domingo, 26 de fevereiro de 2006

Regateando

Uma das coisas que mais fascina (e intimida) os ocidentais que vêm à Índia é a volatilidade dos preços, o processo de negociação e, paradoxalmente, a fraude que a cada instante os ameaça vitimar.

Nascem assim mitos sobre supostos recordes batidos a regatear. Por exemplo, eu até recentemente estava convencido de que tinha feito um negócio da China quando, há uns anos, de mochila às costas a viajar pela Índia, tinha comprado um conjunto de pequenos elefantes coloridos em pedra em Amber, perto de Jaipur, no Rajastão. Enquanto subia por um íngreme caminho rochoso e tórrido, encosta acima, em direcção a um forte, um vendedor tanto insistiu que acabei por comprar o conjunto por dez vezes menos o preço inicialmente apresentado pelo sujeito, porque aquilo parecia tão barato e afinal uma tão boa história para contar aos netos que era impossível resistir.

Fui vivendo nessa ilusão até ao dia em que um amigo meu me mostrou o mesmo conjunto de elefantezinhos e se gabou todo embevecido que tinha reduzido o preço em quinze vezes e os tinha comprado por um preço ainda mais irrisório do que o meu. Tendo ainda por cima em conta a subida galopante de preços que se viveu neste país nos últimos anos, imaginam que de um momento para o outro parte do meu pequeno mundo ruiu, sem misericórdia.

Nascem também mitos sobre estrangeiros que foram defraudados. É aliás uma das conversas preferidas dos mochileiros na Índia. Logo que estes se encontram, trocam nomes e proveniência nacional, e a conversa orienta-se para esse tema, todos convencidos de que conheceram pessoalmente o japonês mais gatunado na história do turismo na Índia, que foi praticamente raptado logo à chegada ao aeroporto em Nova Deli, forçado a dormir num quarto pestilento enquanto lhe debitavam 500 dólares do cartão de crédito, empurrado na manhã seguinte para um autocarro público e levado para a Caxemira, que, é-lhe dito com grande alarmismo, é o único local seguro de momento no país, porque está iminente mais uma guerra indo-paquistanesa. Claro que nenhum dos mochileiros se lembra de partilhar as diversas histórias em que ele mesmo foi enganado, dando-se conta ou não. Isso fica remetido para a intimidade, deitado para o emergente amontoado de frustrações politicamente incorrectas.

Nascem também mitos como o de ser obrigatório (ler as sílabas enfaticamente e pausadamente) regatear-se na Índia, sob pena de ser mal-educado e ferir as susceptibilidades autóctones. Presumo que este mito tenha origem nos países árabes, mas a verdade é que é simplesmente uma legitimação simpática para o que é a dura realidade do terreno. Porque só regateia quem não quer pagar mais. Ninguém é obrigado a negociar. Só se discute se o preço não convém, ou simplesmente se não parece merecer a mercadoria pela qual é demonstrado interesse. Não são poucos os indianos que conheço que se recusam a regatear – novos-ricos ou ricos, na sua maioria – por não terem paciência nem tempo para tal. Nunca vi um vendedor nessa ocasião exclamar com uma expressão ofendida “que falta de respeito, vá comprar com outro que venda mais barato!”.

É mais o “white man’s burden”, o medo de parecer prepotente, de chegar e comprar a aldeia inteira, crianças incluídas. Mas, perante a realidade, que não passa de uma dura selva ou de um faroeste em que só sobrevive o mais apto, não há que ter medos nem mitos, salva-se só quem puder e quiser.

Finalmente, expostos perante a argumentação supra, muitos benevolentes pseudo-preocupados com o nefasto impacto do turismo sobre a economia local, contrapõem que é imperioso regatear e pagar sempre que possível o preço que os locais pagam, sob pena de inflacionar os preços e tornar certos serviços proibitivos para os autóctones. Tal acontece, por vezes, mas na grande maioria das realidades indianas que conheço, é simplesmente mais um mito. Um bom indiano sabe distinguir um farangi de um desi, isto é, um branco de um castanho.

Mesmo em locais onde o turismo tem tido um impacto tremendo, o caso de Goa ou de Dharamsala, há duas economias paralelas, uma para os estrangeiros, outra para os nacionais. Para quem começa a arranhar o vernacular, expõe-se o tremendo fosso que separa as duas, ouvindo um taxista pedir um certo preço proibitivo a um turista para segundos depois, caso a presa estrangeira não o tenha contratado, aceitar sem piscar os olhos uma oferta mínima de um habitante local.

Há então os que argumentam que pagam mais porque não se importam, porque é tão pouquinho para “nós” e tanto para “eles”. Embora pense que esta atitude paternalista tenha um cunho de arrogância, credito-a com o facto de assumir pelo menos a parcial incapacidade e impotência de lidar com o mundo da negociação na Índia. Neste caso, “pagar mais mas finalizar o processo com maior rapidez” é visto como uma solução confortável para todos os que – assumindo-a – querem escapar à complexidade e conflitualidade ilesos e incólumes. Aceito, sublinhando a franqueza.

