sábado, 1 de março de 2008

Cruzamentos

Há quem chore. Quem ignore. Ou quem enxote. Há quem faça tudo ao mesmo tempo. Os meninos pedintes, nos cruzamentos de Deli, despertam emoções profundas em todos nós, visitantes desta imensa urbe. Também assim foi comigo, no início, inseguro, o esforço para ignorar os apelos traído pelas emoções, pelo olhar hesitante, a rendição perante as mãozinhas apalpando-nos no riquexó ou o ranho e as lágrimas cobrindo-nos o vidro.

Depois, com o passar do tempo, passei a dominar a arte autóctone e ganhei uma imunidade poderosa, fria e cruel aos olhos do visitante ocasional, normal e necessária para quem vive a sua vida diária em Deli.

Acho que entrei agora numa nova fase, possibilitada pela minha crescente expressão vernacular, mas também renovada abertura e segurança: fustigado pelo calor e pelos gases de escape, rodeado de chapa automóvel e olhares entediados, começei a encetar conversas com os meninos, trocando nomes, idades, proveniências, famílias e quotidianos, naqueles breves segundos e minutos em que o sinal nos manda parar.

No fim, costumo dar-lhes uma nota em troca de uma revista que vale uma moeda e ficam sempre muito felizes, mais do que quando lhes dou um lápis. Eu sei que depois, muito provavelmente, entregam a notinha cor-de-laranja, com o Gandhi, ao pai que a junta a umas poucas mais, para à noite se embebedar com uísque e depois lhes bater.

Alguns já me reconhecem, e eu lembro-me das suas histórias e dos seus nomes. Não é fácil, porque geralmente desaparecem ao fim de algumas semanas. Mas às vezes, muito raramente, a recompensa é tremenda, quando, meses ou talvez mesmo um ano depois, nos voltamos a encontrar, num outro cruzamento.

5 comentários:

  1. Grande post, Tino. Este e claramente o teu melhor registo.

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  2. Obrigado a ambos pelas palavras encorajadoras. Abraços.

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  3. Espetacular escrita!

    Maravilhoso post... triste e angustiante... mas maravilhoso...

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  4. sim :-) bom post!
    (nós não estivemos tempo suficiente para isso mas em Goa sim, falei com um miúdo que era surdo-mudo durante algum tempo. e dei-lhe uma nota, o único a quem dei dinheiro durante toda a viagem. se calhar foi por isso, pq parei para falar com ele e era tão simpático, c um sorriso tão genuíno que n resisti...)

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