segunda-feira, 15 de novembro de 2004

Em busca do passaporte português (Voz do Oriente)

São 2:40 em Nova Deli. Ao navegar pela Internet descobri um texto que escrevi há um ou dois ano na revista Voz do Oriente. Sinto que o devo partilhar, embora se diriga mais aos goeses. Sinto que o momento se aproxima. Sinto que estou com sono.

Todos o sabemos e o repetimos. Goa é bela. Um território único no mundo, em que o Oriente recebeu e bebeu do Ocidente. Uma identidade e uma língua tão singular. Aquelas frescas praias banhadas pelo Índico. A verde vegetação que cobre o interior, escondendo pequenas aldeias com as suas milenares comunidades. Um povo sossegado em que coexistem três das maiores religiões do mundo. Esquinas, paredes e largos que espelham séculos de história. O nobre orgulho dos palacetes indo-portugueses. A fluidez das relações sociais, a harmonia quasi-natural entre o humilde lavandeiro e o abastado bhatkar. O silêncio.

Ao lermos estas linhas, sabemos que estamos a enganar-nos. Estamos a revolver um velho baú que já passou da cabeça daqueles que ainda conheceram essa Goa para a mente dos mais jovens de origem goesa que nunca lá viveram. Sempre preferimos fugir à confrontação com a realidade, tão diferente daquilo descrito no primeiro parágrafo.

A questão é que já não se trata de preferir confrontar-se ou não. Veio o momento da confrontação. Não podemos ignorar a realidade da Goa de hoje. Houve mudança, movimento, barulho. Para bem ou para mal, isso não está em questão. Importante é aliar-se a este movimento, porque ao negá-lo estamos a afastar-nos e a enclausurar-nos. Temos de perceber que a Goa de hoje é diferente e que se quisermos continuar a viver e a respirar a nossa Goa, temos de lidar com essa diferença.

Todos o sabemos, no fundo, e todos o negamos. Goa está diferente. Um território que vai mantendo a sua especificidade e a sua beleza, mas que se abre lentamente ao exterior. A cristalização do que é do Oriente e a dificuldade de lidar com o passado ocidental. O fim das aias e criadas que educam os meninos. Uma língua que é espezinhada pelo inglês, pelo marata e pelo hindi, muitas vezes pelos próprios goeses. Uma identidade crescentemente minoritária no seu próprio espaço. Praias polvilhadas de pedintes e dum cheiro nauseabundo não só a lixo como a toxicodependência e turismo sexual. A progressiva urbanização, a ocupação de terrenos das comunidades por barracas e as aldeias que envelhecem dia a dia. Uma vida agitada, em que já não há tempo para ladainhas ou zatras à beira da estrada, mas em que a preocupação é quase a mesma de um lisboeta ou de um nova-iorquino: trabalhar, produzir e maximizar. Em que sobre a cara do rapaz-paquete goês adormecido à sombra de uma árvore passa a veloz sombra de uma moderna carrinha dos serviços postais expresso.

O fantasma do fundamentalismo hindu que tem vergonha dos cristãos e muçulmanos. A facilidade com que se arrancam pedras, árvores e edifícios históricos para dar lugar a reluzentes centros comerciais. A ruína dos palacetes, em que resistem os velhos acamados morrendo de saudades de um tempo que vai distante. Os modernos apartamentos em que os jovens no seu quarto com televisão sintonizada na MTV India comunicam virtualmente, dominando o espaço e o tempo. A economização das relações sociais, em que o lavandeiro esquece a família que sempre serviu e em que o bhatkar usa e abusa da sua posição, ignorando deveres e responsabilidades. O barulho.

À primeira vista, um discurso saudosista e nostálgico, não tão diferente daquilo que ouvimos da boca de qualquer goês emigrado já há muito. Talvez o seja, também. Mas não podemos ficar por aqui. Repito, a estratégia é de confrontação. Uma confrontação de imagem e percepções, daquilo que costumamos ver nostalgicamente e daquilo que devemos ver realmente.

