. Perguntam, primeiro, para eu repetir o nome do país: “From where is your newspaper??”, mas safa-me o nome Expresso, familiar aos ouvidos anglo-saxónicos. Meu Deus, o que seria de mim se fosse correspondente do Diário de Notícias ou do Correio da Manhã. Desligavam-me o telefone na cara, provavelmente ofendidos. Depois as reacções repartem-se pelos que aceitam logo, os que dão o e-mail e dizem preferir uma entrevista por escrito (o que poder ser um “não” educadamente asiático), e os raros que querem mais detalhes, o meu nome, o do meu editor etc.
Embora depois destas experiências eu me sinta tentado a legitimar a teoria dos “estados falhados”, por outro lado, estou também inclinado a conceder que há pouco de “falhado” e que, afinal, a vida continua, seja em Lisboa, Deli, Daca ou Katmandu. Os jornais vão funcionando, os editores dão-se ao trabalho e ao tempo de me responderem por e-mail num espaço de poucos minutos e os políticos trabalham para o seu ganha-pão e popularidade. Salvo em casos extremos, talvez muitos deles em África, o resto do mundo está longe de ser composto por falhas. Há muito ainda por se realizar plenamente, é certo, mas, afinal, errar e falhar é humano. E estatal.
Sem comentários:
Enviar um comentário