quinta-feira, 27 de abril de 2006

Citações de Deli: Harish Khare

"Prime Minister Manmohan Singh has to be given the credit for realising that India cannot achieve its potential as a great nation as long as it remains mired in a bleeding confrontation with Pakistan. Having boldly stated to the Pakistani leader that boundaries cannot be redrawn, he is prepared to walk the extra mile. Like most sensible Indians, he too recognises that if India wants to be recognised as a major global player it will have to give evidence of its ability to iron out differences with countries in its own neighbourhood."

Harish Khare, reputado colunista e editor do The Hindu, in Who is afraid of peace with Pakistan?, 26 de Abril 2006

Imagens de Deli: Ladaque

Ao fundo, parte do complexo residencial que alberga o Dalai Lama, aquando da sua visita ao Ladaque. Estes miúdos ajudaram-nos quando, subitamente, a nossa mota avariou, a dezenas de quilómetros de Lê (a capital onde estávamos alojados). Do nada, apareceu então um monge budista. Enquanto que os miúdos, uns transeuntes e eu tínhamos tentado fazer o motor arrancar por dezenas de vezes, ao homem santo bastou uma tentativa. Não satsifeito, no seu traje laranja, desmontou a máquina e afinou-a. A vitória do espiritual sobre o material, ou a aliança entre as duas formas encarnada pelo monge, deixou-nos prosseguir a viagem em segurança.

quarta-feira, 26 de abril de 2006

Imprecisões linguísticas

Ahobhāgyā [? H. Aho, interj]. adj. & m.
1. adj. fortunate. 2. pl. unfortunate. 3. m. good fortune. 4. pl. ill fortune

É a língua Hindi na sua plenitude. Uma palavra com dois significados, totalmente opostos. O mesmo passa-se com kal (‘ontem’ e ‘amanhã’), namaste (‘olá’ e ‘adeus’) ou kam (‘trabalho’ e ‘sexo’). Diz muito sobre a civilização indiana e sobre a dificuldade ocidental em a compreender.

Mas, desculpem-me lá, como é que um país se pode entender e desenvolver assim? Tipo, eu digo ao meu estagiário que quero o trabalho feito para ontem, e ele me o apresenta só amanhã. Tipo, eu dizer adeus quando me despeço ao fim da manhã de uma namorada e ela me responde com um olá. Ou, tipo, no escritório digo à minha secretária que quero trabalhar em silêncio e privacidade e de repente ela me acusa de assédio sexual.

P.S.: Um prémio (visita guiada a Deli) para o linguista que conseguir descobrir o conceito gramatical que define uma palavra que tem significados opostos – se é que existe.

Comentário na RFI

Sobre a situação política no Nepal, entrevistaram-me ontem da Rádio França Internacional (RFI), edição portuguesa (Brasil). Até hoje à noite (Quarta), podem ouvir o meu comentário aqui, no Jornal deles, edição on-line. Começa ao minuto 14. Se quiserem mais opções, ou carregar por inteiro, vejam o site (Jornal das 20:30). Acho que costumam enviar para difusão na Rádio Paris-Lisboa (agora Rádio Europa FM), mas não sei se desta vez o fizeram também.

segunda-feira, 24 de abril de 2006

Pontualidade indiana

Na semana passada prestei os meus serviços de intérprete à Embaixada do Brasil e a uma delegação de vinte economistas em visita oficial à Índia. Acompanhei-os durante três dias a várias instituições, incluindo a minha própria universidade e órgãos como a importante Planning Commission (que elabora os planos quinquenais para a economia indiana – um resquício do socialismo nehruviano) e demais federações de câmaras de comércio e indústria, bem como a Indian Economists Association, para além da minha própria universidade.

