O sul da Índia é obviamente mais simpático que o Norte. Notei isso logo à chegada, quando me acolheu um aeroporto vazio, espaçoso e hospitaleiro. Uns miúdos da rua não estavam a ver se me roubavam umas rupias mas riam-se ingenuamente do gordo português que me acompanhava. O nosso guia pegou nas malas, arrumou-as na bagageira e depois de nos fazer umas perguntas bem-educadas adormeceu no banco da frente. O motorista não abriu a boca, mas levou-nos em segurança até ao hotel.
As pessoas são boas aqui. Ajudam muito. Sorriem sempre. E fazem muitas perguntas – mas não por maldade, simplesemente por curiosidade. E o que custa satisfazer essa genúina necessidade, essa preocupação em saber mais de nós, em nos ajudar.
Tinha que encontrar um cibercafé na cidade de onde pudesse enviar um artigo para o Expresso. O taxista que me veio buscar recebeu as ordens do recepcionista e levou-me logo a bom-porto, sem parar antes num cibercafé mais próximo do que o indicado (mas que estava fechado) porque pouparia dinheiro de deslocação.
No cibercafé fizeram todos os esforços possíveis para ligarem o meu portátil directamente à Internet. Finalmente correu bem, com total dedicação e empenho de trés empregados. E embora me tivessem dito que fechavam às dez da noite, como eu tive problemas a enviar um e-mail, mantiveram a loja aberta só para mim até quase perto das onze horas.
E nem me vieram perguntar porquê. Mas dei-lhes sinal da minha dificuldade depois de vinte minutos e responderam com um sorriso e "no problem". Quando quis dar uma gorjeta de vinte rupias, ao pagar, recusaram educadamente e preferiram em vez disso trocar uns dedos de conversa (basicamente uma avalanche de perguntas) que prontamente cedi.
Aqui todos parecem sorrir mais, parecem mais familiares e são mais prestáveis. Talvez por ser uma cidade mais pequena do que Nova Deli, mas certamente também porque o Sul é mais simpático do que o Norte.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2005
O Português
Onde acaba a terra? Talvez ali à frente. Onde estão os monstros? Talvez prontos para nos engolir. Onde estão os selvagens? Talvez a ferver água para nos cozinhar. Onde estão os mosquitos? Talvez a lamber os lábios para nos sugarem o sangue. Onde estão os inimigos? Talvez a afiarem as espadas para nos degolarem. Avante!
Onde está o meu telemóvel? Talvez no carro. Onde estão os meus amigos? Talvez ali no bar da esquina. Onde estão os saldos? Talvez já nas Amoreiras. Onde posso ver sexo? Talvez no canal 18. Onde posso passar as férias? Talvez no Algarve. Tens a certeza?
É o último. Das centenas de nobres lusos que há poucas horas ocupavam religiosamente os baluartes e as muralhas só resta ele. Os mouros apanharam-nos de surpresa. Morreram todos. E a mim deixaram-me viver. Porque eu lhes disse que lhes iria mostrar o local secreto em que guardámos o tesouro que vai para o reino. Segue com uma tocha na mão, iluminando os túneis subterrâneos da fortaleza africana. Centenas de mouros ávidos seguem-no, os olhos brilham, é o tesouro tão esperado pelo qual esperaram 5 meses de cerco. Quando ele chega, ao paiol, e não ao tesouro, vira-se, sorri para o inimigo e lança a chama, lançando todos para outro mundo. Coragem.
Não saí do hotel, quase. Aquilo era uma porcaria. Cheirava mal, especialmente. E até havia vacas a andar pelas ruas. Tantos mosquitos que perdi de certeza uns litros de sangue. E perigoso, porque estavam sempre a fazer perguntas a ver se me raptavam. Eu não falava com ninguém, preferia ficar no autocarro e deixar o grupo seguir para as visitas. Nunca mais volto. Esses países são perigosos. Ainda rebenta uma guerra e depois fico lá para sempre ou cai-me uma bomba na cabeça. Para a próxima peço ao Pedro para deixar de inventar e marcar um Spa no Brasil, lá pelo menos percebe-se o que falam. Cobardia.