O problema destes mitos todos é que confundem a maioria dos turistas bem-intencionados, ainda por cima num país tão confuso como o é a Índia, em que a cada esquina nos pegam no braço e nos querem convencer que têm em mãos o negócio do século, só e especialmente para nós. Já com a mochila às costas, o peso da pela branca e do estatuto económico, mas especialmente do que se quer o “politicamente correcto” é tremendo e só leva a que os visitantes sejam esmagados e triturados pelas hábeis máquinas indianas que confrontam o turismo nessas esquinas um pouco por todo o país. Aqui e acolá os hóspedes dão sinais de resistência, mas a verdade é que sentem tremenda frustração que se vai acumulando e, de repente, semanas, meses ou anos depois de iniciarem a viagem (que pode ser a de uma vida) irrompe tudo que nem um vulcão, produzindo cenas patéticas ou chocantes, ou mesmo os dois, quando a última gota faz transbordar o copo da paciência politicamente correcta.

Deixem-me dar mais um exemplo. Numa viagem que nos levou de autocarro por três dias para Ladaque, no estado de Jamu e Caxemira, iam uns poucos estrangeiros aventureiros. A viagem, como devem imaginar, foi feita em condições terríveis, tocando os 5000 metros de altura, com temperaturas ardentes durante o dia e geladas de noite. De poucas em poucas horas era obrigatório sair do autocarro e dar os detalhes dos passaportes, e alguns trabalhadores indianos as autorizações de trabalho ou de residência (o estado tem restrições mesmo à imigração doméstica). Formavam-se então longas filas e esperavam-se longos minutos. Já no último dia de viagem, um francês de meia idade, que tinha passado os dias e as horas anteriores a louvar a espiritualidade indiana, a simpatia, paciência e franqueza dos habitantes do país, a necessidade de os “brutos ocidentais” compreenderem e adaptarem-se ao local, encontrava-se também numa dessas filas quando um sujeito indiano ultrapassa a fila inteira e entra para a tenda militar.

Todos os passageiros, nem que olhando de relance, sabiam que se tratava de um dos motoristas, afinal ele já nos conduzia há dois dias. Mas o francês, de repente despojado de toda a retórica, lançou-se para cima dele, agarra-o pelos ombros e por entre cuspo e gestos ameaçadores grita-lhe num francês obviamente chinês para o indiano, acusando-o de violar as elementares regras de boa-educação e não sei o que mais. Foram precisos vários minutos para o acalmar e ele lentamente voltar a si, só para me confidenciar mais tarde que “lhe tinha saltado a tampa” porque o tinham já ultrapassado dezenas de vezes em filas, um pouco por todo o país que tinha visitado e isso o irritava profundamente.

Sim, eu sei, duas perguntas vos devem afligir. Como então sobreviver na Índia regateando e o porquê destas linhas. Quando à primeira, assim em breves linhas, não me resta nada a não ser recomendar naturalidade e libertação de mitos e complexos. É preciso olhar o inimigo nos olhos, e nos negócios turísticos cá da terra todos são inimigos até prova em contrário (rara). Contar espingardas e ir para a guerra. Ou assumir a opção de não querer conflitualidade, mas pagar o preço devido por isso (em Rupias), numa estratégia militar de recuo em que a concentração reside na contenção dos danos e maximização noutras frentes (gozar o turismo mais essencialmente, descansadamente). Finalmente, mesmo que não tenham amigos locais indianos, pedir a transeuntes, feirantes rivais, conhecidos ou desconhecidos etc. que regateiem em vosso nome, embora haja sempre o risco de manterem o preço alto e combinarem uma percentagem para eles mesmo. Mas, regra geral, e na maioria do território, as pessoas gostam de ajudar e farão o papel de bom samaritano a intérprete cultural e intermédio.

Quanto à segunda questão, sobre o que me motivou a escrever sobre o tema, nada mais do que uma ida ao mercado, esgotado e desnorteado, depois de um dia de trabalho. Perante os vendedores de vegetais e frutas com que normalmente negoceio sempre um pouco e que já me conhecem bem, hoje baqueei. Sem paciência nem energias, fui escutando e acedendo impávido aos estonteantes preços que me pediam por cem gramas de uvas ou um quilo de batatas. Mas hoje recusei-me a entrar no teatro das negociações, estendi-lhes as notas e recusei observar a balança ou controlar o troco. Decidi que hoje vingar-me-ia deles virtualmente, a longo termo, aqui, no teatro cibernético.

3 comentários:

  1. A estrondosa vitória virtual/cibernética de Tino tornou-o uma personagem temível nos mercados de Deli. À sua passagem, vendedores caem de joelhos, oferecem os seus produtos e cantam loas.

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  2. Há muitos anos atrás resolvi ocupar o meu Dia de Natal passado em Goa - longe da família e com um clima estranho para um português em Dia de Natal – em Anjuna. Pensei que ir ao mercado, comprar prendas para a dita família, seria uma maneira de me lembrar deles nesse dia. (desculpem a veia consumista!)
    Fui de autocarro, o meio de transporte que mais utilizei durante a minha estadia em Goa… o “cobrador dos bilhetes” pediu-me um preço completamente absurdo pelo bilhete de autocarro (5 x mais do que tinha paguei as outras vezes que tinha ido a Anjuna!!!...), mas era Natal, resolvi não regatear! Afinal em escudos não era assim tanto!
    Assim que recebeu o dinheiro o homem juntou-se a uns amigos e, embora eu não entenda a língua, estiveram claramente a gozar comigo!... Isto voltou-me a acontecer em outros locais na Índia em alturas que pura e simplesmente não me apetecia regatear!
    Regatear ou não regatear na Índia é para mim uma opção do momento, depende do meu humor... seja qual for a opção não se pode é perder a calma e não nos deixarmos afectar pelo bom ou mal resultado das negociações (ou da falta delas)!

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