Para além da experiência enriquecedora em termos profissionais e de ter alargado os meus conhecimentos económicos sobre a Índia, observei repetidamente um fenómeno que marcava o final de todas as reuniões. Seguindo à risca o programa estabelecido, os responsáveis (directores, administradores, professores etc.) indianos terminavam cada encontro de forma abrupta, no momento exacto em que o ponteiro mais comprido do relógio apontava para a hora marcada para o fim da reunião. Sem papas na língua, alguns referiam mesmo “our time is over” e iniciavam os agradecimentos e demais formalidades finais, perante uma vintena de economistas brasileiros estupefactos, alguns dos quais já se tinham inscrito para colocar perguntas.

Claro, sem margem de manobra, não restava aos brasileiros nada mais do que aceder e terminar o encontro, os indianos desaparecendo nos corredores da sua instituição o tão rapidamente como tinham aparecido, à hora marcada. Transparecia então no ar brasileiro um pequeno estado de choque. A maioria estava disposta, talvez, a beber mais uns cafés e continuar a discutir depois ao almoço ou ao jantar, respectivamente. Pelo menos é o que me pareceu. O chefe de delegação chegou mesmo a mandar uma “boca” aos indianos, que educadamente (e controversamente) não traduzi, para não ferir susceptibilidades locais.

Esta experiência demonstra um fenómeno curioso. Nas altas instâncias governamentais, a pontualidade parece reinar na Índia. Talvez uma herança britânica. Mas note-se que não estabeleço a equivalência entre pontualidade e produtividade. Parece-me que é simplesmente uma tradição fortemente enraizada, uma forma de trabalhar bastante anglo-saxónica e norte-europeia; pouco latina, pouco brasileira.

Isto, no entanto, ao contrário do resto da sociedade, em que o conceito de pontualidade é tremendamente demissionário. Na semana passada realizou-se a cerimónia e festa de despedida para o meu ano, que termina agora em Maio o curso. Os convites anunciavam o início da festa para as 19:30, mas, até às 21:15, só se encontravam no local cinco gatos pingados, todos estrangeiros, eu incluído. Pelas 21:30, duas horas depois do início oficialmente anunciado, lá se reuniu a primeira vintena dos setenta estudantes convidados.

sábado, 22 de abril de 2006

Assimilação

Diz-se que a Índia sempre teve um grande poder de atracção, conquistando os seus invasores por via da assimilação. É o caso dos arianos em tempos imemoráveis, das dinastias islâmicas turcas da Ásia Central a partir do século X, do império mógul na época medieval e mesmo dos colonialistas europeus – basta recordar os Anglo-Indians e os casos de Goa e Pondichérry.

De certa forma, também eu estou a ser vítima deste poder indiano. Há um ano que ando numa mota, embora não tenha carta de condução válida, nem qualquer seguro ou título de propriedade, muito menos o certificado ambiental que agora também introduziram por estas bandas. Em vez de me dar ao trabalho dessa burocracia toda, preferi apostar no Siddarth Singh, o jovem polícia cá da zona, onde mais me movimento. É ele o principal responsável pelas operações Stop, escondendo-se por detrás de uma árvore, para, de repente, saltar para a frente de um veículo contra-ordenador e coligir o seu suplemento salarial mensal.

Depois de me apanhar algumas vezes e me deixar passar com umas multas simpáticas e muitas perguntas curiosas sobre o meu país, contra-ataquei e conquistei-o com um método indiano poderosíssimo. Ele tinha-me referido que colecciona moedas estrangeiras, e percebi logo a dica. Na semana passada parei voluntariamente quando passava por ele, sem capacete. Os condutores à volta estranharam um pouco, mas perceberam logo quando saquei da minha carteira para lhe colocar nas mãos umas moedas em Euros, Rupias do Sri Lanka e Bhats da Tailândia. Ficou combinado que para a próxima vamos beber um chá.

