Sete andares. Dizem que o sétimo está assombrado desde que uma mulher lá se suicidou. Aliás, há muitas superstições neste país. No campus, numa das zonas mais isoladas na floresta, por onde passa a estrada que leva a uma das saídas menos utilizadas, dizem que nas noites de lua cheia aparece uma mulher. Uma mulher nua, ou de sari branco (depende se é rapaz ou rapariga a contar). Dizem que vem falar às pessoas oferecendo-lhes um cozinhado indiano que se chama "butter chicken". Se o rapaz aceitar será levado para os arbustos onde ela o violará.
Na cave estão os livros mais ligados à minha área de estudo e às ciências sociais e humanas em geral. É uma longa cave – a lembrar as caves de vinho dos restaurantes de Sobral de Monte Agraço – com dois andares. Como não há ar condicionado as narinas são imediatamente invadidas pelo cheiro a papel em decomposição, mofo e humidade.
Penetro pelos apertados corredores entre as estantes em que os livros estão amontoados, deitados, abandonados sem ordem perceptível. Muitas páginas encontram-se rasgadas, muitos livros deitados no chão, abertos, as páginas a serem levadas pelas formigas. Todo este cenário, aliado à imensa rivalidade entre os estudantes universitários na Índia (a competição é brutal), faz com que muitos livros sejam escondidos por alunos em cantinhos de prateleira, ou para os encontrarem ao longo do ano lectivo, ou simplesmente – depois de os terem lido – para nenhum potencial rival poder ler a mesma obra indicada pelo professor.
Há também a prática de rasgar páginas inteiras dos livros e levar para casa. Ou porque o estudante é pobre e não tem dinheiro para fotocopiar, ou pela mesma razão acima indicada – impedindo a partilha da rica informação com outros colegas. Escusado lembrar que o interior da maioria dos livros está mais decorada do que muitas árvores de natal na Europa: sublinha-se e anota-se a caneta e a várias cores a torto e direito. Nos espaços em branco – geralmente primeiras e últimas páginas – encontram-se planos de dissertação inteiros escritos à mão.
Em média, para encontrar um livro cuja referência encontrei na base de dados informatizada, demoro meia até uma hora. Mais de metade não os encontro depois desse tempo todo. Quando pedimos ajuda a um dos bibliotecários que por lá andam a vadiar, ou fingem que não percebem ou indicam-nos vagamente uma prateleira e mandam-nos procurar.
Mas esta biblioteca é a mais interessante que jamais vive no que concerne a originalidade das obras, a heterogeneidade e a sua antiguidade. Há simplesmente de tudo. Aquilo é uma pequena Índia.
"Bahrein Chamber of Commerce and Industry, Directory 1995-1996" está numa das estantes. Um dia foi brilhante, mas capa amarelecida espelha várias décadas de peso. Mas não posso deixar de começar com a literatura socialista que domina todas as estantes. Só a colecção "Karl Marx & Friederich Engels – Collected Works" conta com impressionantes e largos 39 volumes. Ao lado está um gajo chamado Plekhanov.
Presumo que menos de 20% da população indiana saiba onde fica o Butão, mas algum indiano lembrou-se de escrever "Bhutan 2002: A vision of Peace, Prosperity and Hope". Lindo título. Mais adiante está Stalin com "Problems of Leninism" e a original obra "British Trotskyism". Claro que a Caxemira tinha que marcar presença em peso. E que peso: "Documents on Kashmir Problem" em 17 volumes, pensam que com a quantidade conseguem construir a verdade.
E, de repente, do nada, emerge num cantinho de uma prateleira "Tratado da Cidade de Portalegre" de Diogo Pereira Sotto Maior, Imprensa Nacional da Casa da Moeda, código V,542'J124M4 e que deu entrada na biblioteca a 9 de Outubro de 1988. Desde então ninguém lhe tocou, o cartão de empréstimo está em branco. Enquanto que a presença portuguesa na JNU se resume a isso (e a mim, talvez), o Brasil marca presença em força com várias obras de Gilberto Freyre e, claro, "The Brazilian Communist Party". Logo ao lado ainda se dá uns centímetros de prateleira indiana ao romeno ditador "Nicolae Ceaucescu" em 15 volumes.
A par de "With Gandhi in Ceylon" e "New Perceptions on Gandhi" (este deixa adivinhar um autor nacionalista hindu) está também "Is India going Islamic" de Baljit Rai, em que alguém (talvez o próprio autor) se esqueceu de adicionar o ponto de interrogação.
A obra mais preciosa que encontrei, no entanto, caiu à minha frente quando vasculhava entre a secção "Indian States" à procura de algo sobre Goa. "Bibliography of Goa and the Portuguese in India" sorriu-me o título de maneira pouco convidativa. Entrou na biblioteca a 30 de Julho de 1982 e desde então também ninguém lhe tocou. Mas lá dentro havia um nome que me tocou a mim.
Xavier, Carlos (1914- )
"Catálogo dos religiosos que professaram no Convento de S. Domingos de Goa nos anos de 1774-17796 e 1814-1834"
O meu avô faleceu em 1987 mas aqui estou eu, a redescobrir as pisadas que ele me deixou, na Índia.
:)
ResponderEliminarParece magia, não é? Mas acho que o teu avô ficaria muito orgulhoso ao saber do seu neto que tão bem saltita por esses caminhos esses caminhos, e que dessa forma vai avançando por entre as memórias e os destroços.
Boas leituras!
E resiste à "butter chicken", s.f.f.