O português mudou. Há 500 anos embarcava no Rio Tejo com a certeza que provavelmente nunca voltaria a ver a sua terra. Com a certeza que casaria, morreria numa terra de que nunca ouviu falar e que com sorte ele mesmo descobrirá. Conquistava rios, montes, continentes e oceanos. Descobria terras, povos e culturas. Construía igrejas, fortes e palácios. Deixava rastos de suor e sangue, mas deixava rastos. Há 500 anos o português acreditava e por isso tinha certezas. Hoje vive acobardado na eterna procura das certezas e das seguranças, sem crença nem rasto.
Onde está o meu telemóvel? Talvez no carro. Onde estão os meus amigos? Talvez ali no bar da esquina. Onde estão os saldos? Talvez já nas Amoreiras. Onde posso ver sexo? Talvez no canal 18. Onde posso passar as férias? Talvez no Algarve. Tens a certeza?
É o último. Das centenas de nobres lusos que há poucas horas ocupavam religiosamente os baluartes e as muralhas só resta ele. Os mouros apanharam-nos de surpresa. Morreram todos. E a mim deixaram-me viver. Porque eu lhes disse que lhes iria mostrar o local secreto em que guardámos o tesouro que vai para o reino. Segue com uma tocha na mão, iluminando os túneis subterrâneos da fortaleza africana. Centenas de mouros ávidos seguem-no, os olhos brilham, é o tesouro tão esperado pelo qual esperaram 5 meses de cerco. Quando ele chega, ao paiol, e não ao tesouro, vira-se, sorri para o inimigo e lança a chama, lançando todos para outro mundo. Coragem.
Não saí do hotel, quase. Aquilo era uma porcaria. Cheirava mal, especialmente. E até havia vacas a andar pelas ruas. Tantos mosquitos que perdi de certeza uns litros de sangue. E perigoso, porque estavam sempre a fazer perguntas a ver se me raptavam. Eu não falava com ninguém, preferia ficar no autocarro e deixar o grupo seguir para as visitas. Nunca mais volto. Esses países são perigosos. Ainda rebenta uma guerra e depois fico lá para sempre ou cai-me uma bomba na cabeça. Para a próxima peço ao Pedro para deixar de inventar e marcar um Spa no Brasil, lá pelo menos percebe-se o que falam. Cobardia.
O português mudou. Há 500 anos embarcava no Rio Tejo com a certeza que provavelmente nunca voltaria a ver a sua terra. Com a certeza que casaria, morreria numa terra de que nunca ouviu falar e que com sorte ele mesmo descobrirá. Conquistava rios, montes, continentes e oceanos. Descobria terras, povos e culturas. Construía igrejas, fortes e palácios. Deixava rastos de suor e sangue, mas deixava rastos. Há 500 anos o português acreditava e por isso tinha certezas. Hoje vive acobardado na eterna procura das certezas e das seguranças, sem crença nem rasto.
Portugal
Seminário internacional sobre Portugal, organizado por académicos indianos. Na brochura lê-se de tudo. Mas não sabem escrever. Portugese. Protughese. Protugal. A palavra essencial. Portugal.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005
Pais
Estão cá de novo os meus pais, de volta de Goa (onde fui crismado há duas semanas) e a caminho de Lisboa. Dormem no meu quarto. Passeiam pela cidade, fazem compras, revivem a juventude e a lua-de-mel que cá os trouxe há mais de 30 anos. Jantam comigo e conversam animadamente com os meus amigos, gostam da comida indiana que nós odiamos, vêem que estou feliz. Desfazem o mito luso que provavelmente até os assolou a eles. Estou bem, afinal. Não vivo na selva. Que refrescante visita.
Posicionamentos
Tudo está em ordem. Sentas-te aqui e eu ali. Na nossa sala de aula, poucas semanas depois de o curso ter começado, rapidamente se estabeleceu uma ordem muito lógica, muito histórica e muito naturalmente aceite por todos os jogadores. O jogo das castas. O jogo do animal social. O jogo da tradição que se mascara de modernidade. O jogo da Índia que ainda teme o estrangeiro mas finge tê-lo suplantado há muito.
Há três filas de bancos, separadas por dois corredores. Olhando da perspectiva de quem dá a aula, depara-se com a seguinte constelação posicional.
De maneira geral, há três zonas que emergem logo a olho nu. Na fila do lado esquerdo estão os indianos tradicionais, das pobres zonas rurais, geralmente de casta inferior, incluindo os intocáveis que Gandhi chamava de Harijans. Ocupam os primeiros cinco ou seis bancos da fila da esquerda. Ouvem com atenção, tiram muitos apontamentos. Muitos frequentam as aulas de "remedial English" porque têm muitas dificuldades na escrita.