Imagens de Deli: Leh

Leh (Lê) é a capital do distrito de Ladakh (Ladaque), no estado de Jamu e Caxemira. Fica situada num vale estratégico, escavado pelo magnífico Rio Indus (bom para rafting) e numa das antigas rotas comerciais que as mulas e os mercadores percorriam, entre o Tibete, os planaltos indostânicos e as cordilheiras da Ásia Central. De maioria budista, com uma importante minoria muçulmana, o Ladaque é conhecido como o Tibete indiano, apresentando aos seus visitantes centenas de templos budistas (gompas) e maravilhosos circuitos para a prática do montanhismo, com os seus gélidos cumes que tocam os 7000 metros de altura.

Até à década de noventa o turismo aqui era restrito por imposições do Governo. Embora presença militar do Exército indiano ainda pese muito e haja áreas em que é necessária uma autorização especial de visita (especialmente nas zonas fronteiriças disputadas com a China e o Paquistão), hoje o Ladaque é um dos destinos turísticos preferidos na Índia. Não há ligação ferroviária e as duas únicas estradas (pistas) que aqui chegam só se encontram transitáveis no verão, entre Junho e Setembro. De resto, só mesmo voando.

Na imagem, o Palácio de Lê, sede da dinastia reinante até há três séculos atrás, quando o Ladaque foi conquistado e anexado pelos hindus e siques de Jamu. O palácio é visto como uma miniatura do seu congénere Potala, na Lhasa tibetana, mas respira pouca vida - os monarcas locais procuraram exílio em Stock, uma pequena vila a quinze quilómetros de Lê, onde ainda hoje residem os seus descendentes. Como tantas outras famílias reais indianas no pós-independência, perderam o seu esplendor. Ainda tentou a adaptação ao sistema parlamentar e a rainha local foi eleita como deputada pelo círculo de Ladaque, mas os seus descendentes sucumbiram ao caciquismo e ao despesismo, tombando no esquecimento e na periferia política da região.

Citações de Deli: V. S. Ramachandran

"Your blog, your i-way-, i-view, email, webmail - we are all being already assimilated into the brahman of cyberspace. What is the individual, but a node in this huge Internet? We are approaching that stage where we are becoming like the brain in the vat. "

Dr. V. S. Ramachandran, Director do Centre for Brain and Cognition na University of California, San Diego, em entrevista à Frontline. É autor do best-seller "The Emerging Mind", Profile Books, London, 2003

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Reino em perigo (Expresso)

Expresso, edição 1746, Internacional, 14 de Abril de 2006

Nepal: Confrontos ameaçam a frágil democracia

O tímido apoio popular à oposição democrática tem permitido evitar uma ruptura política definitiva no Nepal, apesar dos violentos confrontos desta semana

ESTA semana, violentos confrontos entre manifestantes pró-democracia e forças policiais e militares provocaram várias vítimas mortais e centenas de feridos na capital do Nepal, Katmandu. O recolher obrigatório foi violado por milhares de manifestantes, e centenas de políticos, jornalistas e activistas foram detidos. Os confrontos põem em causa a viabilidade da frágil democracia nepalesa, em vigor desde o fim oficial do absolutismo real, em 1990.

Há pouco mais de um ano, o soberano nepalês, Gyanendra, declarava o estado de emergência, demitia o Governo e acumulava, de forma absolutista, as funções de chefe de Estado e de Executivo. Declarou então que o fazia em nome da «paz, democracia e segurança» do seu pequeno reino hindu de 26 milhões de habitantes.

Mas as promessas reais esfumaram-se ao longo de 14 meses e o país submergiu numa profunda instabilidade, chegando a guerrilha armada maoísta (que controla quase dois terços do território) a cercar Katmandu.

Um dos partidos que se opõem ao monarca já reivindicou a instauração de uma nova República e os maoístas há muito que vêem a família real como símbolo de «despotismo e feudalismo medieval». Gyanendra tomou posse em 2001, depois de o príncipe e pretendente ao trono, Dipendra, se ter suicidado, após ter assassinado os seus pais monarcas.

