quinta-feira, 17 de fevereiro de 2005

Posicionamentos

Tudo está em ordem. Sentas-te aqui e eu ali. Na nossa sala de aula, poucas semanas depois de o curso ter começado, rapidamente se estabeleceu uma ordem muito lógica, muito histórica e muito naturalmente aceite por todos os jogadores. O jogo das castas. O jogo do animal social. O jogo da tradição que se mascara de modernidade. O jogo da Índia que ainda teme o estrangeiro mas finge tê-lo suplantado há muito.

Há três filas de bancos, separadas por dois corredores. Olhando da perspectiva de quem dá a aula, depara-se com a seguinte constelação posicional.

De maneira geral, há três zonas que emergem logo a olho nu. Na fila do lado esquerdo estão os indianos tradicionais, das pobres zonas rurais, geralmente de casta inferior, incluindo os intocáveis que Gandhi chamava de Harijans. Ocupam os primeiros cinco ou seis bancos da fila da esquerda. Ouvem com atenção, tiram muitos apontamentos. Muitos frequentam as aulas de "remedial English" porque têm muitas dificuldades na escrita.

Cada banco, indianamente ambiguamente, dá para dois ou talvez três estudantes sentarem-se. No caso deste grupo é curioso que sem excepção se sentam sempre três estudantes por banco, agachados e unidos, como se pairasse uma constante ameaça sobre as suas cabeças, um sentimento de culpa por uma ousadia que há não muito tempo talvez teria sido castigada com a morte. A vestimenta condiz: camisas com golas sujas, compridas, de fora das calças de tecido barato.

Vamos fazer a diagonal. Nos últimos bancos da fila da direita encontra-se outro grupo, também bastante unido, mas com uma ligeireza e à-vontade que não escondem um certo sentimento de superioridade. È o grupo dos brâmanes, ou, com excepções, de estudantes ricos e filhos de generais e políticos. Sentam-se humildemente lá no fundo, controlando o que se passa no microcosmo da aula. São aqui que nascem as intervenções mais ilustres, com citações em sânscrito (para nós como se fosse latim), divagações filosóficas e teimosias teóricas.

A vestimenta é variada. Alguns à indiana, mas sempre com tecido do melhor e que deixa rapidamente adivinhar a origem social e geográfica, e outros à ocidental, mas sempre uma aparência muito cuidada e um olhar acutilante que não deixa sombra para dúvidas. Com o peso de manter a ordem do cosmos, este grupo assume – tendo em conta o contexto – um papel similar ao que os seus antepassados assumiam. Adoptam alguns casos extraordinários, como um estrangeiro de origem indiana ou um estudante tribal desfavorecido mas com dinheiro, e integram-nos no grupo.

Vamos avançar para os primeiros bancos onde se encontra o bastião dos estudantes estrangeiros, encostadas ao púlpito professoral e com óbvias limitações linguísticas. Obviamente que consiste de uma amálgama de várias nacionalidades, trajes e passados, mas transparece uma solidariedade internacional que teria feito inveja a muitos soviéticos.

E a fila do meio? Nos bancos do meio e recuados encontra-se uma densidade acima da média de estudantes do Northeast indiano. São daqueles estados enclavados no extremo leste da Índia, encostados à China e ao Myanmar, muito ocidentalizados (parecem estudantes norte-americanso), falando inglês fluente e sendo maioritariamente cristãos. Mantêm uma distância muito grande do resto da comunidade estudantil indiana e por vezes até se aproximam mais da comunidade estrangeira. Mas o resto da fila, especialmente os primeiros bancos, é uma terra de ninguém ou uma zona de transição, embora a mobilidade não seja muita – na minha sala de aula, tal como na Índia.

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