Cada banco, indianamente ambiguamente, dá para dois ou talvez três estudantes sentarem-se. No caso deste grupo é curioso que sem excepção se sentam sempre três estudantes por banco, agachados e unidos, como se pairasse uma constante ameaça sobre as suas cabeças, um sentimento de culpa por uma ousadia que há não muito tempo talvez teria sido castigada com a morte. A vestimenta condiz: camisas com golas sujas, compridas, de fora das calças de tecido barato.
Vamos fazer a diagonal. Nos últimos bancos da fila da direita encontra-se outro grupo, também bastante unido, mas com uma ligeireza e à-vontade que não escondem um certo sentimento de superioridade. È o grupo dos brâmanes, ou, com excepções, de estudantes ricos e filhos de generais e políticos. Sentam-se humildemente lá no fundo, controlando o que se passa no microcosmo da aula. São aqui que nascem as intervenções mais ilustres, com citações em sânscrito (para nós como se fosse latim), divagações filosóficas e teimosias teóricas.
A vestimenta é variada. Alguns à indiana, mas sempre com tecido do melhor e que deixa rapidamente adivinhar a origem social e geográfica, e outros à ocidental, mas sempre uma aparência muito cuidada e um olhar acutilante que não deixa sombra para dúvidas. Com o peso de manter a ordem do cosmos, este grupo assume – tendo em conta o contexto – um papel similar ao que os seus antepassados assumiam. Adoptam alguns casos extraordinários, como um estrangeiro de origem indiana ou um estudante tribal desfavorecido mas com dinheiro, e integram-nos no grupo.
Vamos avançar para os primeiros bancos onde se encontra o bastião dos estudantes estrangeiros, encostadas ao púlpito professoral e com óbvias limitações linguísticas. Obviamente que consiste de uma amálgama de várias nacionalidades, trajes e passados, mas transparece uma solidariedade internacional que teria feito inveja a muitos soviéticos.
E a fila do meio? Nos bancos do meio e recuados encontra-se uma densidade acima da média de estudantes do Northeast indiano. São daqueles estados enclavados no extremo leste da Índia, encostados à China e ao Myanmar, muito ocidentalizados (parecem estudantes norte-americanso), falando inglês fluente e sendo maioritariamente cristãos. Mantêm uma distância muito grande do resto da comunidade estudantil indiana e por vezes até se aproximam mais da comunidade estrangeira. Mas o resto da fila, especialmente os primeiros bancos, é uma terra de ninguém ou uma zona de transição, embora a mobilidade não seja muita – na minha sala de aula, tal como na Índia.
Há três filas de bancos, separadas por dois corredores. Olhando da perspectiva de quem dá a aula, depara-se com a seguinte constelação posicional.
De maneira geral, há três zonas que emergem logo a olho nu. Na fila do lado esquerdo estão os indianos tradicionais, das pobres zonas rurais, geralmente de casta inferior, incluindo os intocáveis que Gandhi chamava de Harijans. Ocupam os primeiros cinco ou seis bancos da fila da esquerda. Ouvem com atenção, tiram muitos apontamentos. Muitos frequentam as aulas de "remedial English" porque têm muitas dificuldades na escrita.
Cada banco, indianamente ambiguamente, dá para dois ou talvez três estudantes sentarem-se. No caso deste grupo é curioso que sem excepção se sentam sempre três estudantes por banco, agachados e unidos, como se pairasse uma constante ameaça sobre as suas cabeças, um sentimento de culpa por uma ousadia que há não muito tempo talvez teria sido castigada com a morte. A vestimenta condiz: camisas com golas sujas, compridas, de fora das calças de tecido barato.
Vamos fazer a diagonal. Nos últimos bancos da fila da direita encontra-se outro grupo, também bastante unido, mas com uma ligeireza e à-vontade que não escondem um certo sentimento de superioridade. È o grupo dos brâmanes, ou, com excepções, de estudantes ricos e filhos de generais e políticos. Sentam-se humildemente lá no fundo, controlando o que se passa no microcosmo da aula. São aqui que nascem as intervenções mais ilustres, com citações em sânscrito (para nós como se fosse latim), divagações filosóficas e teimosias teóricas.