O que, no entanto, parece ter adiado até agora uma ruptura maior é o tímido apoio popular à oposição democrática. Segundo uma sondagem recente, os nepaleses repartem as culpas pela crise actual de forma igual entre o rei, os maoístas e os partidos. Os receios que o fim abrupto da monarquia afunde o país no caos político e militar também contribuem para a reserva da opinião pública.

Mas para Jhalanath Khanal, ex-ministro pelo Partido Comunista do Nepal (CPN-UML), as manifestações desta semana espelham uma mudança. «Pela primeira vez, centenas de milhares de pessoas estão na rua. O rei não poderá resistir a esta oposição popular», afirmou ao EXPRESSO o deputado da segunda maior formação no Parlamento que Gyanendra dissolveu em 2002.

Acordo histórico.

Procurando estabelecer uma alternativa credível de governo, os sete principais partidos e os maoístas assinaram, em Novembro passado, um acordo histórico em que exigem um governo interino e eleições para uma nova Assembleia Constituinte. «Os maoístas saberão e deverão fazer parte desta transformação pacífica», diz Khanal, lembrando que os seus líderes se comprometeram com uma democracia multipartidária.

Também Narayan Wagle, editor do jornal «Kantipur Daily», defende uma nova Constituição e avisa que «se este processo democrático falhar, o Nepal sucumbirá à guerra civil». Wagle defende «sanções internacionais», para isolar Gyanendra, e que sejam «repostos os direitos cívicos elementares». A organização internacional Repórteres Sem Fronteiras estima que, em 2005, metade dos casos de censura registados no mundo inteiro tenha tido lugar no Nepal.

Contudo, a comunidade internacional tem-se mostrado reticente em apoiar as aspirações dos partidos. Os Estados Unidos têm criticado os «métodos autocráticos», mas apelam ao diálogo e à continuação da monarquia constitucional. Já a vizinha Índia receia o impacto da crise no seu território, onde vivem milhões de emigrantes nepaleses e operam grupos armados aliados dos maoístas.

O Nepal é um dos países mais pobres do mundo, dependendo 80% da sua população da agricultura. Calcula-se que o conflito entre a insurreição maoísta e o Exército provocou, desde 1996, cerca de 13 mil mortos e mais de 100 mil refugiados internos.

Constantino Xavier, correspondente em Nova Deli

sexta-feira, 14 de abril de 2006

Os indianos desaparecidos

Num país tão grande como o é a Índia, com 1030 milhões de pessoas, compreendo que haja dificuldade em saber com precisão, a cada momento, onde cada vivalma se situa. Ou apurar as décimas e as centésimas do crescimento demográfico, das taxas de natalidade ou da alfabetização.

O que, no entanto, mais me faz estranhar, é um curioso desaparecimento de, nada mais nada menos do que... uns 300 milhões de indianos. Os media internacionais, bem como os parcos livros publicados sobre a Índia contemporânea no estrangeiro, costumam, quase sempre, focar dois fenómenos socio-económicos quando analisam a demografia do país.

Primeiro, fazem referência à “gigante” classe média indiana que estimam normalmente situar-se entre os 300 e os 400 milhões de indivíduos. Referem-se a este estrato social como sendo o “motor” do crescimento económico, o banco de votos preferencial dos nacionalistas hindus do BJP e o símbolo da emergência de uma “nova Índia”, urbana e moderna, consumista.

Depois, na linha do “há sempre um lado oposto por explorar na Índia”, apoiam-se em estatísticas para falar dos que são “excluídos” pelas reformas económicas, a Índia das vozes empobrecidas, miseráveis e famintas, estimando haver, novamente, 300 a 400 milhões de pessoas a viver abaixo do limar da pobreza.

Ora, no melhor dos casos, faltam-nos aqui umas 230 milhões de pessoas. No pior, 430 milhões. Pergunto-me onde estarão estes indianos? A Índia merece um pouco mais de atenção. Não deixem escapar três ou quatro centenas de milhões, se faz favor. Talvez venham a fazer uma diferença considerável.

