sexta-feira, 24 de março de 2006

O sagrado é moderno?

Tenho ido a alguns casamentos hindus e tenho no currículo a ida a dezenas de casamentos católicos em Goa. Quanto a cerimónias religiosas em geral, a experiência não abunda, mas chega para eu começar a duvidar: o sagrado não será moderno?

Não há escapatória: em todas as cerimónias religiosas a que assisti neste subcontinente, sempre me pareceu que houvesse uma profunda falta de respeito pelo sagrado, pelo religioso ou pelo formal.

Explico-me: numa festa de casamento hindu, enquanto que os pânditas executam rituais religiosos com os noivos e os seus familiares mais íntimos, as centenas de convidados não se dignam sequer a lançar um olhar para o pequeno pedestal que suporta a cerimónia, continuando a dançar histericamente ou a comer, a beber e a conversar como que se nada se passasse.

Já as dezenas de fotógrafos e operadores de câmara – profissionais contratados para a cobertura ou simplesmente familiares interessados em gravar o momento – também não têm o mínimo pudor, empurrando-se uns aos outros, puxando os pânditas pelos ombros e empurrando os noivos para frente ou para trás, em busca do melhor ângulo possível.

O que me chocou a mim, a falta de respeito pelo momento sagrado, talvez seja simplesmente um conceito moderno. É que o desrespeito a que assisti aqui não é voluntário, consciente. É aceite por todos, é prática e norma. O casamento é uma festa, acima de tudo. Aqui parece que foi sempre assim. Não há mal dançar enquanto que ao lado os noivos recebem uma benção. Não é preciso estar alinhado, de pé, a fingir interesse, respeito e veneração pelo ritual.

Posso estar enganado. A modernidade, o consumismo e o afastamento da tradição estão rapidamente a ganhar terreno na Índia. Nesse caso, os sujeitos que bamboleavam freneticamente os seus corpos na pista de dança enquanto que os pânditas cobriam os noivos de fumos e benções, estariam somente ofuscados pelo entretinimento, olvidados da essência formal e sagrada do momento. Perguntei a uns colegas se sempre foi assim, para resolver a minha dúvida. Ninguém sabia bem. Ou não compreenderam a pergunta: “qual é o mal de estarmos a dançar?”, retorquiu um, afirmando em contra-ataque e esclarecendo as minhas dúvidas: “não é igualmente sagrado festejar e celebrar o casamento do meu amigo dançando?”.

Mas, naqueles angustiantes momentos em que me vi confrontado com uma cena que no Ocidente seria implacavelmente identificada como escandalosa e desrespeitosa, e em que procurava insistentemente um ponto de referência ou uma explicação lógica, veio-me esta ideia à cabeça (pouco original, em termos académicos, bem sei): não terá sido a modernidade a inventar o sagrado, a salientar a importância dos rituais e a exigir respeito e veneração, especialmente pelo religioso? A cena a que assisti, não será prova disso mesmo, da ausência ou da especificidade da modernidade na Índia?

Devo legitimar esta minha ideia com uma experiência própria, que talvez a possa fundamentar. Não me posso categorizar como um produto da diáspora, porque conhecerão os meus pontos de vista em que ponho em causa a comunidade goesa em Portugal como uma verdadeira diáspora ou minoria étnica. Mas tenho certamente alguma experiência diaspórica. Uma delas diz respeito ao relacionamento com o sagrado.

Explico-me: longe das origens, e perante a confrontação com um novo contexto cultural, as comunidades diaspóricas do século XX enamoraram-se (e o namoro continua) com o moderno. Prova-o a sua íntima ligação ao nacionalismo e à nação. Mas, para além da nação, a sua relação com o moderno levou também a este respeito para com o sagrado. Sempre me foi incutido este respeito por certos rituais e certos símbolos ou instituições, apresentadas como inquestionáveis. Ora, na minha redescoberta de Goa, e da Índia em geral, deparo-me de repente com um mundo diferente, em que sou por vezes o único a venerar de forma tão sagrada e formal esses rituais, símbolos e instituições, enquanto que os autóctones têm uma relação muito mais descomplexada, natural e informal com as mesmas, ou seja, pré-moderna.

No meu caso, por exemplo, é vestir-me de fato e gravata para um baptizado em Goa e andar semanas a tentar decorar as rezas e respostas correctas, em pânico por medo de vir a infringir o ritual e eventualmente vir a ser ostracizado, para depois constatar que o meu primo (pai do bébé) vai à cerimónia de camisa de mangas curtas, depois de beber uma cerveja, e durante o ritual se lembrar de perguntar ao padre “e o que é que eu digo agora?”, e este lhe responder com a maior das naturalidades.

O fenómeno diaspórico é somente um exemplo, o mesmo podendo acontecer em outros contextos. Mas penso que retrata de forma mais clara porquê o sagrado é talvez menos tradicional do que pensamos, e até bastante moderno. E, seguindo a minha lógica, os ocidentais continuam a ser bem mais modernos do que pensam e muito mais modernos ainda do que os indianos, por exemplo. Mas há também casos em que a modernidade ocidental se transpôs com sucesso para o Oriente e cá resiste com mais força do que no Ocidente. Veja-se por exemplo o que fez o colonialismo e a modernidade ocidental de cariz britânica vitoriana à sexualidade na Índia... mas isso fica para outra vez.

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