A vestimenta é variada. Alguns à indiana, mas sempre com tecido do melhor e que deixa rapidamente adivinhar a origem social e geográfica, e outros à ocidental, mas sempre uma aparência muito cuidada e um olhar acutilante que não deixa sombra para dúvidas. Com o peso de manter a ordem do cosmos, este grupo assume – tendo em conta o contexto – um papel similar ao que os seus antepassados assumiam. Adoptam alguns casos extraordinários, como um estrangeiro de origem indiana ou um estudante tribal desfavorecido mas com dinheiro, e integram-nos no grupo.
Vamos avançar para os primeiros bancos onde se encontra o bastião dos estudantes estrangeiros, encostadas ao púlpito professoral e com óbvias limitações linguísticas. Obviamente que consiste de uma amálgama de várias nacionalidades, trajes e passados, mas transparece uma solidariedade internacional que teria feito inveja a muitos soviéticos.
E a fila do meio? Nos bancos do meio e recuados encontra-se uma densidade acima da média de estudantes do Northeast indiano. São daqueles estados enclavados no extremo leste da Índia, encostados à China e ao Myanmar, muito ocidentalizados (parecem estudantes norte-americanso), falando inglês fluente e sendo maioritariamente cristãos. Mantêm uma distância muito grande do resto da comunidade estudantil indiana e por vezes até se aproximam mais da comunidade estrangeira. Mas o resto da fila, especialmente os primeiros bancos, é uma terra de ninguém ou uma zona de transição, embora a mobilidade não seja muita – na minha sala de aula, tal como na Índia.
sábado, 12 de fevereiro de 2005
Peso nos ombros
Chama-se N. Nos primeiros dias de aula apresenta-se orgulhosamente como "a Saraswat Brahmin". Antes mesmo de nos dizer o nome dela. N. anda com um grupo de amigos brâmanes do qual me aproximei tão rapidamente como me distanciei de seguida.
N. é o símbolo de uma Índia esquizofrénica. De uma geração confusa, perdida entre o nobre e estático peso da milenar tradição e a ordinária e fluída leveza simplista do presente. Enclausurada, sem saber o que abraçar. O passado ou o presente. A casta ou a cidadania.
N. é um pouco gordinha. Veste-se à ocidental. Defende os animais de Nova Deli. Especialmente os cães because we tend to forget them and we are only interested in our things. N. é inteligente, mas não muito. Lê aquilo o que supostamente deve ler e o que lhe permite resgatar-se da ignorância em caso de emergência.
N. é feminista também. As mulheres na Índia ainda são muito submissas e discriminadas. We have to change that. I feel that is my responsibility. Quando digo que nunca gostei muito da mulher de Gandhi, Kasturba, olha-me de soslaio, manda-me calar e ver o filme.
N. tem obviamente grandes depressões. Afinal, são uns quantos milhares de anos que lhe pesam nos ombros. Há que encontrar uma nova posição numa sociedade que não aceita posições, situações, hierarquias. Há que desaprender o que foi aprendido e ensaiado. N. já não é responsável por ninguém. Os oprimidos já sabem sobreviver sem ela, sem a família dela, sem a casta dela. A responsabilidade diluiu-se há muito, especialmente neste campus supostamente esquerdista, humanista, socialista e igualitário. N. está perdida.
N. vai à biblioteca. Vagueia pelas estantes. À procura de leitura. Alguém está na mesma estante, por detrás. N. nota. N. agacha-se para tirar um livro da prateleira inferior. Ao fazer isso as calças rebaixam-se e vê-se um pouco do rabo dela. N. vê um flash, um raio luminoso. Vira-se e vê um rapaz estudante com um telemóvel na mão. N. berra, sai a correr, chamar os amigos do círculo brâmane. Estes voltam ao local do crime, encostam o rapaz à estante, interrogam-no porque anda a tirar fotos perversas de raparigas. Mais tarde um deles admitir-me-ia com orgulho brilhando nos lábios que I was about to beat him up.
Depois de tanto interrogatório lembram-se de ver o telemóvel. Não tem sequer câmara e nunca tirou qualquer fotografia. N. ainda soluça, verdadeiramente em estado de choque, sem saber como reagir, deprimida, entre tradição e presente, entre casta, universidade, cidade e feminismo, zonza.