Imagens de Deli: Estação ferroviária em Sanchi

Estação de comboios de Sanchi, poucas dezenas de qulómetros a Norte de Bhopal, cidade capital do estado de Madya Pradexe. Esta pequena vila apresenta um conjunto monumental de templos e edifícios budistas (stupas), lembrando que a Índia é o berço desta religião e foi, em tempos, predominantemente budista. Sanchi é Património Mundial da UNESCO e um dos locais que mais gostei de visitar na Índia.

quinta-feira, 13 de abril de 2006

Estados falhados

Há toda uma literatura teórica e uma recente fascinação académica pelo conceito de “estados falhados”, lastimáveis zonas negras do nosso mapa mundo em que não há rei nem roque e impera o imaginário da desordem, das AK 47, dos sucessivos golpes militares e de “capacetes azuis” desarmados cercados por tribais de canas e espadas em punho.

Por outro lado, há todo um misticismo à volta dos reinos tropicais ou montanhosos, rodeados de densa floresta quasi-impenetrável ou encostados a cumes cobertos de neve e gelo, em que o homem natural vive em perfeita harmonia com o ambiente e os seus congéneres, sob auspícios equilibradores do soberano, talvez uma encarnação de uma divindade mitológica.

Ao preparar o meu artigo sobre a situação actual no Nepal (sai amanhã no Expresso), deparei-me com estes dois imaginários e ideais. Já me tinha acontecido quando escrevi, em Agosto passado, sobre a “ameaça” do islamismo político que paira actualmente sobre o Bangladesh. Devo dizer que da mescla destes imaginários resultou uma visão mais realista e moderada das coisas do mundo.

Para dar mais profundidade aos textos, procuro sempre entrevistar individualidades nos respectivos países ou especialistas nas respectivas áreas. Lembro-me, que no verão passado, vi-me aflito para o conseguir no caso do Bangladesh. Tinham então passado poucos dias sobre os mais de 500 atentados bombistas que flagelaram dezenas dos seus distritos, de forma praticamente simultânea.

Não quero imaginar como será num caso de verdadeiro golpe de estado (situação que Daca já testemunhou várias vezes ao longo das últimas décadas), mas descobri então como é difícil sequer conseguir ligação telefónica para os meus entrevistados. Ou comunicar com uma panóplia de assistentes e secretárias que não sabiam falar inglês, para além do ensurdecedor ruído de fundo que marca as conversações e os repetidos cortes.

Ontem, passou-se o mesmo no caso nepalês em que o monarca Gyanendra (visto como uma encarnação da divindade hindu Vixnu) é oposto por milhares de manifestantes. O governo pôs as operadoras de telecomunicações móveis fora de serviço e a maioria das ligações de rede fixa para onde falei ontem estavam certamente sob escuta: vários editores (os que ainda não foram presos), alguns secretários e um ex-ministro e deputado do segundo maior partido (comunista: CPN-UML). Este último, claro, muito disposto a ser entrevistado, passou quase um minuto – na boa tradição estalinista – a enumerar todo e qualquer grupo profissional que dizia estar na rua a protestar contra o rei e espelhar “o povo unido”: “doctors, teachers, nurses, engineers, union workers, journalists, teachers, union workers, peasants, union workers” etc.

É interessante também observar a reacção dos entrevistados, depois de eu me apresentar e colocar-lhes o intuito do contacto. Perguntam, primeiro, para eu repetir o nome do país: “From where is your newspaper??”, mas safa-me o nome Expresso, familiar aos ouvidos anglo-saxónicos. Meu Deus, o que seria de mim se fosse correspondente do Diário de Notícias ou do Correio da Manhã. Desligavam-me o telefone na cara, provavelmente ofendidos. Depois as reacções repartem-se pelos que aceitam logo, os que dão o e-mail e dizem preferir uma entrevista por escrito (o que poder ser um “não” educadamente asiático), e os raros que querem mais detalhes, o meu nome, o do meu editor etc.