Se a Goa de hoje nos oferece um panorama desolador, ou predominantemente negativo, é por nossa culpa. Porque não pudemos abdicar da nossa Goa nostálgica, bela e formosa, mas ultrapassada pela velocidade dos ventos globais que sopram há já muitos anos. Temos de dar um passo atrás e recuperar a distância que nos separa da Goa de hoje. Não combater a mudança que tem transformado não só Goa como o mundo inteiro, mas aliar-nos a ela. Temos de conhecer e domar o movimento. Estar à vontade com ele. Só então, quando formos capazes de lidar com a realidade, pondo parcialmente de lado a mítica Goa que resiste nos nossos empoeirados baús mentais, só então poderemos partir em busca de uma Goa melhor.

Porque, por enquanto, a única busca é a dos goeses que perderam essa esperança de uma vida melhor e que, ofuscados pelo Ocidente brilhante, compõem as filas de espera para o mágico passaporte português.

2 comentários:

  1. Goa. Passado ou presente?

    Seria inevitável que uma terra tão mágica conseguisse reagir à mão pesada do Homem... que tem uma enorme capacidade de destruir tudo o que definimos por LINDO...
    Naturalmente precisamos de ir vivendo de acordo com a realidade que nos vai sendo apresentada... mas... mas...
    a beleza de um sítio de outrora... das pessoas de antigamente... dos costumes e tradições que entendemos como preciosos e eternamente necessários deverão estar sempre vivos... nem que seja nos nossos corações... no nosso pensamento... não é isso que imortaliza aquilo que já não podemos ver mas que ainda sentimos?

    Estamos a remexer num baú velho? E depois?

    Porque não mexer no passado para descobrir algo lindo que nos pode dar alento para fazer do presente uma memória linda para quem terá de fazer o futuro?

    Quem vive desencantado, sem viver por vezes na fantasia, sem sonhar, sem imaginar como seria se tudo permanecesse bruto, virgem... é pobre, porque então não tem a magia que aquece o coração...

    A vida em Goa é diferente hoje do que foi ontem? Ainda mais necessário será preservar uma herança antiga, para, pois, não deixar cair um património rico, que constitui a base dessa terra e dessa gente, gente que caminhará com a mágica Goa passada, na Goa presente, no sentido de uma mágica Goa futura...

    Não se espere determinação,espírito de luta, de uma pessoa que, sim, vê o presente e assim sabe o que tem de contrariar para fazer um fututo melhor, mas que acha que o passado já não tem lugar e então não tem um fio condutor...
    ...quem deixa para trás as raízes não conseque fazer crescer uma flor digna de se ver.

    T

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  2. "Temos de dar um passo atrás e recuperar a distância que nos separa da Goa de hoje."

    "pondo parcialmente de lado a mítica Goa que resiste nos nossos empoeirados baús mentais"

    Caro "T",

    obrigado pelos comentários estimulantes. Mas, se ler com atenção as duas citações que anexei em cima, verá que se trata tudo de uma questão de "atitude". De confrontar-se com as estratégias e a realidade de hoje. Temos de dar UM passo ATRÁS para dar DOIS para a FRENTE. E temos que por PARCIALMENTE os nossos mitos de lado. Trata-se basicamente de uma excessiva nostalgia e de um demasiadamente empoeirado baú mental. Nada contra a nostalgia, o conhecimento do passado (tão ignorado e desprezado pela maioria "politicamente correcta" na Goa de hoje). Mas há que apresentar esse PASSADO de forma atractiva, verosímil, atraente no PRESENTE. Porque senão passará de desprezado a morto, porque desconhecido. Não sei se me conheçe, mas presumo que tenho tudo menos sangue conservador e bolorento a correr nas minhas veias. Há que sintetizar o passado e o presente em Goa. E para isso, admito, há que provocar mentes esclarecidas como sua com o recurso ao exagero. Fico contente pelo seu comentário e espero que participe nesta promoção moderna e realista do nosso passado tradicional e nostálgico.

    TINO

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