O sociólogo Alberto Gonçalves, numa edição do DN de há umas semanas.
"Há meses, no Expresso, o meu amigo João Pereira Coutinho lembrou o general Charles James Napier, comandante militar da administração britânica na Índia oitocentista. Uma ocasião, Napier recebeu uma delegação regional, que reivindicava o direito de realizar a "sati", a divertida mania de grelhar as viúvas na pira funerária dos maridos. O general propôs um encontro de culturas: "A vossa tradição inclui a queima de mulheres. Óptimo. A minha inclui o enforcamento das pessoas que queimam mulheres. Façam a pira, que ao lado faremos uma forca. Vocês cumprem o vosso costume, nós cumprimos o nosso." Obviamente, não foi o que se passou no século posterior. Aos poucos, a Grã-Bretanha (e a Europa) largou o império e os costumes. Os ex-colonizados levaram os costumes para a casa dos ex-colonos. E a sensatez de Napier não tem herdeiros."
Pergunto eu: que tal acostumarmo-nos um pouco aos costumes dos outros, em vez de insistirmos no (muito oitocentista e infantil) "olho por olho, dente por dente"?
"Acostumar-me" ao costume de queimar as viúvas nas piras dos maridos falecidos? Não acredito que possas defender isso. Devo ter percebido mal. Vou dar-te a oportunidade de explicar melhor antes de me lançar num ataque ao teu relativismo cultural.
ResponderEliminarAbraço.
Comentário extremamente lúcido de Constantino à afirmação do sociólogo. Não que se faça a defesa do sati ou de outras práticas similares ainda em curso. A questão toda está no fundo e na forma com que ainda encaramos a cultura do “outro”. A visão colonial e orientalista vigora em tempos pós-coloniais (ou será “globalizados”?). Há melhor resposta que o clip do post posterior? O poeta brasileiro Antônio Cícero, comentando a frase de Lévi-Strauss "O bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie", diz o seguinte: “Digamos, por exemplo, que eu, que acredito em direitos humanos, soubesse que uma mulher vai ser lapidada por ser adúltera. Nesse caso, eu certamente me revoltaria contra tal ato, a menos que julgasse que as pessoas em questão, não pertencendo à minha cultura, não eram propriamente humanas. Esta última hipótese, porém, seria exatamente o cúmulo da barbárie. A única possibilidade que resta é que o civilizado seja aquele que julga as formas das demais culturas segundo critérios que não pertençam a nenhuma cultura particular: nem mesmo à sua cultura de origem. Se isso for possível, o etnocentrismo é superado, não apenas no sentido convencional do termo mas também no sentido de que, para o indivíduo, a sua própria cultura deixa de ser absolutamente central.”
ResponderEliminarBoa tarde de Deli,
ResponderEliminarobrigado pelos comentários muito pertinentes e por ter algum debate de volta a este espaço!
Everton, há provavelmente duas palavras essenciais que nos poderão ajudar a fugir ao eterno debate e dicotomia etnocentrismo vs. relativismo:
Cosmopolitanismo
Descentralização
Um não pode ser atingido sem o outro. Só descentralizando as nossas perspectivas naturalmente etnocêntricas ("multi-perspectivismo", segundo o seu patrício Viveiro de Castro), poderemos aspirar a sermos mais cosmopolitas e universalistas. Por outro lado, só poderemos (e quereremos) descentralizar as nossas perspectiva, se mantivermos aspirações cosmopolitas nos nossos horizontes.
João, amigo. Claro que interpretaste mal, porque interpretaste só um lado do "acostumar-se", neste caso a acostumação à tradição indiana do sati.
Não vou ao ponto nacionalista e hiper-patriótico de dizer que me orgulho de fazer parte de uma nação cujo conquistador passado Afonso de Albuquerque foi o primeiro europeu a abolir a prática na Índia. Nem vou ao ponto relativista de afirmar que o sati deve ser respeitado por ser uma tradição ancestral indiana com uma importance função socio-económica.
O meu "acostumar-se", isso sim, apela a um entendimento, a um diálogo inter-cultural, inter-costumes. Algo que os nossos conterrâneos João Pereira Coutinho e Alberto Gonçalves não entendem, ao defenderem a infantil afirmação do colonialista britânico: "Vocês cumprem o vosso costume, nós cumprimos o nosso."
Não é assim que progrediremos em direcção a um maior cosmopolitanismo e a um maior diálogo e a uma paz inter-cultural ou inter-civilizacional. A afirmação de Napier defende o auto-isolamento e a clausura cultural: vocês façam o que sempre fizeram, nós faremos o que sempre fizemos.
Penso que estarás de acordo comigo. Ou dignar-te-às a defender, em público, João Pereira Coutinho, Alberto Gonçalves e Charles James Napier?
Como português exilado em Gales, espero é um comentário teu ao episódio de Shambo the Bull...!
Abraços aos dois.
Constantino
Você disse tudo, Constantino. Compreendi o seu “acostumar-se” tal e qual, procurando, entretanto, alargar a reflexão quando falei de fundo e forma. Explico-me melhor: o que me aflige mais no comentário do sociólogo é quando ele diz que “os ex-colonizados levaram os costumes para a casa dos ex-colonos”. Certamente não se deve tirar a frase do seu contexto (excisão tolerada na Europa), mas nós sabemos que a coisa não pára por aí: conseqüente estigmatização dos povos “outros”, para não dizer uma dissimulada justificativa das medidas arbitrárias contra imigrantes ilegais em países europeus ou marginalização daqueles – oriundos destas mesmas imigrações - que apesar de serem também “nacionais” (ou “legais”) pertencem a universos culturais distintos. Talvez eu esteja exagerando e vendo algo atrás das palavras que não existe, porém, trocando em miúdos, acho que o que levanto se aproxima do que você diz: o fato de Napier defender o auto-isolamento e a clausura cultural, que, por tabela, é o mesmo que fazem o sociólogo e o amigo que lhe contou a anedota (pois não é o que parece? Uma anedota? para se rir em sociedade...).
ResponderEliminarUm abraço.
Pode-se respeitar tradições/costumes desde que não entrem no domínio do crime!!!!!Sati é crime! E se fosse você obrigado a imolar-se pelo fogo?? Acharia justo? Não se deve combater um crime com outro crime, concordo, mas por favor, coloque-se por uns minutinhos na mente de uma destas infelizes e reflicta se é racional colocar postes destes tão dúbios que levem mts a pensar que sati é algo defensável. Me desculpe, mas sati é crime, é um absurdo, não pode ser aceitável!!
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