Embora depois destas experiências eu me sinta tentado a legitimar a teoria dos “estados falhados”, por outro lado, estou também inclinado a conceder que há pouco de “falhado” e que, afinal, a vida continua, seja em Lisboa, Deli, Daca ou Katmandu. Os jornais vão funcionando, os editores dão-se ao trabalho e ao tempo de me responderem por e-mail num espaço de poucos minutos e os políticos trabalham para o seu ganha-pão e popularidade. Salvo em casos extremos, talvez muitos deles em África, o resto do mundo está longe de ser composto por falhas. Há muito ainda por se realizar plenamente, é certo, mas, afinal, errar e falhar é humano. E estatal.

sábado, 8 de abril de 2006

Glorioso

Como qualquer ser humano jovem, ou menos jovem, também eu passo por cíclicas crises por coabitar há já quase dois anos com a mesma pessoa. Neste caso, é o Chacate, o moçambicano, que vive no quarto que dá para Sul (eu estou no meio e o quarto que dá para Norte é do americano Tyler, que já conheceram). Criam-se hábitos, descobrem-se defeitos. Convive-se diariamente, nocturnamente.

Ambos de um ramo em que tanto se debate apaixonadamente – as Relações Internacionais – e separados muitas vezes pela ideologia (ele, militante da Frelimo e namorado do marxismo-leninismo, eu não sei bem o quê, mas mais virado para a Tailândia), as discussões animam, aquecem e, por vezes, azedam rapidamente. O colonialismo, os Estados Unidos, Chirac, o Togo, os brasileiros, a democracia ou, simplesmente, a Índia levam-nos a isso. Mas, no cômputo geral, somos bons amigos. A vida em Deli juntou-nos, por acaso, e duvido que esse laço jamais desaparecerá.

Certamente, é a língua que mais nos aproxima. Já tinha reparado nisso durante a minha estadia em França. A língua tem um potencial enorme de juntar e separar as pessoas. Há muitas coisas que ficam por dizer quando dois interlocutores não partilham a mesma língua materna. Entendemo-nos em português, em Nova Deli. Se houvesse um Chacate nigeriano, que pudesse somente comunicar comigo em inglês, não seria tão amigo meu como este Chacate lusófono.

No nosso caso, no entanto, há um laço de união mais forte. Chama-se Sport Lisboa e Benfica. Vibramos, sofremos, exultamos com o Benfica, à distância de milhares de quilómetros. No ano passado descobrimos um canal de desporto indiano que mostrava os derbies lusos em directo, de madrugada. Este ano parece que não renovaram o contrato de direitos de transmissão, mas fomos compensados pela fabulosa campanha na Liga dos Campeões e com a sorte de nos calharem duas equipas inglesas como adversários, porque a Índia futebolística rege-se ainda pelos critérios britânicos e são esses os jogos televisionados.

De noite, já passa da meia-noite, reunimo-nos à frente do pequeno televisor no quarto moçambicano e sofremos igualmente, como dois benfiquistas, berramos, saltamos e abraçamo-nos a cada golo, bebemos cerveja, comemos amendoins e, quando a imagem desaparece porque o operador do serviço de cabo adormeceu, contentamo-nos com o relato radiofónico via Internet.

Às vezes encontramo-nos com outros estudantes estrangeiros e colegas indianos e vemos os jogos na universidade. Graças ao reduzido merchandising encarnado que possuimos e importámos de Lisboa, vários deles já se converteram ao Glorioso. Falta pouco e abrimos uma segunda Casa do Benfica lá na universidade, porque uma já temos, nesta casa lusófona.

