Há certas regras que me parecem profundamente enraizadas na nossa maneira de pensar, pelo menos entre as pessoas minimamente moderadas e formadas. Uma delas, com que cresci, é a conhecida regra universalista e humanista, que estabelece que todas as pessoas são iguais. Que os seres humanos, independentemente da sua origem étnica, religião, estatuto socio-económio, independentemente de qualquer particularidade, têm as mesmas necessidades, os mesmos sentimentos e as mesmas aspirações. Neste sentido, o momento fracturante é o da nascença, porque, teoricamente, até esse momento, somos todos iguais, e só depois os caminhos e as ideias se divorciam, dependendo do contexto em que crescemos.
Contudo, a regra é moldada pela experiência e faz-nos crer que uns são mais iguais que outros. A historiografia ocidental, portuguesa incluída, confronta-nos com um passado em que, juntando a e b, somos levados a crer que o racismo é algo de predominantemente ocidental. Unilateral, da civilização branca para com as suas congéneres. Não quero dizer que nos ensinam isto nos livros (às vezes sim). Mas, expondo a regra da igualdade ao passado e à experiência do nosso dia-a-dia, acredito que a grande maioria associe o racismo às pessoas ocidentais e conceba o racismo de forma a ser um constituinte identitário, se não exclusivo, das pessoas brancas. Por exemplo, é raro abrirmos o jornal e ler que uma pessoa branca foi discriminada em Lisboa, sendo o caso contrário (um negro ou um asiático, por exemplo) frequente.
Talvez por isso esta minha experiência na Índia me esteja a surpreender. Estou a descobrir essa mesma associação inconsciente que praticava quando me movimentava por Portugal, pela Europa e pelo mundo ocidental. Estou a confirmar a regra básica e fundamental (todos são iguais), e a descobrir que embora a aplicasse em termos teóricos, não a praticava nem em termos analíticos, nem práticos. Não é portanto uma descoberta, mas simplesmente uma redescoberta.
Esta minha redescoberta prende-se com as minhas observações num centro comercial aqui das redondezas, onde passo algum do meu tempo livre. Frequentam-no muitos africanos, na sua maioria nigerianos, mas de muitas outras nacionalidades também. Encontram-se às dezenas em certos locais. Um desses, é o estabelecimento de chamadas telefónicas internacionais a custo reduzido a que recorre grande parte dos estrangeiros que reside na área. Enquanto nas minhas centenas de idas ao local vi eslavos, europeus, americanos e asiáticos utilizarem o serviço normalmente, sem reclamarem, e à saída entregarem a quantia devida ao funcionário, observei mais de meia dezena de episódios profundamente chocantes, exclusivamente com africanos.
O funcionário, que é gerente da loja em regime franchising, é um pequeno, magro e jovem indiano. Nos casos dos utilizadores africanos abusivos que observei, inventam reclamações, mentem e inventam de formas variadas (afirmam que não fizeram chamada nenhuma, que não havia sinal, que a chamada devia ser gratuita, que não trouxeram dinheiro, que ele os anda a enganar, etc.), passam para um tom de voz ameaçador e chegam a empurrá-lo e a abusá-lo com todos a assistirem. São obviamente grandes e fortes e nem o velhinho segurança de carabina na mão intervém nesses momentos, deixando-os sair calmamente sem pagar. Há dois anos que observo estes episódios no mesmo local.
Ontem, no McDonalds, assisti a outro caso similar. Numa loja repleta, rodeados de famílias e crianças, dois africanos exigiam troco de mil rupias do operador de caixa, quando lhe tinham entregue somente quinhentas (embora afirmassem o contrário, eu próprio vi que tinham dado só quinhentas). Empurraram violentamente as pessoas à volta, gritaram que iam partir a loja toda quando voltassem, insultaram os operadores indianos que respondiam com um silêncio amedrontado. E saíram depois, a sorrir.
Outro caso que já observei nas ruas de Deli é a maneira autoritária e mesmo violenta com que muitos africanos tratam os condutores de riquexó. Como já vos escrevi anteriormente, os condutores de riquexós são, na minha opinião, da classe empregada mais discriminada na cidade. Os africanos aprenderam rapidamente. Já assisti a episódios em que esmurraram condutores, entre outros abusos físicos e verbais. Novamente, nunca vi nenhum outro estrangeiro comportar-se de tal forma.