Deixam o rapaz depois de em jeito policial ficarem com os dados pessoais. N. aproveita para afirmar a sua posição que lhe é devida. Os amigos apoiam. Vai falar com o director do departamento, procurando apoio e consolo. Este submete-se, chama a mulher dele (também professora, com casa no campus) para vir apoiar também. A posição está garantida, a hierarquia restabelecida. N. reencontrou o que sempre lhe pertenceu.
Decide-se. O melhor é apresentar caso na comissão contra a discriminação sexual, verdadeiro aparelho inquisitório no campus (GSCASH). O rapaz é convocado para um interrogatório, defende-se como pode, mas só o deixam defender-se até onde acham necessário. A vítima não lhe olha nos olhos, não lhe toca. O caso é encerrado por falta de provas. Desta tiveste sorte, dizem-lhe. N. voltou a ser o que era. E um pouco mais.
N. é o símbolo de uma Índia esquizofrénica. De uma geração confusa, perdida entre o nobre e estático peso da milenar tradição e a ordinária e fluída leveza simplista do presente. Enclausurada, sem saber o que abraçar. O passado ou o presente. A casta ou a cidadania.
N. é um pouco gordinha. Veste-se à ocidental. Defende os animais de Nova Deli. Especialmente os cães because we tend to forget them and we are only interested in our things. N. é inteligente, mas não muito. Lê aquilo o que supostamente deve ler e o que lhe permite resgatar-se da ignorância em caso de emergência.
N. é feminista também. As mulheres na Índia ainda são muito submissas e discriminadas. We have to change that. I feel that is my responsibility. Quando digo que nunca gostei muito da mulher de Gandhi, Kasturba, olha-me de soslaio, manda-me calar e ver o filme.
N. tem obviamente grandes depressões. Afinal, são uns quantos milhares de anos que lhe pesam nos ombros. Há que encontrar uma nova posição numa sociedade que não aceita posições, situações, hierarquias. Há que desaprender o que foi aprendido e ensaiado. N. já não é responsável por ninguém. Os oprimidos já sabem sobreviver sem ela, sem a família dela, sem a casta dela. A responsabilidade diluiu-se há muito, especialmente neste campus supostamente esquerdista, humanista, socialista e igualitário. N. está perdida.
N. vai à biblioteca. Vagueia pelas estantes. À procura de leitura. Alguém está na mesma estante, por detrás. N. nota. N. agacha-se para tirar um livro da prateleira inferior. Ao fazer isso as calças rebaixam-se e vê-se um pouco do rabo dela. N. vê um flash, um raio luminoso. Vira-se e vê um rapaz estudante com um telemóvel na mão. N. berra, sai a correr, chamar os amigos do círculo brâmane. Estes voltam ao local do crime, encostam o rapaz à estante, interrogam-no porque anda a tirar fotos perversas de raparigas. Mais tarde um deles admitir-me-ia com orgulho brilhando nos lábios que I was about to beat him up.
Depois de tanto interrogatório lembram-se de ver o telemóvel. Não tem sequer câmara e nunca tirou qualquer fotografia. N. ainda soluça, verdadeiramente em estado de choque, sem saber como reagir, deprimida, entre tradição e presente, entre casta, universidade, cidade e feminismo, zonza.
Deixam o rapaz depois de em jeito policial ficarem com os dados pessoais. N. aproveita para afirmar a sua posição que lhe é devida. Os amigos apoiam. Vai falar com o director do departamento, procurando apoio e consolo. Este submete-se, chama a mulher dele (também professora, com casa no campus) para vir apoiar também. A posição está garantida, a hierarquia restabelecida. N. reencontrou o que sempre lhe pertenceu.
Decide-se. O melhor é apresentar caso na comissão contra a discriminação sexual, verdadeiro aparelho inquisitório no campus (GSCASH). O rapaz é convocado para um interrogatório, defende-se como pode, mas só o deixam defender-se até onde acham necessário. A vítima não lhe olha nos olhos, não lhe toca. O caso é encerrado por falta de provas. Desta tiveste sorte, dizem-lhe. N. voltou a ser o que era. E um pouco mais.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2005
747 Air India
Row 72. Seat A. 72 A. Boarding now. Air India 111. Bombay - New Delhi – London - New York. Taking off. I wish you a good flight. Durmo. Landing in ten minutes, fasten your seatbelts. E eu fico. Não no 72 A. Em New Delhi. O avião segue, sem mim, para lá. E eu cá. Em casa, acho.
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