O Luís Filipe Vieira que se deixe de chinesices e venha para a Índia. Em finais da década de cinquenta, o meu avô, então no Conselho de Desportos do Estado da Índia Portuguesa, trouxe a equipa de reservas do Benfica a Goa. Espero um dia vir a poder trazer Simão e Cia. a estas longínquas, mas não menos benfiquistas e gloriosas, terras. Em que há muitos que se dizem orgulhosamente benfiquistas... em português.

Imagens de Deli: Entrega de bilhas de gás

Aqui a Deli, ainda não chegaram as mini-saias da "menina do gás". Mas o serviço de entrega de bilhas de gás depende igualmente das pernas. Magras, suadas e pedalando.

O calor e o trabalho apertam

O calor - sim, Deli já namora a casa dos quarenta graus - e o redobrado trabalho nesta altura da época académica fizeram esta Vida em Deli desacelerar. Logo que amanhã voltar da minha apresentação de grupo "Sunset, Sunrise: France and China" na cadeira "Great Powers in the International System", voltarei a teclar e a postar sobre esta minha vida deliense.

terça-feira, 4 de abril de 2006

Imagens de Deli: Várzea em Goa

No extremo sul de Goa, no concelho de Canácona, perto da aldeia de Galgibaga. A meio da tarde, num quente final de Dezembro, correm-se as várzeas em busca do ingrediente principal da dieta goesa: o arroz. É assim há séculos. Será assim por poucos anos mais. Estive a pensar: ainda haverá pescadores em Lagos, no Algarve? Ou aquela costa toda já só depende do turismo? Receio que o mesmo possa vir a acontecer muito em breve em Goa. Com todos os benefícios e todas as desvantagem que daí advirão.

Back to the future

Há aqueles ditados que nos mandam ser romano em Roma. E outros que valorizam a sapiência das pessoas da “terra”, os locais. Há uma admiração dos modernos turistas pela tradição popular, que às vezes, supostamente, consegue mesmo derrotar os aparelhos, as máquinas e as ciências racionais. O tal camponês que sem relógio sabe acordar matematicamente – durante todo o ano – exactos cinco minutos antes de o sol nascer. São os pequenos mitos, alguns verdadeiros, que nos fazem lembrar que houve um mundo pré-moderno, tradicional, e que nós nos afastámos dele, munindo-nos de dependências materiais e científicas para maximizar produtividade, saúde, ou, simplesmente, pontualidade.

Politicamente manipuladas, estas emoções podem levar à recusa do moderno, à negação do avanço científico e tecnológico e explicam, talvez, a razão pela qual milhares de alemães e escandinavos que todos os anos abandonam as suas promissoras carreiras, as suas confortáveis casas e os seus colossais carros para irem vivem numa ilhota no Pacífico, numa aldeia rural indiana ou na floresta tropical africana em busca de algo primitivo e essencialmente puro. É o mito do bom selvagem na prática. As yogas, os zens, as Naturas e os sumos com polpa enquadram-se nesta onda.

Sem querer negar este direito ao auto-exílio e ao regresso à natureza a quem assim prefira, ponho, no entanto, em causa o mito que “o natural/tradicional é sempre melhor”. Lembro-me de, recentemente, estarmos numa pequena aldeia nos Himalaias. Tinha que apanhar um autocarro para outra aldeia. A família que nos albergava anunciou-nos com segurança e sabedoria que o autocarro partia sempre às nove da manhã, em ponto, há anos. Desconfiado e ocidental como sou, fui abrir o meu Lonely Planet de 2003 e este anunciava que o dito autocarro partia às oito e meia da manhã, todos os dias. Ou seja, meia hora mais cedo. Inseguro, e sem querer ferir susceptibilidades (ou seja, ocidentalmente), lá decidi seguir as instruções populares. Quando nos aproximávamos da avenida principal, pouco passava das nove da manhã, o autocarro passou velozmente por nós, deixando uma grande nuvem de pó e muitas certezas quanto à superioridade de quem faz guias turísticos à distância de milhares de quilómetros, algures em Sydney.