Quando os meus pais me arrastavam para as festas goesas naqueles restaurantes bolorentos às Janelas Verdes ou naquela barraca a que chamavam Casa de Goa nas Laranjeiras eu sentia-me sempre um pouco à parte. Logo que as mesas forradas de xacutis e cabidelas e demais petiscos eram afastadas do centro da sala ou do pátio e irrompiam das gargantas regadas de feni de cajú os primeiros cânticos em Concani, eu tentava escapar-me pela portinhola que, pelo menos nas Laranjeiras, ia dar a uma pequena horta com grandes abóboras. É que lá dentro começavam a dançar, jovens e crianças incluídos, bamboleando os pés, as ancas e as cabeças ao ritmo do gummot que alguém se lembrava de tirar do armário ao lado da imagem de S. Francisco Xavier e ao som das violadas de um dos antigos liceístas do Afonso de Albuquerque no topo do Altinho.
Musicalmente pouco educado, salvo umas sete aulas de Blockflöte que a minha mãe me impôs, bem como umas tímidas actuações no Côro do Colégio Alemão, na penúltima fila do lado esquerdo, perto da cortina, esses fins de tarde veranescos incutiam em mim um sentimento de impotência e pânico. O mesmo passava-se, em medida muito mais exagerada, nas minhas idas infantis a Goa. Rodeado de um mundo supostamente familiar mas afinal tão desconhecido, envolto de um clima tropical e coberto de terríveis borbulhas que só dez anos depois compreendi serem devidas ao produto com que a nossa empregada Inacinha lavava o chão da nossa casa, e mesmo na companhia dos meus irmãos que deviam passar pelo mesmo, gelava aterrorizado de cada vez que se abriam as clareiras na sala afastando a aristocrata mobília indo-portuguesa contra as paredes frescas caiadas de branco.
Felizmente, fui crescendo, ganhando força e liberdade, especialmente capacidade argumentativa para legitimar o meu “Não” quando alguém me tentava arrastar para o centro dançante. Nem sempre foi possível e as experiências traumatizantes foram-se sucedendo naturalmente, as risotas gerais à volta, e eu nas minhas jeans apertadas, camisa por dentro das calças e os sapatos de vela a guinchar no chão de pedra polida indiana.
Foi então com certa nostalgia que revivi esses momentos quando cheguei a Nova Deli e fui confrontado com festas dançantes ao fim da tarde na universidade. A quarenta graus ou a dez, não interessa, ao ar livre ou dentro de uma sala, qualquer oportunidade aqui serve para se arremessarem os braços para o ar, esticar os rins e bater os pés no chão ao som das batidas da música Bollywood. Sem uma gota de álcool, sem Red Bull, sem charros, sem música mesmo, quando falta a electricidade por alguns minutos.
Dança-se como se fosse a última noite de vida na terra. Encenam-se os movimentos que se viram na tela e na televisão, roçam-se os corpos, trocam-se olhares e parceiros, alguns rapazes de tronco nu, professores a olhar, de vez em quando um até dança, tudo numa fluidez e com uma naturalidade que são totalmente estranhos ao que se observa na Europa em que a prática da dança é comercializada, intoxicada, esvaziada de qualquer essência e carregada de todos demais significados e leituras, tão pornográficas, tão frias. Tão bem descrito no ensaio “La Fête” no livro “Rester Vivant” do Michel Houellebecq.
Não se limita esta minha observação a uma suposta universidade mais liberal. Por todo o país, em todos os extractos sociais e regiões por onde passei observei esta prática. É com tremenda dificuldade que os estrangeiros encaram esta disposição natural festiva e dançante indiana. Até os mais relativistas e alternativos e wannabe estudantes de intercâmbio franceses que por cá andam baqueiam impotentes perante o fenómeno, sorriem inseguros por detrás dos troncos das árvores e rapidamente desaparecem por detrás dos arbustos para fumar charas.
Há algo de essencialmente errado na avaliação europeia generalista que se faz de uma Índia supostamente tradicional, sub-desenvolvida e conservadora e por isso mais alegre, e de uma Europa e de um Ocidente supostamente moderno ou pós-moderno, liberal e progressivo, racional e por isso menos alegre. Não deixa de ser errada, confusa, frustrada e vingativa. Para quem viesse de Marte e observasse uma festa em Nova Deli e depois outra em Lisboa, sinceramente, diria que os Europeus devem estar loucos, ou, simplesmente, muito tristes.
MARAVILHA! Este Blog, caiu-me do ceu! Tenho viagem marcada para Goa e era mesmo disto que precisava: ler as palavras reais de quem anda por aí. obrigada hehehe
ResponderEliminar"bem como umas tímidas actuações no Côro do Colégio Alemão"
ResponderEliminarparece que estou a ver! c'est génial! um puto magro, pequeno, bichinha, com uns enormes orelhões, a cantar no coro da escola (colégio?? tu quoque fili??), para tentar agradar aos sucessivos professores que tanto admirava: Herr Marte e o outro cujo nome não me recordo, mas que identifico por ter perguntado na sua 1ª aula onde estavam os alunos "paxaxinha louca" e "bicha solitária" (ah, Herr Hartz, ou assim)
tal como muitos outros, costumo aproveitar este espaço para escrever algum comentário pseudo-engraçado. mas hoje, mudo de estilo e felicito-te sinceramente pela forma natural e justificada com que cascas no euro-centrismo. estou em espanha (já vivi em portugal e na alemanha) e a conclusao é que este sistema (político e social) nao funciona. por muito que nos custe aceitar.
ResponderEliminarkarl
o carlos virou comunista :(
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