Os três exemplos terão que ser testados. Primeiro, será este comportamento reflexo de uma condição socio-económica marginal? Será possível explicar que os africanos se comportam assim porque têm um estatuto diferente dos restantes estrangeiros em Nova Deli? Não. Vestem-se bem, têm telemóveis topo de gama, e embora alguns estejam envolvidos em redes criminosas (especialmente nigerianos), vivem na sua grande maioria em condições económicas boas, muitos dos casos que observei envolviam mesmo diplomatas ou os seus familiares e estudantes E, para contrastar, escuso de lembrar a pobreza em que vive a grande maioria dos indianos em Nova Deli.
Segundo, será este comportamento reflexo de um sentimento de discriminação? Será que os africanos são igualmente discriminados e violentados na sua integridade? É possível. Os indianos tratam as pessoas negras com um profundo desrespeito e desconsideração, num racismo primitivo que é expandido, até em centros urbanos e em universidades como a minha. Mas isto só vem confirmar a minha perspectivas, de que todo e qualquer ser humano tem potencial igual para discriminar racialmente. Contudo, devo dizer que tenho as minhas dúvidas se o comportamento africano em Nova Deli se deve somente a este estatuto de vítima. Seria desculpabilizar a vítima, coisa que a priori não gosto de fazer. Nunca vi um indiano bater num africano, mas ao contrário sim. E isto numa cidade em que os africanos são uma minoria ínfima.
Terceiro, e é esta a questão fundamental, são os comportamentos acima descritos baseados numa crença racial, ou simplesmente reflexo de uma expressão e forma de viver cultural, diferente da dos indianos e de todos os outros estrangeiros que vivem em Nova Deli? Aqui, igualmente, recuso refugiar-me no relativismo cultural, ainda por cima tendo a experiência da observação do meu lado. É complicado ler o que vai na mente de uma pessoa, mas em todos os casos de abusos e violência africana contra indianos, estava lá o elemento racial, nas palavras, na expressão facial ou nos gestos. Um ódio não para com a pessoa violentada, mas um ódio e um ataque ao indiano, à pele castanha, ao cabelo oleoso, ao corpo frágil e magro, ao despojado e fraco.
Teria tido as minhas dificuldades em escrever este texto em Lisboa. E teria tido medo de estar a minar a própria regra em que acredito – que a raça não predetermina comportamentos – e de estar a legitimar um racismo contra as pessoas negras, contra os africanos. Isto só confirma a minha suposição que seguimos uma regra na teoria, mas só a aplicamos parcialmente na prática, que temos medo de compreender as coisas realmente de forma igual e que sofremos daquilo a que muitos chamam “white man’s burden”. Felizmente a Índia confrontou-me com esta experiência e me ajudou a compreender que, de facto, todos somos, ou podemos ser, igualmente racistas ou vítimas de racismo.
O racismo não foi inventado pelos "brancos". O nosso racismo era mais cultural, nomeadamente cristão.
ResponderEliminarQuando chegamos a africa já havia exploração entre os próprios habitantes locais. E nós aprendemso rápidamente a aproveitá-la...
E os "africamos" ainda hoje são bastante racistas. tanto entre eles como perante os outros. A regra básica parece ser simplesmente a força. Se se sentem mais fortes, ou melhor, se sentem os outro smais fracos, abusam.
Perdoem-me as generalizações.
Curto este blog!
Parabéns pela coragem de escrever este texto... Gostei de o ler, como sempre, apesar de ser um assunto muito delicado. Não sei se alguma vez o conseguiria fazer com tal franqueza e rigor. E dás-nos a conhecer (mais) uma realidade que a maior parte dos lusófonos na blogosfera certamente ignora. Boa sorte com a tua colaboração na "Atlântico".
ResponderEliminarMilan, deixa-me que te diga que tu também nos dás a conhecer uma realidade diferente, por via da tua objectiva. Tomei liberdade de te pôr nas minhas "vidas amigas" (ligações) e espero que continues a disparar.
ResponderEliminarTino
Caro Constantino,
ResponderEliminarMais uma vez te congratulo pelo excelente blogue que criaste e que tão bem o manténs.
Sabes, a classe "nigeriana" não actua somente na Índia, o mesmo se passa em Macau, e esses mesmos nigerianos, têm segundo amigos meus angolanos a viverem em Macau, envergonhado e dado mau nome aos africanos na Ásia.
Num relativamente recente documentário do BBC Panorama, relatou-se que as prisões de Banguecoque estão repletas de nigerianos, quase todos eles condenados por crime organizado e tráfico de droga (que dá pena capital).
Gd abraço,
Vitório