sábado, 12 de fevereiro de 2005

Peso nos ombros

Chama-se N. Nos primeiros dias de aula apresenta-se orgulhosamente como "a Saraswat Brahmin". Antes mesmo de nos dizer o nome dela. N. anda com um grupo de amigos brâmanes do qual me aproximei tão rapidamente como me distanciei de seguida.

N. é o símbolo de uma Índia esquizofrénica. De uma geração confusa, perdida entre o nobre e estático peso da milenar tradição e a ordinária e fluída leveza simplista do presente. Enclausurada, sem saber o que abraçar. O passado ou o presente. A casta ou a cidadania.

N. é um pouco gordinha. Veste-se à ocidental. Defende os animais de Nova Deli. Especialmente os cães because we tend to forget them and we are only interested in our things. N. é inteligente, mas não muito. Lê aquilo o que supostamente deve ler e o que lhe permite resgatar-se da ignorância em caso de emergência.

N. é feminista também. As mulheres na Índia ainda são muito submissas e discriminadas. We have to change that. I feel that is my responsibility. Quando digo que nunca gostei muito da mulher de Gandhi, Kasturba, olha-me de soslaio, manda-me calar e ver o filme.

N. tem obviamente grandes depressões. Afinal, são uns quantos milhares de anos que lhe pesam nos ombros. Há que encontrar uma nova posição numa sociedade que não aceita posições, situações, hierarquias. Há que desaprender o que foi aprendido e ensaiado. N. já não é responsável por ninguém. Os oprimidos já sabem sobreviver sem ela, sem a família dela, sem a casta dela. A responsabilidade diluiu-se há muito, especialmente neste campus supostamente esquerdista, humanista, socialista e igualitário. N. está perdida.

N. vai à biblioteca. Vagueia pelas estantes. À procura de leitura. Alguém está na mesma estante, por detrás. N. nota. N. agacha-se para tirar um livro da prateleira inferior. Ao fazer isso as calças rebaixam-se e vê-se um pouco do rabo dela. N. vê um flash, um raio luminoso. Vira-se e vê um rapaz estudante com um telemóvel na mão. N. berra, sai a correr, chamar os amigos do círculo brâmane. Estes voltam ao local do crime, encostam o rapaz à estante, interrogam-no porque anda a tirar fotos perversas de raparigas. Mais tarde um deles admitir-me-ia com orgulho brilhando nos lábios que I was about to beat him up.

Depois de tanto interrogatório lembram-se de ver o telemóvel. Não tem sequer câmara e nunca tirou qualquer fotografia. N. ainda soluça, verdadeiramente em estado de choque, sem saber como reagir, deprimida, entre tradição e presente, entre casta, universidade, cidade e feminismo, zonza.

Deixam o rapaz depois de em jeito policial ficarem com os dados pessoais. N. aproveita para afirmar a sua posição que lhe é devida. Os amigos apoiam. Vai falar com o director do departamento, procurando apoio e consolo. Este submete-se, chama a mulher dele (também professora, com casa no campus) para vir apoiar também. A posição está garantida, a hierarquia restabelecida. N. reencontrou o que sempre lhe pertenceu.

Decide-se. O melhor é apresentar caso na comissão contra a discriminação sexual, verdadeiro aparelho inquisitório no campus (GSCASH). O rapaz é convocado para um interrogatório, defende-se como pode, mas só o deixam defender-se até onde acham necessário. A vítima não lhe olha nos olhos, não lhe toca. O caso é encerrado por falta de provas. Desta tiveste sorte, dizem-lhe. N. voltou a ser o que era. E um pouco mais.

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